Um quarto de século/I
Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás conversavam à porta da casa do Desmarais, Rua do Ouvidor, ano de 1868, quando passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:
— É a viúva Sales; espera.
E atravessando a rua, foi falar à viúva Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:
— Mas não posso contar com a senhora?
— Mana Rita está constipada; se ela ficar boa, vamos.
— Vou rezar para que fique boa.
— Os hereges não rezam, replicou a viúva sorrindo e despedindo-se.
Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.
— Não é possível, disse ele.
— Que é que não possível?
— Essa viúva... É viúva de um médico, um doutor João Sales?
— Isso.
— D. Raquel?
— Exatamente.
— Filha de um conselheiro de guerra?
— Xavier de Matos. Conheces?
— Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos anos. Está mudada.
— Um pouco mais gorda.
— Conhecia-a magrinha.
— Mas não está mais velha. Queres vê-la, queres jantar com ela, lá em casa, sábado?
— Ela vai?
— Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.
— Sim, Mariana, mais velha que ela.
— Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu há anos; era casada com um deputado do Norte. A mais moça não casou. Vivem juntas.
— Vou.
— Seis em ponto.
— Em ponto.
— Bem, agora que a viste, que tens algumas notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto, quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.
— Tudo é nada, respondeu Tomás. Que diabo de idéia é essa?
— Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro, desfaz o teu relógio.
Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito de S. Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente, havia alguma coisa que dizer.
— Tudo é pouco.
— Esse pouco.
— Gostei dela em solteira, mas foi coisa que passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.
— Mas nunca me falaste desta.
— Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos, tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu tens mais três.
— Mais dois.
— Creio que já foram quatro, mas o tempo diminui tudo, começando por si mesmo.
— Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos em março.
Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de S. Francisco de Paulo e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.