Um ambicioso/II

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José Cândido, logo que saiu de casa, dirigiu-se à Rua da Imperatriz, e entrou no corredor de um sobrado.

— O sr. capitão está em casa?

— Quem é? perguntou de dentro uma voz irritada.

— Um seu criado, disse José Cândido.

Entrou.

O dono da casa veio recebê-lo à porta da sala, com um ar que contrastava com a voz de há pouco, mas não com a voz que empregou então, a qual era doce a mais não poder.

— Venha cá, venha cá, disse ele; cuidei que já nos tinha esquecido.

— Estive cá anteontem.

— Pois então! Dois dias parece-lhe pouco?

José Cândido sentiu-se satisfeito; entrou; sentou-se em uma cadeira de balanço, que o dono da casa lhe ofereceu. Era este o capitão Fabrício, um homem alto e cheio, grisalho, de olhos velhacos e pretos.

— Quer tomar alguma coisa?

— Não, senhor; obrigado.

Fabrício sentou-se também, esfregou as mãos, bateu com elas nos joelhos, exclamando:

— Então parece que a coisa vai!

— Ora, se vai!

— Ou tudo leva a breca! concluiu José Cândido com ar marcial.

— Apoiado!

Seguiu-se um silêncio. Fabrício foi o primeiro que falou:

— Tem feito alguma das suas?

— Tenho. Um barbeiro lá da minha rua, e dois oficiais da mesma loja, que já estavam apalavrados com os outros, declararam-me ontem que votam conosco.

— Assim! assim!... é preciso não esmorecer. Hoje dois, amanhã três, no fim das contas faz-se um rombo no inimigo.

E o capitão riu com um riso franco, amigável, paternal, enquanto José Cândido, com os olhos nos bicos dos botins, tinha o mesmo ar com que o pai o fora achar nessa manhã.

— Eu, sr. capitão... disse ele ao cabo de alguns segundos; queria falar-lhe numa coisa.

— Diga, diga.

— Talvez... pode ser... mas...

— Mas?

— Não me atrevo...

— Atreva-se.

— Queria dizer... sim... posso contar com sua proteção?

— Toda, toda, sr. José Cândido; pode contar comigo para tudo o que for de seu agrado. Tinha que ver, que não pudesse contar com a boa vontade dos correligionários, um homem que tem feito o que o senhor tem feito. Diga, o que é?

José Cândido mostrou-se animado com esse tom, pôs toda a alma nas mãos e preparou-se para desembuchar o seu segredo, enquanto Fabrício, com o ar mais afetuoso e serviçal que possuía, esperava que ele começasse a falar.

José Cândido falou.

Nunca a voz trêmula da donzela, que pela primeira vez confessa que ama, nunca foi mais doce, mais úmida. Os olhos, ora no chão, ora no teto, pareciam envergonhados da audácia do dono. A face, ordinariamente amarela como as gravatas, fez-se vermelha como os botões de vidro do colete. A mão tremia, o lábio tremia, todo ele tremia.

— Eu, sr. Capitão, disse ele, eu desejava... ambicionava... supunha... sim... queria ser eleitor...

O capitão entrelaçou um riso e uma careta, fez um gesto de cabeça e piscou os olhos.

— Ambição legítima, disse ele; ambição muito legítima, a mais legítima possível.

— Parece a V.S....

— Pois não há de parecer! Um homem digno, fiel ao partido, trabalhador...

— Por ora não tenho pedido nada.

— É verdade; não tem pedido nada.

— Então, posso contar? perguntou José Cândido no cúmulo da alegria.

O capitão deitou-lhe um pouco de água na fervura.

— Por mim, decerto; mas sabe que não depende só de mim; os correligionários, os candidatos, as influências...

— Mas, se é certo que eu posso ambicionar...

— Pode e deve. Mas, como sabe, tudo neste mundo está sujeito a contingências. O que eu posso afirmar-lhe é que pode contar comigo.

— Oh! interesse-se por mim!

Fabrício estendeu-lhe a mão.

— Conte com isso.

— Quanto a recursos, se é preciso entrar com alguns, creio que posso dispor de quatro ou seis contos de réis...

— Isso depois. Vamos primeiramente ao essencial; amanhã lhe darei a resposta. Amanhã, não, domingo é mais certo.

José Cândido saiu da casa do capitão com a alma a nadar-lhe em um mar de júbilo. Eleitor! José Cândido sentira nascer-lhe essa ambição algumas semanas antes; se é que ela nasceu, se é que suas ambições podiam nascer. Existia desde o princípio dos tempos; coexistiu com o caos. Desagregando-se da confusão das coisas, ficou no espaço à espera que nascesse José Cândido. José Cândido nasceu, ela penetrou-lhe no cérebro, onde residiu escondida até quase trinta anos. Um dia rebentou como um aneurisma.

José Cândido tinha a paixão eleitoral, mas só a paixão eleitoral, não a política. Era um cabalista de primeira força. Ele vivia no tempo das eleições três vezes mais do que no resto dos tempos. Por isso amava as dissoluções da Câmara. Era a sua única ocupação, mas valia por trinta.

Tinha roda, dispunha de votos; era exímio no meio de angariar votos contrários, em trocar cédulas, preparar fósforos, reunir invisíveis.

Não lhe perguntassem qual era o seu partido; ele era do partido do capitão. Houve um tempo em que o capitão entendeu conveniente fazer uma reviravolta; José Cândido não se alterou; ficou no mesmo lugar; ficou fiel ao capitão. Este era a sua bandeira, o seu programa, o seu sistema. Suas idéias, princípios, simpatias, eram as simpatias, princípios e idéias do capitão; fora dele era tudo abominável. E o capitão sabia de que força era o correligionário. Quis um dia arranjar-lhe uma patente de alferes, na Guarda Nacional, e ele recusou, com uma abnegação romana. José Cândido era desinteressado, puro, incorruptível.

Um dia, porém, (fatal dia!) a ambição eleitoral deitou a ponta do nariz de fora. José Cândido sentiu bater-lhe o coração fortemente, mais fortemente do que batia, quando ele ia falar a Emília, sua prima, filha da sra. Inácia. Que seria? Consultou-se; recuou aterrado. Uma feiticeira de Macbeth bradava-lhe aos ouvidos : "Tu serás eleitor, José Cândido!" Eleitor! sim; por que não? Ele os fazia, podia manipular-se a si próprio. Que seria preciso? Apoio? Contava com o capitão. Dinheiro? O pai lhe daria algum quando soubesse que o filho ia ser eleitor. Esta idéia e que o trazia desde tanto tempo distraído, absorto, acima do tempo e do espaço.

Não eram muitas nem decisivas as esperanças que Fabrício lhe dera; mas as primeiras ambições são fáceis de iludir. José Cândido saiu da casa do capitão certo de ver já o seu nome proclamado aos quatro vento do universo. Ele próprio sentia em si um ar mais seguro, alguma coisa menos ínfima. Seus olhos pareciam dizer às esquinas, aos prédios, às calçadas da rua: Vede; este é um dos bem-aventurados da terra!

Ia neste sonho, quando ao passar a última esquina, perto de casa, sentiu alguém que lhe puxava pela aba do paletó.