Um quarto de século/IV

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Repetiram-se os encontros. Poucas semanas depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante, ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.

O quarto de século de distância eliminou-se como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de verdura, ao aceno do contra-regra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de um, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.

Seis meses não é pouco tempo entre um solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada. Oliveira, a princípio, quis precipitar as coisas; a mulher disse-lhe que não; seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.

— Não são duas crianças, observou ela.

— Por isso mesmo, confirmou Oliveira rindo.

Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.

Escreveu-lhe uma carta, que rasgou, por achá-la extensa; escreveu outra, mais extensa, e mandou-lha.

Raquel, logo que deu com as primeiras palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos. Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é; mas a contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.

A idéia de que ele ficara solteiro, para não casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela, foi a causa principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.

O estilo era inflamado. Uma só vez a carta aludia ao passado: “Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele”. Raquel releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte. Tinha de refletir primeiro.

— Sim ou não? perguntou a si mesma. E depois de alguns minutos:

— Amanhã; tenho tempo.

Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse; mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava até então a idéia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia seguinte, sentou-se, pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a negativa? Era melhor aceitar; mas, como?

Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a animou a aceitar o marido.

— Estás certa que nenhum interesse o atrai?

— Seguramente.

— Pois aceita.

Raquel respondeu enfim, com duas linhas apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe escrevera: “Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes”. Tomás foi agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois estavam casados.