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Uma Campanha Alegre/I/XLVII

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XLVII

Dezembro 1871.

Lisboa é talvez, em todo o vasto universo, a cidade, onde a opinião exerce menos influencia. Receiase um pouco a policia correccional, despreza-se em absoluto a opinião publica. E como a policia correc. cional se assemelha ao ceo de Molière-com o qual succede que no fim a gente sempre se chega a en. tender —---acontece que em definitivo nada se receia, nem a opinião que se desdenha, nem a policia que se evita. Assim, desde que se soube a colligação das fabricas de tabaco, a opinião unanime, cerrada, incondescendente tem accusado, tem quasi infamado aquelle monopolio inesperado. E no emtanto a colligação continua serena, impassivel, a espoliar o vicio e a arrecadar o ganho. E todavia se todos os srs. capitalistas, que entraram n’aquella conspiração tenebrosa, ouvissem nos cafés, nas esquinas, e nos estancos, o que diz a immensa opinião anonyma — sentiriam, se ainda existe nas suas ex. mas pessoas algum brio viril, a necessidade indeclinavel de se bater em duello, de dez em dez minutos, com dez cava. lheiros de cada vez! O que lhes daria no fim do seu dia a bagatella gentil de sessenta duellos por hora! O que prefaz, desde a primeira alvorada até o primeiro lume de gaz.-qualquer cousa como seiscentos e oitenta duellos!


O facto na verdade é estranho. Uma troca só se considera justa quando há reciprocidade de valores; e toda a venda de mercadoria cujo valor é arbitrariamente, caprichosamente aumentado, é desonesta. Se eu dou 10 em moeda, é necessário que me dêem 10 em mercadoria (contando-se, está claro, nestes 10 de mercadoria, as despesas de produção, etc.). Ora se eu dou 10 em moeda, mas me dão 5 em mercadoria, torna-se evidente que realmente os 5 a mais que eu dou — me foram levados, por bons modos sim, com brandos sorrisos é certo, mas enfim com o mesmo direito com que numa estrada nocturna e solitária um cavalheiro de barbas celeradas me diz galhardamente:

«Ou a bolsa ou um tiro!» Até agora, e desde há muito, um operário dava 10 réis e davam-lhe 6 cigarros; e as fábricas entendiam que este contrato era vantajoso porque o mantiveram, prosperaram, entesouraram. Porém uma fresca manhã, as fábricas, ao entregarem os costumados 6 cigarros, disseram ao consumidor: — «Perdão, de ora em diante dois cigarros são para os meus vícios particulares: aí tem o cavalheiro os 4 restantes». Foi simplesmente este roubo.

Se por acaso qualquer de nós entrasse num luveiro, e pondo os seus 750 réis sobre o balcão pedisse umas luvas gris perle, e o luveiro lhe dissesse, arrecadando a prata: —

«Aqui tem o cavalheiro a luva da mão direita, a da esquerda permita que a retenha por certos motivos» — era natural que nós saíssemos fora, chamássemos o polícia mais desocupado da esquina, e deixássemos o luveiro em conversa particular com a lei. Ora a pobre gente, que vê os seus dois cigarros sumirem-se nos cofres da coligação, não pode chamar o polícia! De onde se conclui que, para extorquir cigarros, relógios, luvas ou outros objectos miúdos, é imprudente ser-se só e isolado — mas é de todo o ponto proveitoso e impune ser-se uma companhia com uma escritura num tabelião! Erro, grande erro, que um cidadão desacompanhado nos venha delicadamente pedir o relógio numa viela escura: ordinariamente este cidadão imprudente vai fazer parte da sociedade de Angola. Mas não há nada para estes feitos como vir apoiado numa associação! A associação inocenta tudo, e tudo purifica! Que se há-de objectar a um celerado que nos diz respeitosamente: — «Meu senhor, eu e alguns bandidos das minhas relações fizemos num tabelião uma escritura pela qual combinámos recolher a nossa casa todos os paletós

Lisboa é talvez, em todo o vasto Universo, a cidade onde a opinião exerce menos influência. Receia-se um pouco a polícia correccional, despreza-se em absoluto a opinião pública. E como a polícia correccional se assemelha ao céu de Molière — com o qual sucede que no fim a gente sempre se chega a entender — acontece que em definitivo nada se receia, nem a opinião que se desdenha, nem a polícia que se evita. Assim, desde que se soube a coligação das fábricas de tabaco, a opinião unânime, cerrada, incondescendente, tem acusado, tem quase infamado aquele monopólio inesperado. E no entanto a coligação continua serena, impassível, a espoliar o vício e a arrecadar o ganho. E todavia se todos os srs. capitalistas, que entraram naquela conspiração tenebrosa, ouvissem nos cafés, nas esquinas, e nos estancos, o que diz a imensa opinião anónima — sentiriam, se ainda existe nas suas exmas pessoas algum brio viril, a necessidade indeclinável de se bater em duelo, de dez em dez minutos, com dez cavalheiros de cada vez! O que lhes daria no fim do seu dia a bagatela gentil de sessenta duelos por hora! O que perfaz, desde a primeira alvorada até ao primeiro lume de gás — qualquer coisa como seiscentos e oitenta duelos! que passeiam impudentemente as ruas nas costas egoístas de seus donos; aqui está o contrato, a escritura e outros papéis que V. Sª terá a bondade de examinar àquele candeeiro; tenha a bondade de me passar o seu paletó!» O caso das fábricas guardarem para si, sem motivo, parte dos cigarros que dantes davam por certas quantias, tem toda a analogia com as espécies citadas. E portanto a verdadeira maneira de afrontar esta coligação não é pelos meios legais. Que cada cidadão que fuma cigarro ponha os seus

10 réis sobre o balcão, e declare apontando um revólver ao peito do estanqueiro:

— «Aí estão 10 réis. Agora quero os meus cigarros, mas todos os meus cigarros!

Senão desfecho!»

Abrindo o nosso Código Penal, encontramos no Capítulo XL, secção 1ª, art. 276º, estes dizeres simpáticos:

«Qualquer pessoa que, usando de algum meio fraudulento, conseguir alterar os preços nas mercadorias que forem objecto de comércio, será punida com multa conforme a sua renda, e prisão de um a três anos.

§ único. Se o meio fraudulento empregado para cometer este crime for a coligação com outros indivíduos, terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

Que vos parece, cidadãos, desta honrada simplicidade do Código Penal?

Os preços foram alterados;

E numa mercadoria que faz objecto de comércio...

Somente o artigo acrescenta — quando se usar de algum meio fraudulento. Houve este meio fraudulento? O § único responde:

«Se o meio fraudulento empregado para cometer este crime for a coligação...»

É o nosso caso! A coligação é patente; logo houve o meio fraudulento especificado pelo Código. E declara mais este amável Código:

«...terá lugar a pena logo que haja começo de execução.»

A execução é também patente em todos os estancos. Onde está pois a pena? Isto é claro, positivo, explícito, simples.

O crime é evidente. Haverá alguma circunstância que desculpe os coligados do crime, e portanto os exima da pena? O artigo 23º do Capítulo III do título 1º, diz:

«Não podem ser criminosos os loucos de qualquer espécie;

Os menores de sete anos;

Os maiores de sete, e menores de catorze, quando não têm discernimento;

Os ébrios;

Os que praticam o acto em virtude de obediência devida.»

Por consequência, os srs. fabricantes só estão isentos da multa e prisão de um a três anos, se provarem:

Que habitam Rilhafoles, ou que se babam de idiotismo;

Ou que andam de bibe, e pela mão da criada, atirando a péla;

Ou que não têm discernimento, a ponto de serem tatibitates;

Ou que estavam no momento do crime, num tal estado de ebriedade, que se tinham deitado no enxurro;

Ou que praticaram o acto contra vontade, cheios de repulsão, mas obrigados por algumas pessoas que lhes diziam com o punhal sobre a garganta: «ou a coligação ou a morte!

Se não provarem que se acham em algum destes casos — são criminosos, e nada os pode desprender das mãos do polícia que lhes tome a gola do fraque, e os leve, de rastos e ganindo, aos bancos luzidios e lúgubres da polícia correccional.

E notem que o Código diz cometem este crime. E um crime: não é a honesta contravenção nem a modesta infracção! É o crime.

E o crime com as circunstâncias agravantes que marca o Código no Capítulo LI, art. 19º:

Premeditação: quem negará que os ilustres fabricantes meditaram longamente, ruminaram longamente o seu caso?

A sedução de outros indivíduos para cometer o crime: não contaram os jornais que tinham sido convidados pelos autores do crime, para tomar parte nele, as fábricas do

Porto?

Ter manifesta vantagem sobre o ofendido: não são eles ricos, e pobre a população humilde que fuma cigarro? Não é o facto uma exploração do vício?

Cometer o crime por dinheiro: não foi decerto para ganhar bênçãos, nem reumatismos!

Cometer o crime tendo recebido benefícios do ofendido: há uns poucos de anos que os nossos vícios enriquecem os seus cofres!

Cometer o crime de noite: é justamente quando os estancos mais vivem, mais ganham, e portanto mais delinqúem!

Que fazem no entretanto os srs. delegados do procurador-régio? Fulminam com a sua eloquência reles algum desgraçado que não tem casa, algum miserável que não tem tr abalho!

Os jornais dizem: «O Governo já que não pode fazer nada, consinta que se estabeleçam mais fábricas, ou diminua o direito sobre o tabaco em folha». E curioso. E como se diante de um desgraçado, espancado e ensanguentado, e diante do seu espancador, já descoberto e já preso, os jornais exclamassem:

— Uma vez que a justiça não pode fazer nada ao criminoso, ao menos não impeça que se cure o ferido!

Não pode fazer nada? Pois já não existe na Boa Hora um banco para um réu, na casa do depósito um cofre para uma multa, no velho Limoeiro um quarto para um preso?...

Porque não queremos suspeitar que o que não existe — seja a igualdade perante a

Lei!

O que impede que se proceda contra eles?

O facto de se terem coligado? — Então por este modo só é culpado o salteador isolado, mas perfeitamente inocentes os salteadores associados. Se amanhã, (o que tal não suceda) S. M. El-Rei for assassinado, só haverá crime e só poderemos castigar o assassino se ele for um só: mas se forem seis, teremos de lhes deixar os nossos bilhetes de visita!

O ter havido uma escritura? — Mas então declaremo-lo por uma lei, para que os srs. ladroes, assassinos e incendiá rios, se previnam com contratos no tabelião antes de partirem para as suas façanhas!

O serem capitalistas? — Aqui é que a porca e a lei torcem o rabo! Sim, desgraçadamente, é por serem capitalistas...

Ah! o tirânico segundo império não permitia estas coisas! Na guerra da Crimeia, os vendedores de toucinho coligaram-se para imporem um preço superior. Foram delicadamente empurrados pelas costas à polícia correccional. Havia entre eles ricos negociantes, ricos capitalistas. Uma terrível multa e a prisão foram a paga das suas proezas gorduráceas. Tão vilmente lhes pagou o carinho que tinham tido por ele — o impudente toucinho!

Quem impede que amanhã os nossos charutos custem cada um 7$000 réis, e cada cigarro nos saia a 1$800 réis? Estão na lógica os srs. fabricantes. E têm a suprema garantia do consumo — a garantia do vício! E isto virá talvez a acontecer se não tivermos a previdência de nunca comprarmos tabaco — sem irmos acompanhados por uru polícia, e um escrivão que lavre o auto!

E é sobre o operário, sobre o trabalhador, sobre o soldado, sobre o pobre que pesa a espoliação! Os srs. capitalistas tiveram o cuidado delicado de não fazer pagar nem mais 5 réis diários a quem ganha ou tem por mês de l00$000 réis para cima: e por isso fazem pagar mais 10 réis diários a quem tem por dia de 240 réis para baixo! Isto alegra-nos profundamente. E tanto que, fundados na nossa argumentação, não deixaremos de pedir que a cidadãos tão prestantes como os ilustres fabricantes, se dê a honra de se lhes oferecer um banco na Boa Hora, com o modo mais risonho! Com o que temos o prazer de desejar as maiores prosperidades a SS. S.as , senhores do nosso respeito e espoliadores do nosso tabaco!

XLVIII

Novembro 1871.

Em Abrantes — segundo informações de um amigo nosso, jurisconsulto ilustre — sucede este estranho caso:

Pela lei de 10 de Julho de 1843 só são obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercem a sua indústria em água salgada — e naquela parte dos rios somente até onde cheguem as marés vivas do ano.

Ora em Abrantes entende-se de um modo largamente torpe esta acção do fisco sobre a pesca. Vinte homens, extremamente miseráveis, que pescavam no rio — onde não podiam chegar marés vivas — e alguns mesmos que de todo não pescavam, foram obrigados a pagar o imposto do pescado! Uns não se defenderam desta extorsão por pobríssimos: outros não se defenderam em virtude da ideia popular na província — deque, com o fisco, paga-se sempre e nunca se questiona, porque naturalmente depois é-se obrigado a pagar mais.

Isto constitui puramente, numa linguagem talvez plebeia, mas exacta, um roubo.

Obrigar um pescador do rio a pagar o imposto do pescador do mar, é (além de uma confusão deplorável do velho e respeitável Oceano com qualquer fio de água que murmura e foge), um sistema extremamente parecido com o que empregam as pessoas estimáveis que nos metem a mão na algibeira e levam para casa o nosso lenço. Nós não desejamos embaraçar os negócios fiscais. Somente nos parece que impor a qualquer cidadão, mesmo quando não pesque, o imposto do pescado, é um expediente sumamente complicado. E o fisco, que deve ser parcimonioso do seu tempo e dos seus recursos, tem um meio mais singelo e mais expedito, que consiste em se aproximar de qualquer, e gritar-lhe pondo-lhe uma carabina ao peito:

— Passe para cá o que leva na algibeira!

Estes processos do fisco, que se repetem arbitrariamente em toda a província e que são sem dúvida um dos recursos do Estado, parecem-nos imprudentes — porque estabelecem confusão. Há por essas estradas isoladas, em certas vielas de cidades mal policiadas, nos pinheirais, nos sítios ermos e amados da sombra, uma espécie de cida-dãos, de resto singularmente diligentes, que se deram por missão suspender por um momento as pessoas que passam, e pela maneira mais delicada tirar-lhes o dinheiro, os relógios e outras insignificâncias. Por seu lado o fisco costuma deter os cidadãos, e sob qualquer pretexto (como por exemplo no caso de Abrantes, por serem pescadores de

água salgada) exigir-lhes uma quantia e entregar-lhes um recibo. Estes dois processos, o do fisco e o dos senhores ladrões, oferecem uma tal similitude que pedimos ao Governo que distinga por qualquer sinal (um uniforme por exemplo), estas duas estimáveis profissões; para que não suceda que os cidadãos se equivoquem e que vão às vezes lançar a perturbação na ordem social, confundindo o facínora e o funcionário — apitando contra o fisco e pedindo humildemente recibo ao salteador!

XLIX

Novembro 1871.

Este mês a opinião preocupou-se com o que se chamou a greve de Oeiras.

Parecia realmente indecoroso que Lisboa, já civilizada, com teatro lírico e outros regalos de capital eminente, não tivesse esse chique social — a greve! Oeiras, com uma dedicação amável, forneceu-lhe esta elegância. Oeiras deu a greve. Alguns estadistas puderam ter ocasião de comentar a nossa última greve, e de falar no terrível proletariado.

Somente esta greve de Oeiras apresenta uma novidade excêntrica.

O fabricante diz:

— Eu dou a esses operários indignos, que abandonaram a minha fábrica e se puseram em greve, 4$000 réis por semana. Vinde!

E os operários respondem:

— Não, não, isso não! Só voltamos ao trabalho se nos garantirem por semana

3$600!

Confessem que é para empalidecer de confusão. Não se protesta aqui contra a avareza do fabricante, protesta-se contra a sua generosidade: o operário resiste a ganhar: só trabalha se lhe diminuírem o salário: tem avidez de sacrifício, e deseja antes de tudo sofrer fome! Que mistério é este? Ei-lo desvendado:

Como sabem, há dois trabalhos essenciais no fabrico do lanifício: preparar a teia, o que leva uma semana, e produzir o tecido, o que gasta outra semana. Ora o fabricante descontava na semana do tecido uns tantos por cento do salário; e na semana do preparo levava a sua habilidade a descontar o salário todo.

De sorte que havia semanas gratuitas. E justamente os operários pedem agora que lhes paguem menos cada semana, mas que lhes paguem as semanas todas.

O fabricante exclama:

— 4$000 réis cada semana que tecerdes!

E os operários replicam:

— 3$600 réis cada semana que trabalharmos. Porque preparar a teia é tanto trabalho como tecê-la.

Tal é esta greve original, que não descrevemos com a sua precisão técnica, para não dar a estas páginas o aspecto de um tratado sobre lanifícios.

O que temos pois aqui, na realidade, é um fabricante que diminui arbitrariamente o salário dos seus operários. Estamos em frente de uma greve do capital! Ora abrindo o nosso admirável Código Penal, encontramos estes dizeres no Capítulo XI, secção 1ª, artigo 277º:

«Será punida com a prisão de um a seis meses, e com a multa de 5$000 a 200$000 réis, toda a coligação entre aqueles que empregam quaisquer trabalhadores, e que tiver por fim produzir abusivamente a diminuição do salário, se for seguida do começo de execução.»

O código fala em coligação. Aqui houve só um fabricante; mas o que é crime para muitos indivíduos coligados, é decerto crime para o indivíduo isolado. O número não faz a culpa. O crime recai sobre o facto, não sobre o ajuntamento. O código define crime «o facto declarado punível pela lei penal» — e não acrescenta «segundo o maior ou menor número de pessoas».

De modo que a famosa greve de Oeiras se reduz simplesmente a isto:

Um fabricante que diminuiu abusivamente o salário dos seus operários — e que cai portanto sob os rigores do artigo 277º do Código Penal.

Até a greve de Oeiras! Ah! não podemos possuir uma glória, um heroísmo, um chique, sem que não se descubra, daí a dias, que chique, heroísmo, ou glória, são casos burgueses que pertencem à Boa Hora! Vergamos sob o destino de ser medíocres! Todo o País tem uma revolta — nós temos a índia! Todos têm uma expedição — nós temos o

Bonga! Todos têm um poeta — nós temos o Sr. Vidal! Fazíamos tanto empenho nesta greve que nos nobilitava, nos revestia de uma atitude civilizada, nos dava a esperança de abrigarmos enfim no nosso seio, autêntica, legítima, essa grande elegância revolucionária, a Internacional! — e vê-se que nos achamos apenas com um caso de polícia correccional! Um a seis meses de prisão, que miséria! Ah! evidentemente só gozamos duas glórias incontestáveis, garantidas, à mão, nossas, só nossas — o Sr.

Lisboa, e o Sr.... Suspendamos, por Deus!... e aquele, de quem um juramento terrível e sacrossanto nos veda pronunciar o nome!

L

O teatro em Portugal vai acabando. Por dois motivos. Primeiramente pelo abaixamento geral do espírito e da inteligência entre nós: e depois pelas condições industriais e económicas dos teatros.

Esta verdade ressalta dos próprios cartazes. O Ginásio, o Príncipe Real, a Rua dos Condes, dão comédias traduzidas dos velhos repertórios estrangeiros, ou dramalhões alinhavados exclusivamente para a estulta plebe (como diziam nossos avós), complicados de incêndios, naufrágios, desabamentos, maravilhas baratas de velho cartão, entre cenários desbotados. — Somente acontece que as comédias estrangeiras, concebidas para a fina interpretação de actores educados, encontram aqui uma interpretação grosseira e falta de ofício — e não podem interessar: e os dramalhões, que vivem apenas dos esplendores da decoração, encontrando aqui telas roíd as da humidade, fatos de paninho remendado, um papelão apodrecido, uma miséria que os apaga e os apelintra — não podem atrair. Portanto estes teatros arrastam uma vida difícil.

A Trindade encetou a ópera cómica. Mas naturalmente, com a legítima urgência do ganho, começou pelos melhores autores da escola francesa — Offenbach, Hervé,Lecoq, etc. Fatigou este repertório galante, espremeu a quantidade de libras que ele continha — e, como as óperas cómicas não se parecem com as ostras, que quanto mais se procuram mais abundam, sucede que a Trindade está nas condições de um preso que devorou a sua ração. A Trindade não tem que dar a um público enfastiado que pede música acessível, e facilmente gorjeada. Precisa recorrer a zarzuelas que não oferecem a cintilação alegre da verve francesa, se apresentam com ambições de arte italiana, e descontentam. Além disso o repertório estrangeiro é feito pelas boas vozes, educadas, criadas nos conservatórios, formadas pelo gosto e pela tradição dos teatros especiais. De sorte que a Trindade necessita escolher operetas que possam facilmente atravessar as estreitas gargantas nacionais; e no vasto repertório estrangeiro tem de preferir as operetas fáceis, as «de meia garganta)), as operetas constipadas. Fica assim reduzido o número a cinco ou seis imbróglios espanhóis, debilmente instrumentados, a que a Trindade se vai amparando como a muletas provisórias. Opera cómica nacional, essa, não a temos; o nosso cérebro é impotente para a criação musical; a raça ficou esgotada com o esforço violento que fez inventando o lundum da Figueira. As nossas óperas são os hinos. Ora a Trindade não poderia fazer facilmente representar o hino da Carta. A Carta, bem basta que a suportemos em código, não devemos sofrê-la em couplet. Seria tão impudico como sapateá-la em danças. E verdade que não pareceria estranhável que a Carta passasse a ser uma ópera cómica, num país em que as instituições são tiradas do Barba Azul e da Grã-Duquesa.

D. Maria é a jangada da Medusa da arte nacional. Aí sobrenadam, num esforço heróico, os restos da velha geração artista. Actores de vontade e de talento, um director excelente — lutam com a escassez da literatura, com a inércia do público, com as dificuldades económicas. E verdadeiramente uma jangada — admirável pelo esforço, incompleta pela organização: boa para lutar, imperfeita para navegar.

S. Carlos, esse, chilreia.


Esta decadência deplorável tem causas diferentes:

A primeira é a própria literatura dramática. Os escritores retraíram-se inteiramente do teatro. Não por o ganho ser diminuto, como se diz, porque no jornal e no livro o ganho não seduz com cintilações de montes de ouro. A principal razão está no feitio da nossa inteligência. O Português não tem génio dramático, nunca o teve, mesmo entre as passadas gerações literárias, hoje clássicas. A nossa literatura de teatro toda se reduz ao Frei Luís de Sousa. De resto, possuímos dois tipos de dramas, que constantemente se reproduzem: o drama sentimental e bem escrito, de belas imagens, ode dialogada, em que unia personagem lança frases soberbamente floridas, o outro retruca em períodos sonoros e melódicos — e a acção torna-se assim um tiroteio de prosas ajanotadas: o drama de efeito, com o que se chama finais de acto, lances bruscos, um embuçado que aparece, uma mãe que se revela:

— Ah! Céus! E ele! Matei meu filho! Oh!»

Acresce a isto a farsa com os velhos motivos de pilhéria lusitana, o empurrão, o tombo, a matrona bulhenta, o general de barrete de dormir, etc. E é tudo! Sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos sociais concretizados numa acção, a natureza, a realidade, a observação da vida — isso encontra-se ainda menos num drama do que numa corrida de touros.

Outra causa de decadência: o público. O público vai ao teatro passar a noite. O teatro entre nós não é uma curiosidade de espírito, é um ócio de sociedade. O lisboeta, em lugar de salões, que não há — toma uma cadeira de plateia, que se vende. Põe a melhor gravata, as senhoras penteiam-se, e é uma sala, uma soirée, um raout, ou mais nacionalmente uma assembleia. Com esta grande vantagem sobre um salão: — não se conversa. Conversar para o Português constitui unia dificuldade, um transe: é o Cabo das Tormentas dos modernos Lusíadas. Conversar, entreter, mover o alado e fino batalhão das ideias, todo o português imagina que esta maravilha só se pode dar nos romances de franco. Daí vem para o português elegante o hábito de se encostar nas salas, à ombreira da porta, com aspecto fatal. Conversar! os homens tremem e as senhoras empalidecem. No teatro há a vantagem de que se pode mostrar a toilette, namorar, passar a noite — e não se conversa. Em Portugal ninguém recebe e ninguém é recebido, porque não há dinheiro, não há sociabilidade, e antes de tudo preferimos o doce egoísmo aferrolhado e trancado do cada um em sua casa. O teatro é a substituição barata do salão. Salão calado — e comprado no bilheteiro. De resto o teatro favorece o namoro, que é o entretenimento querido do português e da portuguesa correlativa. De facto o teatro é o centro do namoro nacional. O que se passa pois no palco torna-se secundário. Requer-se apenas uma certa moralidade física: — que se não dêem beliscões nas ingénuas. A moral do drama, da acção, dos sentimentos não se percebe ou não se exige. Um beijo que estala sobressalta, um adultério que se idealiza encanta. Uma das condições é que as actrizes se vistam bem, com modas novas, para que nos camarotes as senhoras observem, discutam as rendas, as sedas, as jóias e as toilettes. Um director de teatro não é pois escrupuloso com o seu espectáculo: alguém bem vestido que fale e dê um pretexto para a luz do lustre — é o que basta. Sobretudo aos domingos. Então o mundo comercial e burguês, que repousa e se diverte, enche a sala. Se se der Hamlet, vai, se se der Manuel Mendes Enxúndia, vai. Não é a beleza do espectáculo que o chama — é o tédio da casa que o repele.

Outro motivo de decadência: os actores. Os actores em geral são maus, com excepção de 4 ou 5 individualidades inteligentes e estudiosas que progridem. São maus — não tanto por incapacidade própria, como pelas condições do seu destino. Eles desgraçadamente em Portugal não pertencem a uma arte, pertencem a um ofício. Que hão-de fazer? — Não têm estudos, nem escola, nem incentivo, nem ordenados, nem público. São actores como outros são empregados públicos; recitam prosa à luz do gás, num palco, como outros expedem ofícios numa sala abafada. Questão de ganhar um ordenado, de se sustentar, de se vestir! A arte, o estudo entram aqui numa proporção ínfima. O artista que, pelo precário estado da sua arte, tem de pensar em comer (quando não é extraordinariamente dotado, porque então a necessidade retempera-lhe a habilidade), torna-se fatalmente um homem de ofício que necessita ganhar; em tal caso o pintor ilustra almanaques, o escultor faz jarras de porcelana, o poeta redige notícias, o actor atabalhoa papéis. Os nossos grandes actores, Santos, Rosa, além da sua organização artística, formaram-se quando o teatro normal (pelo seu regulamento) os punha ao abrigo da luta da vida, e lhes dava os grandes vagares do estudo. No meio da oscilação das empresas, das quebras de companhias, da dispersão dos centros dramáticos — o artista não pode ter os nobres vagares necessários à cultura artística. As dificuldades da vida embaraçam as preocupações da inteligência.

Outro motivo da decadência dos teatros: a pobreza geral. Não há dinheiro. Lisboa é uma terra de empregados públicos. A carestia da vida, os altos alugueres, o preço do fato, uma certa necessidade de representação que domina a gente de Lisboa, tudo isto deixa a bolsa cansada, incapaz de teatros. O teatro é caro. Uma noite de teatro pode levar a uma família 3$000 réis de camarote, 1$500 de luvas, 1$500 de carruagem no Inverno — ao todo 6$000 réis. 6$000 é a quinta parte de muitos rendimentos mensais — da pluralidade dos rendimentos. Por consequência a afluência aos teatros é pequena. Naturalmente, com a sala deserta, o cofre do teatro não se enche. Daí dívidas, complicações, e falências.

Tal é o perfil do estado geral dos nossos teatros, a largos traços.

Perante esta situação ocorre naturalmente esta pergunta: qual é a atitude do Estado, respectivamente aos teatros?

É esta:

O Governo não dá nada aos teatros nacionais;

E dá 25 contos a S. Carlos!

Ora que o Governo nos responda: — «É o Governo obrigado a auxiliar e a subsidiar a arte teatral?»

— Não. — Então para que dá subsídio a S. Carlos?

— É. — Então para que deixa sem subsídio o teatro nacional?

Se o Governo entende que deve abandonar à indústria, à iniciativa particular, à concorrência, à espontânea acção das vocações, a arte dramática — para que faz uma excepção ao teatro italiano, protegendo-o?

Se o Governo entende que deve auxiliar a arte teatral, como um elemento poderoso de civilização e de cultura moral — então para que faz uma excepção ao teatro português, desamparando-o?

Que o Governo pois se decida:

Ou se declara indiferente e desinteressado em questões de teatro — e então fecha igualmente os seus cofres aos galãs e aos tenores;

Ou se declara responsável pelo desenvolvimento deste progresso intelectual — e então dá um subsídio ao teatro nacional.

Nós não temos opinião. Compreendemos igualmente o Governo protegendo o teatro com subsídios, ou o Governo deixando o teatro à iniciativa industrial e literária.

O que condenamos, e toda a pessoa sensata o condenará connosco, é que, com uma lógica torpemente offenbáquica, o Governo diga:

— Eu nada tenho com a arte teatral, e por consequência dou 25 contos ao teatro italiano.

Ou diga:

— Eu sou o protector da arte teatral, e por consequência pretendo que o teatro nacional se feche de penúria.


Ora a verdade é esta:

O teatro nacional é uma necessidade inteligente e moral — e o teatro italiano é uma inutilidade sentimental e luxuosa.

Quais seriam as vantagens de um teatro normal?

O teatro normal seria a criação de uma literatura dramática, isto é, o enriquecimento do nosso património intelectual — educação permanente no presente, elemento histórico para o futuro. Porque o drama hoje, como toda a obra de arte, tem dois alcances: pelos sentimentos, ideias, costumes, instituições contemporâneas que estuda e critica, é no seu tempo uma lição para o critério — e no futuro um documento para a história.

O teatro normal seria a fundação de uma escola de actores, como a Comédia Francesa, fortemente educada, conservando uma tradição, formando discípulos, centro vital das artes teatrais.

O teatro normal seria o deperecimento providencial das pequenas comédias eróticas, que constituem a aguardente moral das pessoas que não vão à taberna; das mágicas que não passam de um mau acompanhamento da digestão e de uma escola de embrutecimento; dos dramas sentimentais que servem para excitar os sentidos da bur-guesia casada, e formam uma espécie de comunicação cómoda com o vício sem se descer de um camarote! Seria um constante apelo da atenção às coisas do espírito; a subtracção de uma população ociosa e enfastiada às casas de jogo e aos lupanares clássicos; uma influência perdurável, penetrante e subtil nos costumes; uma forte educação pela imaginação; enfim um elemento sadio na nossa vida, insubstituível e indispensável, porque prende com o que uma cidade tem de mais definitivo e de mais determinante — a sua inteligência e a sua moral.

O teatro normal não seria um regalo exclusivo de Lisboa; faria participar todo o

País no desenvolvimento da sua arte. Os actores formados aqui iriam constituir pequenos e bons conjuntos teatrais na província; e em certos meses a companhia-modelo visitaria Porto, Braga, Coimbra, Viseu, as principais cidades, levando ao público o encanto do seu repertório superior e aos artistas os exemplos da sua arte perfeita.

Isto seria, a largos traços, o teatro normal.


O teatro de S. Carlos o que é? o que faz? Não aumenta decerto o nosso património literário. Faz apenas a popularização da velha escola italiana de música sensualista, arte de que nada resulta para o País, senão alguns duetos que as donzelas beliscam ao piano, ou que os sinos tilintam ao levantar da hóstia! Que educação se tira da Traviata expirante, ou do imbecil Trovador que corre a salvá-la?

O teatro de S. Carlos não forma bons actores nacionais. Bem ao contrário! É uma fábrica de reputações para os artistas estrangeiros. Gastamos dinheiro, nós! para que o Sr. Fulanini vá ganhar mais dinheiro para Sampetersburgo ou para Covent Garden, ele!

O teatro de S. Carlos não constitui um elemento de civilização, mas de decadência. Se alguma coisa debilita o carácter e enfraquece o espírito — é a influência da música italiana, sentimental, amorosa, langorosa, mórbida. Uma ópera é um lupanar. Cada dueto, cada alegro, uma excitação erótica. Imagine-se uma menina ouvindo durante um ano aquela ladainha de sensualidades que se chama — Lúcia, Norma, Traviata, Maria de Rohan, Favorita, Baile de Máscaras, etc.? O adultério idealizado, o amor como a coisa superior e única da existência, o dever considerado burguês, a honestidade mal portée; e toda aquela moral suspirada, gemida, arrastada na dilacerante agonia da rabeca, assobiada irritantemente na flauta, modulada aereamente na harpa, soluçada de um soluço inteiro pelo demónio invisível que habita o violoncelo, tornada acre e triunfante nos instrumentos de metal, roncada no rabecão; e sobre esta massa de voluptuosidade instrumentada, as adúlteras, os galãs, os amorosos, todo um mundo melodioso e devasso, que geme, arqueia os braços, se torce nos êxtases da paixão, entra pelas portas das alcovas, semeia tudo de beijos, e morre de amor, romanescamente, numa ária dolente! Ah! nós não somos bárbaros. Estimamos a música. Meyerbeer, Gluck, Mozart, Beethoven, são verdadeiros pensadores. Mas S. Carlos canta-os? De modo nenhum, a não ser de dois em dois anos Meyerbeer a fugir e a fingir. De resto Donizetti, Bellini, todos os sensualistas! Ora aqueles, respeitamo-los como ideias que cantam — estes detestamo-los como erotismos que arrulham.

O teatro de S. Carlos não dá participação a todo o País da sua arte. Bem ao contrário, é um teatro exclusivo, de um público limitado, escolhido, sempre igual. O

País paga para que este público goze. Para que nós tenhamos árias, comem os lavradores sardinhas!

Enfim, nem criação de uma arte, nem formação de artistas, nem elemento de civilização, nem interesse geral do País.

Para que serve S. Carlos? É um luxo, dirão. Sim, compreendemos... Mas é ao menos, realmente, S. Carlos um teatro elegante, um centro belo e fino de vida rica?

Ah! por Deus, não! Começa logo pela mise-en-scène. Fora algumas belas telas de Rambois e Cinnati, cada vez mais raras, que mise-en-scène! Tome-se para exemplo o D. Carlos: fatos remendados torpemente, bastidores roídos da traça, uma velha mesa carunchosa onde o tirano se apoia... Os coristas agrupados a um canto, na escassez do seu número, elas com os braços nus mal lavados, eles com as botas enlameadas, soltam, num gesto dormente, uma voz por onde têm passado todas as pateadas desde 1836 — o que lhe fez perder a frescura. Nos camarotes, o veludo dos parapeitos, aos farrapos, deixa sair uma clina fétida: o papel está esgaçado, as fechaduras quebradas. Uma iluminação funerária entenebrece a sala; os velhos dourados sujos têm o aspecto melancólico de adornos de capelas antigas; os brancos rivalizam com rostos de carvoeiros. Os corredores, com os tapetes comidos dos ratos, fofos de pó, uma luz soturna e abafada, lembram o cárcere, o portal de casa de jogo. Na superior, cadeiras de palhinha áspera raspam como uma navalha de barba o pano das casacas; e o chão tem tanto asseio que os frequentadores, antes de saírem para a rua, limpam os pés nos capachos por compaixão com os varredores. Na geral bancos estreitos, como de réus, ouriçam a sua palhinha quase podre. No peristilo escuro há lama. As senhoras esperam, ao pé dos municipais formados, o chegar dos trens, expostas a um vento frio que toma aquelas paragens piores que a serra da Estrela!

Tudo aquilo é pequeno, provinciano, plebeu, e pelintra!

Não queremos acusar a empresa, não! Companhia comercial, está na lógica da sua acção. E ao mesmo tempo esforça-se, é evidente, por mostrar aqui as belas vozes, as ricas organizações musicais. Além disso ela não é culpada de que o teatro nacional pereça de penúria; nem é culpada de que a música seja, na civilização de um País, uma inutilidade sentimental. Também não construiu o teatro: recebeu-o assim do Governo; não tem obrigação de o pintar, nem de o forrar, nem de o dourar, nem de o tapetar. Como companhia comercial o seu único dever imprescritível, perante o júri comercial — é não falir.

Outro tanto não sucede ao Governo. Esse, no seu saco, não reúne uma única razão para subsidiar S. Carlos. Nem há ali um elemento de civilização, nem um centro de arte nacional, nem uma escola de artistas, nem um aproveitamento geral do País!

Não é também um centro de luxo, um orgulho de capital rica, uma maravilha da vida amplamente gozada. É um velho chique pelintra. E o Governo dá-lhe vinte e cinco contos — para o continuar a ser.


Diz-se que o Governo tem uma razão suprema para sustentar S. Carlos: — é que S.

Carlos Constitui uma distracção para a corte e para a diplomacia.

Quanto à corte... A corte sente a necessidade impreterível de se distrair? Excelentemente! Que pague e subsidie S. Carlos; que o ilumine, o forre, o tapete à sua custa; que dê por cada camarote 20$000 réis por noite, por cada stalle 4$000 réis; que o frequente com ardor, que durma lá, e que seja feliz. Ora que o País pague, não, corte respeitada e amada, não! Que eu, ele, nós, vós, eles, deitemos no erário dinheiro para tu te divertires, não, corte reluzente e maravilhosa! Perdoa, mas, como diria Cipião, não possuirás, ingrata, as nossas placas de 500 réis. A preocupação do País não é precisamente evitar que a corte boceje. Vinte e cinco contos anuais é prodigioso — para que a corte tenha onde passar a noite! Que a corte se distraia a si mesma. E o que faz cada um. A corte pode muito bem entreter a sua noite jogando as damas, ou lendo o Panorama. A corte ainda não leu o Panorama? Ah! pois aí está. Não imagina que fonte de distracções! A corte quer teatro? Que vá ao Salitre! Passa-se muito bem, a 1$500 cada camarote. A corte pode ali gozar a sua soirée regaladinha, e ir depois tomar sossegadamente o seu chá. De resto se a corte se distrai à nossa custa — então devemos intervir nos seus divertimentos. Se temos de pagar a iluminação, os cantores, as rabecas — que nos seja dado o direito de dispor e regularizar os seus prazeres. O poder moderador não poderá mais ir a S. Carlos sem pedir licença à opinião pública. E a opinião pública ficará no seu legítimo direito de responder: «Não senhor, o poderzinho moderador fica hoje em casa: ontem o poder foi ao teatro, hoje vai estudar a sua política: e nada de choramigar, senão ferramo-lo no quarto escuro!»

E quanto à diplomacia, não nos parece que o País tenha obrigação de a distrair. Os seus governos e os seus reis que a distraiam! Os srs. diplomatas que comprem soldadinhos de chumbo, ou que frequentem o Martinho! De resto a diplomacia é bem audaciosa em pretender divertir-se! Intenta ela estabelecer uma excepção insultuosa aos costumes nacionais? Aqui ninguém se diverte! Suas Ex.as estão extremamente enganados; vieram talvez para Portugal por equívoco! Tudo, entre nós, é grave. Quem vem para aqui é para a bela melancolia! Nós não gostamos de nos rir. Somos, de profissão, tétricos! Havíamos de nos rir, não era mau, e tanta tristeza por essa história atrás, e o pobre D. Sebastião nas areias de África, e o infame domínio de Castela, e outros lutos tão amargurados!... Nós trazemos na alma os crepes da nossa história. Dia e noite soluçamos, à beira do Tejo. A Lusitânia não é lugar de troça. Se VV. Exª’ se querem divertir e rir, tenham a bondade de ir para Mabille — ou pelo menos para Badajoz!


Perdoem estas longas páginas. A questão dos teatros tem uma importância pública. O Governo comete o contra-senso de subsidiar um teatro estrangeiro que é de luxo, e deixa ao abandono o teatro nacional que é de necessidade. O luxo que se sustente pelo luxo. S. Carlos sem subsídio que eleve os seus preços. Camarotes a três ou quatro libras, cadeiras a libra. Se ninguém quiser, que se feche S. Carlos. São algumas

árias de menos num palco, e alguma economia mais nas famílias. O teatro nacional que tenha um subsídio, se torne uma escola, um centro de arte, um elemento de cultura. Só isto é o senso, a verdade e a dignidade.

LI

Janeiro 1872.

Agitou-se, agita-se ainda, a questão da emigração. Há um homem, Mr. Charles

Nathan, que leva para Nova Orleães, com bons salários, todas as actividades que se ofereçam.

A emigração, entre nós, é decerto um mal.

Em Portugal quem emigra são os mais enérgicos e os mais rijamente decididos; e um país de fracos e de indolentes padece um prejuízo incalculável, perdendo as raras vontades firmes e os poucos braços viris.

Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a trasbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre. Não é o espírito de actividade e de expansão que leva para longe os nossos colonos, como leva os ingleses à

Austrália e à índia; mas a miséria que instiga a procurar em outras terras o pão que falta na nossa.

Em Portugal a emigração, tomando o rumo dos países estranh os, contraria a necessidade urgente de regularizar interiormente uma emigração de província a província.

Em Portugal a emigração não significa ausência — significa abandono. O inglês, por exemplo, vai à Austrália e à América fazer um começo de fortuna — para voltar a

Inglaterra, casar, trabalhar, servir o seu País, a sua comuna, trazendo-lhe o auxílio da vontade robustecida, da experiência adquirida, do dinheiro ganho: para Portugal, o emigrante que volta, provido de boa fortuna, vem ser um burguês improdutivo, uma inutilidade a engordar.

Enfim a emigração é má, o Sr. Nathan funesto. Somente o nosso pesar é que o Sr.

Nathan, em lugar de alguns centenares dos nossos — não nos queira levar a nós todos.

Porque partimos já, sem hesitação, em massa. Fugimos das cebolas do Egipto. E, mais felizes que os israelitas, temos em lugar do incerto milagre do mar Vermelho — os excelentes vapores da Liverpool and Mississipi Steam Ship Company.

Vamos todos!

E estranho — que haja quem estranhe a emigração. Nós estamos num estado comparável somente à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesma trapalhada económica, mesmo abaixamento dos caracteres, mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas, quando se quer falar de um país caótico e que pela sua decadência progressiva poderá vir a ser riscado do mapa da Europa — citam-se, a par, a Grécia e Portugal. Nós, porém, não possuímos como a Grécia, além de uma história gloriosa, a honra de ter criado uma religião, uma literatura de modelo universal, e o museu humano da beleza da Arte. Apenas nos ufanamos do Sr. Lisboa, barítono, e do Sr. Vidal, lírico.

El-Rei D. Pedro V tinha lido o livro de E. About A Grécia contemporânea: e aquele rei que era um grave e fino espírito, e por vezes um subtil humorista — entretera-se anotando à margem o precioso livro de About. Onde estavam nomes dos estadistas da

Grécia, o rei punha os nomes correspondentes dos homens públicos de Portugal; onde vinham as narrações das indignidades políticas de Atenas, ele lançava à margem as correlativas indignidades políticas de Lisboa; onde About desenhava com a sua pena maliciosa, cáustica e tão profundamente francesa, um certo ministro da Fazenda que era ladrão — D. Pedro V escrevera ao lado: «Cá chama-se o senhor...». Figura no livro, como torpe, segundo o julgamento do excelente rei, muito homem hoje célebre na vida pública, com bons ordenados e autoridade. O livro assim anotado, mudados os nomes —

é a descrição mais exacta do estado de Portugal. Como deve ser infeliz um rei inteligente, quando, caído em cepticismo e misantropia pela certeza que adquiriu de que está no meio de uma pocilga política, não pode todavia entregar a Nação à experiência republicana, nem chamar a si o poder absoluto! Um tal rei, se não se converte por fastio num bom rei de Yvetot — termina sempre por morrer cedo.

Ora, na Grécia, o facto permanente é a emigração. E nós emigramos, pelo mesmo motivo que o Grego emigra — a necessidade de procurar longe o pão que a Pátria não dá.

O Grego que não tem indústria, nem agricultura, nem comércio, encontra-se ao entrar na vida sem colocação: — toma então a sua carabina e vai para as montanhas que Teócrito cantou, roubar viajantes ingleses, ou embarca no Pireu e emigra para Alexandria, para

Trípolis, para as escalas do Levante, para os estados barbarescos, para Marselha, para qualquer ponto onde haja algum pão a roer ou alguma piastra a ganhar.

Nós, que (bem a nosso pesar) não podemos ir roubar para as montanhas porque não temos a quem roubar — vamos procurar o Sr. Nathan.

E o Governo, a opinião, admiram-se! Mas onde pode a plebe ganhar o pão? A grande indústria, a dos tabacos, dá 250 réis de salário a um operário com família. As indústrias fabris são poucas, periclitantes, com interrupções constantes de trabalho. A indústria mineira está abandonada à exploração de companhias estrangeiras. A agricultura vive de rotina — empobrecendo a terra e empobrecendo o homem. Não temos piscicultura, nem silvicultura, nem indústria pecuária. O trabalhador dos campos vive na miséria, come sardinhas e ervas do campo: a maior parte anda à malta, trabalhando aos dias, errante de fazenda em fazenda, por 80 réis diários, nos tempos de salário. A usura e a agiotagem, unidas, exploram a gente do campo: os tributos são fortes, as vexações do fisco incessantes. Na província, por um imposto de 20 e 30 réis, atrasado e relaxado, vimos nós pagar 5 e 6 mil-réis, com custas, etc. Os pobres não tinham a quantia? penhora no casebre! Nas cidades o operário é vítima do monopólio — monopólio no pão, no bacalhau, no azeite. Não há entre nós uma escola teórica de aprendizagem! Que querem os senhores que se faça num país destes? Sair, fugir, abandoná-lo! O País é belo, sim, de deliciosa paisagem. Mas a política, a administração, tornaram aqui a vida intolerável. Seria doce gozá-la, não tendo a honra de lhe pertencer. Só se pode ser português — sendo-se inglês!

E no entanto, perante a emigração crescente, que faz o Estado, a imprensa, a opinião?

Interrompe-se um momento, e volta-se para os colonos, aplica-lhes a luneta — e diz àquela plebe esfaimada:

— O quê! quereis ir embora? Oh imprudentes. Tendes acolá os terrenos do

Alentejo!

Ora os terrenos, os eternos terrenos do Alentejo, são simplesmente um gracejo torpe.

Os terrenos do Alentejo, tais como estão, não produzem na generalidade senão bolota. E justamente o Governo, a imprensa e a opinião oferecem esses terrenos tais como estão. Conheceis brincadeira mais abjecta?

Uma população de trabalhadores, operários, proletários, pede trabalho — senão emigra. E o País exclama:

— Não emigreis, tendes acolá os terrenos do Alentejo — isto é, tomai vós, ó proletários, ó gente do campo, á pés descalços, os quatro ou cinco mil contos que tendes aí no bolso roto da jaqueta, associai-vos em grandes companhias, comprai máquinas e instrumentos, lavrai tantas léguas quadradas, arroteai, regai, abri poços, fazei aquedutos, estabelecei lezírias, levantai grandes fundos com o vosso grande crédito, tu Manuel da

Horta, tu José da Cancela, tu ferrador, tu jornaleiro — e e nriquecei!

O Estado, a imprensa, a opinião têm razão; — somente como o trabalhador não traz ali os quatro ou cinco mil contos na algibeira e não está para os ir buscar a casa, por causa da chuva — embarca para Nova Orleães.

Dizer a um homem: — Você quer ganhar dezoito vinténs por dia? Escusa de sair do País, gaste aí uns mil contos a arrotear terrenos incultos, e vem a ter de salário, não direi os dezoito vinténs justos, mas dezassete e meio com certeza...». Dizer isto é uma facécia impudica!

Tem sido de um alto grotesco este conselho que se dá de arrotear os terrenos do

Alentejo! Todo o mundo o dá, os jornais, os frequentadores da Casa Havanesa, os moços de café, e os poetas líricos. Arroteie-se o Alentejo! exclama cada um esfregando as mãos, e puxando o fumo do cigarro.

— Pois bem, meus senhores, sim, arroteemos! Mas então aproveitemos este grande impulso nacional, esta energia das forças vivas! E de passagem — conquistemos o Santo

Sepulcro, e mandemos varrer o Largo do Loreto!

Mas a melhor facécia tem vindo do sentimentalismo:

— O quê, colonos! ides deixar a terra do vosso berço, a verde alfombra, o escondido casal na encosta do monte, o grato rouxinol que...

Mágoas diz do seu penar?

Este argumento tão económico, tão positivo, tão firmado em cifras, abala extremamente os emigrantes — os quais provam a sua comoção, remando a toda a força para o paquete da Nova Orleães.

E no entanto, na praia, a imprensa suspira!

Um facto curioso é que a opinião que mais tem enrouquecido a bradar contra a emigração, tenta sobretudo provar que a emigração para Nova Orleães não dá as vantagens prometidas pelo engajador.

Por consequência o que se condena não é o facto da emigração, que se julga irremediavelmente necessário — mas o lugar para onde se emigra. A guerra é feita à

Nova Orleães, não ao abandono da Pátria. A Nova Orleães fez o que quer que fosse à opinião pública. O caso é que a opinião não traga a Nova Orleães. Talvez questões de mulheres, como se dizia na Grã-Duquesa de Gerolstein.

Que fazem com isto a imprensa e a opinião? Incitam à emigração. Como?

Acusando o pouco que os colonos vão ganhar na Nova Orleães, e fazendo cotejos que implicitamente lhes lembram o muito que ganhariam em São Paulo ou na Califórnia.

Não detêm a corrente — mudam-lhe a direcção. Isto é — dirigem a emigração, o que é uma maneira de a desenvolver, ainda que tomando para isso o caminho mais laborioso.

Mas, enfim, temos a opinião e a imprensa confessando que a vida é extremamente difícil em Portugal, e que a acção natural que todo o cidadão português deve ao seu País

— é abandoná-lo.

Entretanto que faz o Governo? Diz-se que o Governo recomendara às autoridades do País que impedissem a emigração. Se assim é, gostamos. Um Governo impedindo a acção de uma lei económica por um ofício — tinha-se visto nas anedotas do Tintamarre.

É-nos dado, a nós Portugueses, possuir o facto real, autêntico, referendado. Somente que processo emprega o Governo? Coloca-se entre o bote e o emigrante, gritando alti-vamente:

— «Não passarás!» Agarra-o pela gola da jaqueta, ganindo: «Faz favor de não se safar?» Que o Governo nos esclareça! Bom e querido Governo!... Diante deste grave problema, a emigração, tendo de examinar as condições do País agrícola, de estudar o meio de organizar o trabalho, de regularizar uma emigração interior, de empregar os braços ociosos, de converter em vantagem nacional a energia nativa da população, de obstar ao enfraquecimento do País pela perda da sua riqueza viva, diante destes problemas — o Governo volta-se para o regedor e, por toda a ideia, por toda a ciência, lança esta ordem:

«A respeito dos colonos, o melhor é fechá-los à chave!»

Como solução a um problema económico — o Governo acha uma fechadura. A governação do Estado torna-se questão de serralharia! Um trinco é um princípio: um parafuso uma instituição! Como vós sois grandes! Deixai-vos ver bem de frente... Ah! sois imensos! Mas Sancho Pança — era maior.

LII

Dezembro 1872.

O primeiro destes artigos, tão rudemente desmantelado pelo estimável Bem

Público — censurava o clero do Funchal «por ter impedido que um negociante fosse enterrado no cemitério público, sob pretexto de deveres religiosos mal cumpridos».

O Bem Público cora no seu rosto indignado e exclama: — «A censura tem o mesmo valor que se a dirigisse ao sr. duque de Palmela, por não consentir que no jazigo da sua família sejam sepultados os cadáveres das pessoas que falecem!»

Esta argumentação é vitoriosa, aniquiladora. Som ente nos parece que não há absoluta semelhança entre o cemitério público e o jazigo de família do sr. duque de

Palmela. Quando dizemos, ao estudar a nossa geografia, «Lisboa é capital de Portugal»

— não queremos inteiramente dar a entender que a capital de Portugal seja o Hotel dos dois irmãos unidos. E acrescenta o Bem: — «Se um negociante, enquanto vivo, não quer ter nada com as orações, com as assembleias religiosas, como pois condená-lo depois de morto a essas orações e assembleias que detestava em vivo?» O que equivale a dizer: —

Se esse negociante não queria ouvir missa, nem assistir ao lausperene, nem jejuar enquanto vivo — como condená-lo, depois de morto, a estar de joelhos ao lausperene e a comer bacalhau à sexta-feira?

Sim, Bem Público, estamos absolutamente de acordo! Um homem que gosta de comer à sexta-feira rosbife não pode, sem tirânica vileza, ser obrigado a ir para debaixo da terra, amortalhado, dentro do seu esquife, comer à sexta-feira o detestado rodovalho!

Sim, Bem Público! sim, amigo! sim, honrado colega! A verdade é essa! disseste-la com boca melíflua e sábia! Deve-se excluir do cemitério todo o homem que não ouviu missa em vivo... E lá o explicas, com profundidade no dizer e alto critério no pensar: — Porque não se pode obrigar esse homem a ouvir missa depois de morto! — Sim, amigo, tu o disseste, tu, de juvenil fé e de discreto lábio.

Depois o Bem, num outro período austero, pretende combater a afirmação das

Farpas — «que o cemitério não pertence aos padres, pertence aos cidadãos». Para aniquilar esta ideia o Bem afirma que poderia dar uma longa razão, e explica qual é essa razão. Mas acrescenta: «Não a daremos, porque seria insensata» (Bem Público, pág.

188, linha 25). Não, Bem, não, tu não és insensato! não te calunies, amigo, não te humilhes, Bem! Não rojes assim uma cabeça penitente no pó igualitário do macadame!

Não, tu até tens boa ortografia! Até tens bem boa forma de letra! Se quisesses, até eras subtil! É que não queres! Se tu quisesses!

E continua o estimável Bem argumentando. As Farpas disseram: — «Os cemitérios têm a sua origem na higiene, na polícia, na moral, na vida municipal: não têm a sua razão de ser na teologia». E o Bem exclama: — «Pois dizendo tal caem num erro histórico: os cemitérios têm a sua razão de ser na teologia: basta o nome e a história para prová-lo». Mas então uma consideração pavorosa acode: a teologia é pelo menos — deve sabê-lo o Bem — posterior aos primeiros séculos do cristianismo. Começa com as escolas, e com os doutores. Ora se os cemitérios datam apenas deste tempo, segundo afirma o Bem Público, se só têm a sua razão de ser desde que a teologia teve a sua razão

O excelente jornal, o Bem Público, num artigo amargo e piedoso, trabalhado com doçuras de sacristia e repelões de sala de armas, de resto subtil e curioso — dá-nos a honra de sacudir, com a sua pesada mão católica e romana, três pobres artigos das

Farpas. de dominar — o que acontece? É que todos os mortos, desde Nemrod, estiveram aos milhares e aos milhares, enfastiados, de braços cruzados, esperando que a teologia lhes permitisse deitarem-se nos seus sepulcros. Horrorosa antecâmara! Esperaram séculos! E vinham mais, e mais, e mais! Em que se entretiveram tanto tempo, envoltos nos seus sudários, impacientes pelo seu enterro? Oh! sábio Bem Público, diz-no-lo, tu que o sabes! Se os homens só foram enterrados desde que a teologia se fixou em grossos tornos — em que lugar tenebroso aguardaram o seu dia de sepultura os primitivos árias, os luminosos índios, o persa trabalhador, o grego erudito e subtil, os milhares de habitantes do império romano, as raças que viveram junto ao Nilo, e os povos bárbaros que habitavam o norte da Europa, e todos os habitantes de todos os continentes, de todos os séculos? Di-lo, sábio Bem! Será verdade que eles passeavam pelo éter, fumando o seu cigarro — à espera que Santo Agostinho nascesse? Como tu és instrutivo, oh Bem! Só há cemitérios onde há teologia católica. E corno explicas então os cemitérios modernos de Constantinopla e do Cairo, e os de todos os países maometanos, e os de todos os outros países onde floresce alguma das 1 religiões que florescem na Terra, além da católica? Explica isto bem, Bem!

Mas o piedoso jornal exclama ainda: «Os católicos não impedem que os que têm pouca religião ou nenhuma, sejam enterrados: porque não estabelecem as câmaras municipais, para esses, cemitérios especiais?» Parece-nos prudente este alvitre do Bem: estabelecer cemitérios para quem tem muita religião: outros para quem tem bastante: outros para os que possuem alguma: outros para os que alardeiam pouquíssima: outros para os que não apresentam nenhuma. Enfim, um cemitério para cada medida! Um cemitério aos gramas! Ah Bem, como tu vais mal!

O segundo artigo das Farpas censurava que «os missionários vendessem cartas da Virgem Maria a diversos devotos».

O Bem Público diz que nós agitamos argumentos bicórneos. Mas não combate, nem aprecia, nem sequer indica — esses argumentos. É timidez? É desdém? É pudor?

Somente acrescenta: — «A história é falsa: 1º porque os jornais de Braga não falaram em tal...»

Mas, querido Bem, os jornais de Coimbra, os jornais do Porto, e os jornais de

Lisboa, que são liberais, contaram-no. Vale alguma coisa que o não referissem os jornais de Braga, que são ultramontanos? E esses mesmos não estão anunciando a cada momento livros que se vendem para evitar o fim do mundo, cartas vindas do Céu, relíquias achadas, etc.?

Diz mais o Bem: «2º porque em Braga não há missionários!» Como assim!

Tresloucas, Bem! Não há missionários em Braga? Diz antes, amigo, que não há turcos em Constantinopla! que não há água nos rios! que não há estrelas no céu! que não há sons na música! Ah querido! Não há missionários em Braga? Onde os há então, em

Berlim?

No terceiro artigo, as Farpas tinham censurado o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho, por ter proibido que as mães levem os filhos à Igreja! O Bem Público escandaliza-se e grita: — «O que iam as crianças fazer aí? Se as mães queriam ir à missa, e não podiam deixar as crianças em casa — que não fossem à missa, que estão em primeiro lugar os deveres da lactação, que os desejos da devoção

Esplendidamente bem dito! Mas quem o disse? Foi Michelet decerto, o iniciador naturalista da educação anticatólica? Foi Proudhon talvez, o rude inimigo da Igreja?

Não, meus bons senhores! não, Nação! não, Braga! Foi o Bem Público, jornal católico, romano, devoto, piedoso, ungido em água benta! Os deveres da lactação primeiro que os desejos da devoção! Mas é perfeitamente revolucionário! A lactação antes da devoção — isto é, a natureza antes do misticismo, a razão antes da fé, o dever humano e consciente antes do dever divino e transcendente, o raciocínio antes do dogma, a higiene antes do Evangelho, a mãe antes da devota, o preceito naturalista antes da regra da

Igreja, o homem antes de Deus! Bravo, Bem Público! Segundo tu, o preceito, a missa, a

Igreja, são coisas secundárias, indiferentes, para quando houver vagar. Objecto de luxo, para os dias de ócio, uma forma do teatro aos domingos! «Que farei hoje, irei à igreja ou

à Rua dos Condes?» De modo que só quando a mulher tiver amamentado seu filho, arranjado a sua casa, cozinhado o seu jantar, cumprido todos os seus deveres humanos, e se achar numa hora desocupada e vaga — é que deverá ir à missa? Dizes excelentemente! Mas então repara bem, ó Bem. Se pões o mais pequeno dever humano antes do mais pequeno dever católico — rachas de alto a baixo o catolicismo: se a mãe deve amamentar antes de rezar, o homem deve obedecer à sua razão consciente antes de obedecer ao preceito religioso: tens a análise, a liberdade religiosa, a reforma, a revolução. Abres uma fresta no mundo velho e entra-te por ela um mundo novo! O Bem

Público, estás pois assim naturalista e ateu? És então um falso devoto? Por cima da tua sotaina de sacristão pões uma faixa escarlate de membro da comuna? O Bem! Espalhas tu água benta ou petróleo? Treme, desgraçado! enquanto a Nação tua irmã, enquanto o

Diário Nacional, a Crença, estarão muito contentes no Paraíso, tu, Bem Público, excluído da bem-aventurança por teres renegado a fé, errarás, como uma sombra aflita, na vastidão do céu negro, através de interminável dor, aos encontrões com as sombras condenadas de Sardanápalo, o pagão, e do aborrecido Pilatos!

Ah! Bem Público, excêntrico maganão, conserva-te quieto na tua doce sombra!

Reza, jejua, canta no coro, usa cilício — mas deixa-nos em paz.

Contenta-te em ser um jornal boa pessoa, pesadote e pacatote — e a ter o inteiro aplauso de antigos egressos. Mas não venhas interpor-te no nosso caminho. Toma ao teu canto o teu rapé, e usa em silêncio a tua flanela. E serás grande, ó Bem! ó bom Bem! á

Bem bom! Bum!