Uma Campanha Alegre/I/XXXI
XXXI
Setembro 1871.
Os jornaes de Madrid contaram que S. A. R o principe Humberto todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reunem os italianos. Esta familiaridade, inteiramente contemporanea da Internacional, enchia de um jubilo espumante a imprensa monarchica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o principe Humberto, se não como um principe, ao menos como um consumidor! S. A. porém chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguem, e se tomou café não teve a inspiração de o tomar no Martinho! (Tanto a etiqueta cohibe os instinctos mais naturaes!)
A população de Lisboa, ficou desconfiada, sem saber se a abstenção de S. A. significava economia, se desdém. No primeiro caso queria propô-lo deputado reformista por Vouzela ou Palhares, ficando assim definitivamente acomodada na pení nsula a casa de Sabóia: no segundo desejaria simplesmente voltar-lhe umas costas democráticas, ficando assim exuberantemente vingado o café Martinho.
Calmai-vos, Portugueses, e escutai-nos! A abstenção de S. A. a respeito do café e de outros inefáveis encantos da Baixa — só significa timidez. Tantos tronos aluídos, tantos reis errantes, tantos palácios onde o musgo nasce, têm tornado a espécie timorata.
Um rei, um príncipe, não se afoita assim pelo meio das populações, com a despreocupação de um homem que entra na Deusa dos Mares. Os reis hoje passam de largo, cosidos com a parede, tiquetique, em passinho miúdo, colhendo a respiração, olho no povo, olho na porta — como quem passa por um cão de fila, que dorme ao pé de um muro de quinta, largamente envolto no sol.
O príncipe Humberto teve estas precauções delicadas: chegou devagarinho, esteve quietinho, partiu escondidinho. E aí está, Portugueses, porque S. A. não foi bater com a ponteira da sua bengala no mármore de uma mesa do Martinho — bradando «genebra a um!»
Que S. A. R. se tranquilizasse, porém! Nós vamos no nosso trigésimo primeiro rei, e ainda não devorámos nenhum. E decerto não iríamos experimentar o dente sobre um príncipe de outras terras! Tínhamos em nossa honra entregá-lo, escorreito e são, ao
único país legitimamente autorizado a devorá-lo — o belo país de Itália, Italia mater!
Tragar um príncipe alheio seria indelicadeza e esquecimento das boas relações internacionais. Os compêndios de civilidade, Alteza, ensinam-nos que se não mete a mão no prato do vizinho! Sabemos, Alteza, que, quando nos mostram um fruto raro, não
é da etiqueta abocanhá-lo, e quando nos mandam um gentil príncipe, não é polido engoli-lo de um bocado! Podia V. A. passar tranquilo no meio deste doce povo: podia
V. A. mesmo ter sido mais afável com os cavaleiros da tourada de Sintra, para quem, dizem os despeitados, V. A. não teve senão charutos abomináveis atirados com mão enfastiada. E creia V. A. que não seria estrancinhado! Portugal sabe respeitar o príncipe do seu próximo. Ser-nos-ia mais fácil, instados pela gula revolucionária, tomar o mesmo
Sr. Melício às colheres — o mesmo Sr. Vaz Preto às fatias! Mas cravar o queixal sôfrego num príncipe de Itália, nossa irmã... Nunca! Se tal fizésseis, o Sr. João Félix, lente de civilidade, jamais vo-lo perdoaria, ó Lusos!
Os jornais de Madrid contaram que S. A. R. o príncipe Humberto, todas as noites, em Madrid, ia tomar o seu sorvete a um café onde geralmente se reúnem os italianos.
Esta familiaridade, inteiramente contemporânea da Internacional, enchia de um júbilo espumante a imprensa monárquica e o dono do estabelecimento. Em Lisboa lia-se isto — e esperava-se o príncipe Humberto, se não como um príncipe, ao menos como um consumidor! S. A., porém, chegou, esteve, partiu devagarinho, em bicos de pés, para não despertar ninguém, e se tomou café, não teve a inspiração de o tomar no Martinho!
(Tanto a etiqueta coíbe os instintos mais naturais!)
XXXII
Setembro 1871.
Treguas por um instante n'esta aspera fusilaria! N'uma pagina á parte, tranquilla e meiga, pomos a lembrança de Julio Diniz. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem n'elle, na sua obra gentil e facil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espirito ex- cellente não ficou popular: a nossa memoria, fugitiva como a agua, só retem aquelles que vivem ruidosa- mente, com um relêvo forte: Julio Diniz viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.
Um só livro seu, um romance, fez palpitar fortemente as curiosidades simpáticas —
As Pupilas do Sr. Reitor. Esse livro fresco, quase idílico, aberto sobre largos fundos de verdura, habitado por criações delicadas e vivas — surpreendeu. Era um livro real, aparecendo no meio de uma literatura artificial, com uma simplicidade verdadeira, como uma paisagem de Cláudio Loreno entre grossas telas mitoló gicas. Era um livro onde se ia respirar.
Júlio Dinis amava a realidade: é a feição viril e valiosa do seu espírito.
Nunca porém se desprendeu do seu idealismo e sentimentalismo nativo. A realidade tinha para ele uma crueza exterior que o assustava: de modo que a copiava de longe, com receio, adoçando os contornos exactos que a ele lhe pareciam rudes, espalhando uma aguada de sensibilidade sobre as cores verdadeiras que a ele lhe pareciam berrantes. As suas aldeias são verdadeiras, mas são poetizadas: parece que só as vê e as desenha quando a névoa outonal esfuma, azula, idealiza as perspectivas.
Nunca um sol sincero e largo bate a sua obra. Tudo nela é velado de névoa poética. Não
é que não ame, não persiga a verdade: somente quando a fixa na página traz já a pena toda molhada no ideal que o afoga.
Dizem que os seus livros são memórias, e que ele faz a aguarela suave das paisagens em que viveu, e que personaliza, em criações finamente tocadas, os sentimentos com que palpitou; daí decerto a realidade que os seus livros deixam entrever, fugitivamente. Mas parece que não fora feliz, e que só ao compassar dos soluços o coração lhe aprendera a bater: daí pois aquelas meias-tintas azuladas e melancólicas em que se move, num rumor brando, o povo romântico dos seus livros, e com que ele procura esbater e adoçar a crueza das realidades humanas que o fizeram sofrer.
Era sobretudo um paisagista. As suas figuras só servem para dar expressão e vida
à paisagem.
Os campos, as searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros a decoração que cerca uma humanidade fortemente sentida: as suas camponesas romanescas, os seus galãs violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas — é que foram por ele colocadas assim para poder, em torno delas, erguer com cuidado, árvore por árvore e casal por casal, as aldeias que tanto amava. Há nos seus romances tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais ideia, mais acção, mais vida, que as figuras vivas que em torno se movem.
Depois das Pupilas do Sr. Reitor as obras de Júlio Dinis passaram de leve, entre as atenções transviadas. Terá o seu dia de justiça e de amor. À maneira daqueles povoados que ele mesmo desenha, escondidos no fundo dos vales sob o ramalhar dos castanheiros, os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se vão equilibrar e se vai pacificar a paixão e o seu tormento.
Tréguas por um instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga, pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto encanto, e que merece algum amor. Tal é o nosso mal, que este espírito excelente não ficou popular: a nossa memória, fugitiva como a água, só retém aqueles que vivem ruidosamente, com um relevo forte: Júlio Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve.
Foi simples, foi inteligente, foi puro. Trabalhou, criou, morreu. Mais feliz que nós, tem o seu destino afirmado, e para ele resolveu-se a questão.
Passemos pois... Já do outro lado, para além desta página serena, ouvimos, inumeráveis como abelhas vingadoras, as ironias aladas que, com um rumor impaciente, zumbem no ar!
XXXIII
Setembro 1871.
«A historia é a consciencia escripta da humani- dade», disse um homem, que teve, quando luctava, o segredo das palavras que ficam.
Nós podemos pois dizer, comezinhamente, que a historia dos Açores é a consciencia escripta dos Açores.
Ora sucede que entre o passado Governo de S. M. e o Sr. Sena Freitas se trocou este contrato:
O País daria ao Sr. Sena Freitas 600$000 réis por ano, bom metal: por outro lado o
Sr. Sena Freitas encarregar-se-ia de pôr em letra redonda, com boa ortografia, prosódia sã, e pontuação certa, a dita consciência dos Açores.
Mal o contrato foi assinado, estalou sobre toda a linha de gazetas uma argumentação indignada. Acusava-se o ministro, escarnecia-se o contrato, estranhava-se o historiador, condenava-se a história — e os mais rudemente batidos eram os 600$ 000 réis.
Como se diria na Bíblia, o escândalo veio pelos fariseus!
Pois bem, para este contrato, nós só temos bênçãos e flores. E a plebe irreflectida pode ladrar em vão!
Ouvi cá, homens de estreita fé! Se o Sr. Sena Freitas se tivesse decidido espontaneamente, gratuitamente, a escrever a história dos Açores, que garantia dava ele de fazer um trabalho de poderosa crítica? Que garantia dava de compor mesmo um livro minucioso, erudito, cheio de factos, beneditino? O Sr. Freitas dava apenas a garantia do seu espírito. Mas ai! o espírito dormita, sofre obscurecimentos, caduca — e aí ficava estragada a história dos nossos bem-amados Açores.
Ouvi mais! Se o Sr. Sena Freitas tivesse sido encarregado por este decreto:
«Manda el-Rei que o Sr. Sena Freitas seja um grande historiador...»que garantias dava o
Sr. Sena Freitas de que havia de criar uma obra original e profunda? O Sr. Freitas dava só a garantia da sua obediência ao seu Rei. Mas ai! ai! a obediência aos reis pode fazer concessões — ou piruetas. Que amanhã, quod Deus avertat, se proclamasse a República
— e vós ficaríeis sem história e sem Freitas, ó Açores.
E agora respondei! Preso por um contrato, ligado por uma escritura, não dá o Sr.
Sena Freitas a garantia suprema, a garantia da sua honra? Obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador, tem portanto toda a sua dignidade empenhada em ser — um grande historiador!
Podia S. Exª, por exemplo, não possuir outra aptidão senão escrever folhetins; podia não dispor de crítica, nem de método; podia não fazer ideia do que é a ciência histórica e a filosofia da história; podia não ter elevação de pensamento, nem estudos especiais; podia não ter estilo nem gramática — embora! Estamos descansados.
S. Exª obrigou-se por um contrato a ser um grande historiador: S. Exª é um homem honrado: S. Exª será um historiador grande! Acreditamos em S. Exª.
Conhecemos S. Exª. Se S. Exª houvesse contratado com o Sr. Ávila que seria, a
600$000 réis por ano, um poeta maior que Vítor Hugo, S. Exª (temos a inteira certeza), trabalharia, lutaria, compraria um dicionário de rimas, consultaria o Sr. Vidal, mas seria um poeta maior que Vítor Hugo. Se S. Exª tivesse contratado ser um candeeiro do
Rossio, S. Exª cumpriria com valor o seu contrato — e seria um nobre candeeiro do
Rossio!
Sua Exª contratou! A fé jurídica não admite conciliações. Sempre queríamos ver agora qu e S. Exª se atrevesse a não ser um grande historiador! Em Portugal há tribunais.
Nós seguiremos o trabalho de S. Exª, página por página, e quando S. Exª não for admirável, como crítica, como ciência, como forma, requeremos à Boa Hora: — «Que, em virtude do contrato de tantos de tal, seja o Sr. Sena Freitas citado para, no prazo de vinte e quatro horas, ser sublime a páginas tantas da sua obra sobre os Açores!»
O contrato não foi escrito e registado para que os Açores tenham um historiador medíocre!
Sobre o Sr. Sena Freitas pesa desde hoje a responsabilidade de ser sublime. S. Exª
é um rapaz inteligente e espirituoso. Não basta, tem de ser um grande homem!
Contratou para isso, tem de o ser! Cara alegre e espírito desafogado! É para ali!
Ah! queria talvez ganhar 600$000 réis e não ter o trabalho de ser um historiador como Michelet! Há-de sê-lo! Já não lhe é permitida a obscuridade, nem a mediocridade!
Queira ou não, tem forçosamente de ser um génio! Nem uma só vez mais na vida lhe é concedido o doce desafogo de não ter gramática! Há-de ser maior que Guizot, arranje as coisas como quiser! E se recuar, se se eximir, se hesitar, a Boa Hora lá está que, de contrato em punho, e brandindo as contas do processo, o obrigará à força — a ser um homem imortal!
Em Portugal só assim se podem alcançar grandes homens! É obrigá-los por um contrato. Ah! se o Governo tivesse contratado com o senhor A que ele fosse, a tanto por mês, um dramaturgo maior que Shakespeare — não teria o País a vergonha de confessar que o Sr. A é um dramaturgo inferior a Guilbert de Pixerecourt! Se o Governo tivesse contratado com o senhor B, que ele fosse um homem de Estado como Pitt — não passava a Pátria pelo vexame de ver que o senhor B e, como político, ainda inferior a Sancho
Pança, rei de Baratária! Que significa, num país culto, abandonar assim os homens à sua iniciativa? Que intento é este de deixar a cada um a liberdade de ser medíocre? O
Português só poderá ser inteligente obrigado por um contrato, forçado pelos tremendos laços da lei, amarrado de pés e mãos!
Que o talento seja imposto como o serviço militar! Recrutem-se soldados para
Caçadores 5, mas recrutem-se também génios para Vila Nova de Gaia! Porque não temos um poeta épico? Que faz o Governo? Quer desleixar a epopeia, como desleixa a fazenda? A Pátria precisa de grandes homens — fulminem-se penas severíssimas a quem não for grande homem!
É forçoso confessá-lo! O País está embrutecido, mas a culpa vem dos poderes públicos. Que se decrete que todo o cidadão válido deve ao seu país, além da décima — um soneto! Que todo aquele que tenha de mostrar documentos, seja adstrito a apresentar, além da ressalva e da folha corrida — um artigo de almanaque! Haja o génio obrigatório! E o País florescerá, e poderemos definitivamente esperar que em Mato
Grosso comece enfim a fazer impressão — a grande civilização lusitana!
XXXIV
Setembro 1871.
Andavamos inteiramente esquecidos da’India! Uma clara manhá ella apparece violentamente no meio de nós, envôlta n’um telegramma do sr. visconde de S. Januario. Por essa occasião muito bom portuguez se admirou que a India ainda fosse nossa! Ella sahira, havia muito, das pompas solemnes do artigo de fundo. Quasi não apparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arruinada, esteril, dobrada sobre si mesma, todos a suppunhamos unicamente occupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A noticia de que ella ainda tinha vitalidade bastante para se revoltar, —espantou! A certeza que ainda alli havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telegraphos, — quasi aterrou!
Uma vez que a gloriosa India ainda existia, era necessario que a respeito d’ella existisse o correspondente brio patriotico. Sacudiu-se o velho brio patriotico do pó e da caliça-e cada um envergou o velho brio patriótico!
Uma vez que a gloriosa índia ainda existia, era necessário que a respeito dela exis-tisse o correspondente brio patriótico. Sacudiu-se o velho brio patriótico do pó e da caliça — e cada um enve rgou o Começou então o movimento. A Baixa teve os seus alvitres heróicos. Os jornais perfilaram de novo, em parada, as frases solenes, de peruca e rabicho, que celebram num ritmo dormente o alto amor da Pátria. Meteu-se na mão do sr. infante D. Augusto uma espada — condicional. A própria Estefânia, comovida, venceu os nervos e a preguiça, e partiu, cheia de mobília e de brio, a salvar o mapa das possessões
Nós, entretanto, ríamos.
Oh, Santo Deus, não era cepticismo, não! Como outros quaisquer, mais que outros quaisquer, amamos este pobre e velho Portugal. Mas sabemos, meus dignos senhores, que uma revolta militar na índia é alguma coisa tão extremamente insignificante e efémera como um meeting civil no reino.
O grosso do exército da índia é composto de indígenas — mouros, canarins, banianos e gentios. Estes nomes melodiosos designam castas; e as castas na índia conservam ainda todo o seu velho e irreconciliável separatismo. As castas desprezam-se, guerreiam-se, e nunca absolutamente se fundem. Quase não se comunicam. Se um baniano toca a púcara de barro poroso de um canarim, o canarim espedaça num cunhal a púcara desventurada! Estas hostilidades, nada as dissipa: nem as promiscuidades inevitáveis da caserna, nem os rigores igualitários da disciplina. De sorte que o exército, formado destes elementos antipáticos, que se não unem, que se amaldiçoam, e onde apenas há o contacto material dos ombros na fileira — não tem unidade nem coesão.
Além disto, todas as castas têm hábitos fatais, horas impreteríveis. Está o soldado gentio de guarda: se chega a hora do seu arroz, e não lho trazem — ele pousa tranquilamente a espingarda, cruza as mãos atrás das costas, e vai ao quartel ladrar contra o rancheiro; se chega a hora da ablução, atira a arma para um canto, e corre, aos pulos, a acocorar-se à beira do mar! E não há severidades, não há castigos, que alterem estes hábitos orientalmente fatais.
A oficialidade deste exército compõe-se pela maior parte de portugueses nascidos na índia — mestiços, castiços ou descendentes. São os filhos de antigos degredados, de velhos bastardos da fidalguia indiana, de oficiais expedicionários, etc. Além destes oficiais nativos — há os oficiais europeus, mandados do continente, os expedicionários.
Estes, por altos motivos que só os grandes homens de Estado como o Sr. Barros e
Cunha podem saber, têm um soldo maior que os oficiais índios. Ora os oficiais índios, com um zelo pelas rupias extremamente compreensível, quereriam ter um soldo igual aos oficiais que vão de Portugal. Por consequência requerem. (Têm a ingenuidade
Andávamos inteiramente esquecidos da índia! Uma clara manhã ela aparece violentamente no meio de nós, envolta num telegrama do sr. visconde de S. Januário.
Por essa ocasião muito bom português se admirou que a índia ainda fosse nossa! Ela saíra, havia muito, das pompas solenes do artigo de fundo. Quase não aparecia nos orçamentos. Obscura, velha, arruinada, estéril, dobrada sobre si mesma, todos a supúnhamos unicamente ocupada, nas brumas distantes, a comer o seu arroz! A notícia de que ela ainda tinha vitalidade bastante para se revoltar — espantou! A certeza que ainda ali havia soldados, cidadãos, fortalezas, interesses, telégrafos — quase aterrou! asiática de requerer!) Mas quando desesperam dos despachos da Pátria, permitem-se, como uma variedade mais ruidosa, uma certa porção de revolta! Levam alguns bata-lhões para a rua e soltam o babadé. O babadé é um ah! ah! ah! prolongado, uivado — cortado pela mão espalmada que bate rapidamente sobre a boca. Tais são as revoltas da
índia, á concidadãos timoratos!
Para conter este elemento indígena, que meios tem o sr. governador-geral? Diz-se que o sr. governador-geral, para defesa dos grandes interesses portugueses, dispõe da guarda municipal.
Essa guarda foi de todo o tempo composta de soldados portugueses, que os índios chamam paquelós. Os portugueses que vão servir como funcionários são considerados aristocracia, e chamam-se fringuis. Na índia o Sr. Melício seria um fringui!
Esta guarda foi sempre segura, fiel e valente. Somente, hoje, tem a qualidade lamentável das legiões de Varo: — já não existe! A Pátria distraída esqueceu-se de renovar os paquelós: e a Morte, com um desdém pelas nossas possessões que nunca lhe censuraremos bastante, foi-os levando, e paqueló após paqueló, destruiu na índia todo o poder lusitano. Hoje duas ou três companhias de mouros compõem a guarda fiel: estes pobres mouros arrastam na vadiagem os sapatos rotos, e estimulam o seu entranhado patriotismo com aguardente de banana, bebida alucinadora que leva à caquexia! — O que hoje há, pois, nessa índia gloriosa e tradicional, para policiar e sustentar o poder português, é um bando de mouros sujos, idiotas, e bêbedos de aguardente!
Pois bem! ainda assim uma revolta na índia não tem seriedade. E o motivo é que os oficiais, que, para terem maior número de rupias no seu soldo, tentaram uma revolta, vêem-se, realizada ela, singularmente embaraçados. Vêem-se sós.
Em primeiro lugar os soldados não vão por um impulso próprio. Divididos em castas, fracos, ignorantes, odiando-se, sem terem interesse comum ou vontade comum — vão unicamente porque os seus oficiais, no primeiro momento, lhes mandaram que fossem. É mesmo assim — como eles dizem. Se contra eles, porém, se apontar uma espingarda fiel — como estão ali, não em virtude da revolta sua, mas por obediência à revolta alheia — dispersam.
E depois, os oficiais revoltados não têm rancho para lhes dar. O povo conserva-se indiferente, sem adesão, sem simpatia. Os que possuem alguma rupia, nesses dias enterram-na; os que têm arroz ensacado, escondem-no. Ninguém confia uma para a um oficial revoltado. Ao segundo dia de desordem, quando chega a hora do rancho, os oficiais só têm a dar aos soldados — palavras de entusiasmo! Os soldados (nunca podemos compreender por quê) preferem o arroz à retórica; e começam a debandar.
Além disso no exército índio não há pólvora, nem munições... Quase não há armas!
Por outro lado, à mais pequena insurreição, a disciplina, já famosamente diminuta, desaparece, sem pudor nenhum; e as diversas castas aproveitam os vagares da revolta — para se espancarem com fervor.
Acrescente-se que os oficiais da índia não têm instrução, nem táctica; não são capazes de ordenar uma marcha hábil, de formar um campo entrincheirado, de darem um apoio estratégico à revolta.
Ao fim de dois dias de gritos e de babadé — acham-se nesta situação triunfante: sem ponto de apoio, sem adesões, sem rancho, sem munições, sem dinheiro, sem disciplina. Se o governador-geral faz sair um bando que, ao som do tambor, propõe a amnistia, cada um solta um ah! de satisfação e de alívio, e volta para o seu quartel!
Ainda tendes medo, patriotas da Arcada?
E não se deve esquecer ainda esta circunstância: o índio das nossas possessões é de uma debilidade gelatinosa.
Anémico, miudinho, assustadiço, consumido pelo sol, mal sustentado de arroz, o
índio cai de bruços com uma carícia no rosto, e morre com uma palmada na espinha. E uma fraqueza comprometedora. As pessoas inexperientes e impacientes fazem um prodigioso consumo de índios. Um empurrão, e o índio tomba — na eternidade. Não há talvez desembargador algum em Goa que não tenha, com a sua mão grave e jurídica, assassinado um índio! Dá-se uma pancada leve no ombro do índio — - ele cambaleia, suspira, nesse dia come pouco, no outro estende-se ao sol a gemer, começa a beber muita água, e morre.
Depois, o soldado índio, mal ouve o nome de paqueló — treme. Aí vem o paqueló
— foge! Vê o paqueló — atira-se de bruços, já moribundo.
Há tempos, em Mapuçá, um regimento de 400 praças revoltou-se. Sai para a rua e vem fazer babadé para defronte da casa do comandante. O comandante, à janela, em chinelas, tomava café, e entre os goles, vagarosamente sorvidos, exclamava para o regimento insurgido:
— Ah! vocês revoltaram-se?
Depois para dentro, ao criado:
— Mais açúcar!
E continuava:
— Bem, eu já vos falo. — Uma colher! — Assim é que estais disciplinados, velhacos?
— Dá cá o cachimbo! — Ora deixai estar que os paquelós aí vêm! — lume!...
O regimento hesitava. Nisto aparece, numa pequena elevação, a distância, o tenente Bruno de Magalhães que vinha, com 20 paquelós, bater os 400 revoltosos. Os
400 revoltosos, só com ver ao longe os 20 paquelós, debandaram aos gritos. Nem mesmo se chegou nunca a saber por que se tinham revoltado!
Porém, á homens de Estado, podeis dizer-nos:
— Mas se a Inglaterra meter lenha para o forno?
A Inglaterra?! No dia, meus senhores, em que a Inglaterra mandasse um soldado à fronteira da índia Portuguesa — todo o território índio, mestiços, canarins, descendentes, todas as castas, todas as fraquezas se levantavam num ímpeto. Povo e tropa na índia tudo querem — menos o Inglês.
O povo não quer o Inglês — porque no nosso regime ele vive na ociosidade, no desleixo, na sua imundície querida, na sua bem-amada traficância; e se fosse inglês, o cipaio viria obrigá-lo, a golpes de curbach, a ser policiado e a ser trabalhador.
E o soldado índio detesta o Inglês — porque, sob o nosso regime, ele pode subir os postos até major; e sob o regime inglês não subiria nem a cabo!
Aí está a razão por que uma revolta na índia não tem valor, e por que foram tão supérfluos os vossos fervores patrióticos!
No entanto, é indispensável que estes sustos acabem! O País está débil e fraco, e estas comoções matam-no. Há pouco Macau, agora a índia! Que as colónias nos deixem respirar! Que se revoltem, sim, mas com intervalos, sem acumular. Que se abra mesmo um registo no ministério da Marinha. Em Setembro de 71 revoltou-se a índia? — Pois bem, só em Setembro de 1872 será permitido que Timor se subleve.
A índia não nos serve senão para nos dar desgostos.
E um pedaço de terra tão escasso que se anda a cavalo num dia. As pequenas povoações caem em ruína e em imundície; não há nelas movimento, nem iniciativa; a
única cultura é o arroz, que exportam a 5 para importar a 8; a única indústria, fazer olas, que são os encanastrados de palmeira com que se erguem os pacaris, alpendres coloridos e frescos que sombreiam as janelas; não existe nenhum comércio; os tributos esmagam; dois ou três homens ricos, Jossy e mais dois, que se vêem nos patins, descalços e encruzados, comendo o seu arroz com a mão, têm o dinheiro enterrado, e quando se lhes garante um forte juro, cavam e emprestam; as escolas são uma ficção grotesca; as estradas são a espessura do mato; a higiene é feita pelos cães que lambem as imundícies na rua; a polícia é feita por cada um com o seu bambu; uma intriga sórdida e rastejante agita indígenas e europeus; o deboche tem o ardor do clima; os soldados embebedam-se com aguardente; e no entanto velhos pardieiros, que se esboroam às mordeduras do sol, esconderijos de corvos, lembram as nossas glórias e alastram o chão de caliça. Tal é a índia Portuguesa.
Noutro número das Farpas lembrámos, a respeito das colónias, este grande melhoramento — vendê-las! Ocorre-nos outro ainda maior a respeito da índia — dá-la!
E quanto a glórias nacionais, contentemo-nos com o barítono Lisboa e com o Sr.
Arrobas — e é já glória bastante!
A única coisa por que conservamos a índia, é por ser uma glória do passado. Oh! meus senhores, também D. João I é uma glória, e nós não nos conservamos abraçados à sua sepultura, soluçando e gemendo.
O passado é belo e heróico — bem: quando o passado pretende antepor-se aos interesses do presente, o passado é caturra! Seria verdadeiramente impertinente que uma rosa murcha tivesse a pretensão de andar na boutonnière da nossa sobrecasaca: que uma pomada rançosa do ano passado ousasse querer anediar os nossos cabelos: e que o esqueleto da mulher amada tentasse ainda dar-nos beijos!
Se podemos vender a índia aos Ingleses, vendamos a índia, por Deus! E quanto às glórias de Dio e de Damão, se elas se querem conservar na história e na pompa da epopeia, quietinhas e caladinhas, terão a nossa consideração. Mas se, quando se tratar de negociar, elas se interpuserem com recordações importunas, dir-lhe-emos insolências, e desejaríamos dar-lhes coronhadas. Fora daqui, caturras! voltai para o sepulcro e para o pó das crónicas!
D. João de Castro, hoje, não serve senão para os rapazes de latinidade fazerem temas na província. Tem paciência, glorioso varão! Sobre as tuas soberbas façanhas, o nosso tempo científico, positivo e racionalista, não tem senão a dizer-te:
— «Cumpriste sublimemente, meu velho D. João, os deveres do teu tempo segundo as ideias do teu tempo. Dorme agora quieto o teu grande dormir; e deixa que nós, segundo as ideias do nosso tempo, cumpramos os deveres do nosso tempo!»
XXXV
Outubro 1871.
Sahiamos do Antony. Um pouco adeante de nós, subindo a rua Nova do Carmo, vinham conversando dois hispanhoes, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do Chiado, alguns fadistas, n’um grupo ruidoso, tocavam guitarra.
Sahiamos do Antony. Um pouco adeante de nós, subindo a rua Nova do Carmo, vinham conversando dois hispanhoes, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do Chiado, alguns fadistas, n’um grupo ruidoso, tocavam guitarra.
Quando os dois hispanhoes passavam, os fadistas rompem a chasquear e, para variar um pouco os seus prazeres, esbofeteiam um hispanhol. O outro então, surprehendido, ergue a mão, e, com um vigor castelhano, dá em redor algumas bofetadas sonoras e fulminantes que fizeram rolar na lama os magros tocadores de guitarra.
N’isto uma patrulha, que descia o Chiado, vem pé ante pé, faz um cêrco, e tomando as espingardas pela coronha começa por atirar ás costas do hispanhol uma pancada horrivel, que o deixa rendido, suffocado, a arquejar. A esse tempo já um fadista gania, escalavrado, sob outra coronhada
Respeitemos, submissos, este processo policial.
O redactor de um dos mais vivos jornais de Lisboa contava-nos pouco depois, na redacção, que vira na véspera alguns polícias, diante de um homem com um acidente, tratando de lhe fazer voltar os espíritos à força de pontapés na cabeça: o homem rebolava no chão; os polícias então davam-lhe pontapés no estômago. Talvez a Medi-cina não siga inteiramente este sistema de curar acidentes: no entanto a polícia tem essa opinião terapêutica, e nós não podemos contestar a ninguém o direito de divergir, em questões de ciência, da Escola Médico-Cirúrgica. O acidente tratado pelo espancamento
é uma teoria. E boa? É má?... Em todo o caso é respeitável.
Somente nos parece que, visto a polícia possuir este método específico, que ela decerto julga proveitoso porque o usa, não lhe poderia custar muito um pequeno trabalho a mais — e o Governo deveria encarregá-la de tratar os cidadãos enfermos.
Poupávamos assim a despesa com a Escola de Medicina. Quando alguém se sentisse doente, chamava da janela o polícia da esquina; e este benemérito, depois de tomar o pulso e reconhecer a autenticidade do mal, arregaçava a calça, mandava pôr o doente em posição, e escalavrava-o a pontapés!
Uma economia paralela nos ocorre a respeito da municipal. Coronhadas como as que vimos estalar, com um som baço e gemente, nas ilhargas de dois cidadãos, podem muito naturalmente matar um homem fraco, que sofra do peito, de uma lesão, de um aneurisma, de um vício de construção. Ora não queremos dizer que a patrulha não tenha a faculdade de matar, à coronhada, os cidadãos que destranquilizam as ruas! Seria esse mesmo o meio mais eficaz de estabelecer na cidade uma paz inalterável. O cidadão estendido morto, com a espinha partida ou o crânio aberto, aos pés do municipal, dá garantias superiores do seu sossego e da sua cordura. E decerto a melhor maneira de fazer entrar um cidadão na ordem — é fazê-lo entrar no cemitério.
Mas então (economia!) suprimamos os tribunais. Recolha-se definitivamente a magistratura ao seio das suas famílias e das suas torradas. Não é necessário que haja juiz para julgar os cidadãos — quando a municipal previamente se encarrega de desfazer esses cidadãos às coronhadas! O mais subtil magistrado ficaria pálido de embaraço se lhe apresentassem o corpo despedaçado de um desordeiro — para ele lhe fazer perguntas!
E como poderia um cadáver pagar a multa? Poupemos à justiça estas colisões vexatórias!
Saíamos do Antony Um pouco adiante de nós, subindo a Rua Nova do Carmo, vinham conversando dois espanhóis, espadaúdos e robustos. No alto da rua, ao fundo do
Chiado, alguns fadistas, num grupo ruidoso, tocavam guitarra.
XXXVI
Outubro 1871.
O Diario de Noticias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o habito das informações es- crupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso:
«Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fôra prêso, e condemnado...» Reparem bem! «E condemnado... a varrer as ruas de Gouveia!
De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar suas mulheres. São miudezas domesticas em que não intervimos. Nunca se dirá
que as Farpas se arrojam indiscretamente sobre o seio das familias. Que os maridos, quando lhes con- venha, para melhor organisação do seu interior, partam suas mulheres aos pedaços — coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila! Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos p arecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte estimada! E entendemos que, quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa — é mais simples ir à cozinha trinchar o rosbife, do que à alcova retalhar a esposa!
Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia.
Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de Gouveia — de resto todo Local.
Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade — o limpar as ruas de Gouveia!
Talvez mesmo o juiz — por lhe parecer insuficiente o degredo perpétuo — rompesse no excesso arbitrário de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila! Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S. M. Alexandre II da Rússia (que
Deus guarde e muitos anos conserve em prosperidade e glória) manda trabalhar, ao estalo do chicote, nas minas de Orilieff! A imundície da província tem mistérios.
Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena de morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!
Mas uma coisa nos ocorre: — e é que, de ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os srs. varredores de Lisboa — não querendo, por uma susceptibilidade exagerada, passar por terem assassinado suas esposas, deponham com gesto de desdém o cabo das suas vassouras nas mãos atarantadas da câmara municipal! Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irresponsável. Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado. Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que ele andava ali, às vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável; não comete crimes, nem sofre penas. Mas seria realmente atroz que S. M. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nu vens de poeira, a
O Diário de Notícias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso: imundície dos seus vassalos!
Que a justiça, pois, nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundície especial e pavorosa das ruas de
Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório, que merece um emprego remunerado pela câmara. Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos.
XXXVII
Outubro 1871.
Alguns jornaes contaram este mez, com uma indignação ingenua, que na devota cidade de Braga alguns missionarios vendiam aos fieis carlas ineditas da Virgem Maria. Estas cartas, segundo pare ce, eram dirigidas, umas a personagens dos tempos evangelicos — outras, mais particularmente, a cida. dãos de Braga. Corre que os editores d’esta correspondencia inesperada da Mãe de Jesus tiveram um ganho excellente.
O commercio da reliquia piedosa é a occupação usual dos srs. missionarios. Um sabio professor da universidade de Coimbra contava-nos, ha pouco, que presenceara em Traz-os-Montes uma singular agudeza:
Um missionario chegou alli com grande bagagem de rosarios, contas, sudarios, pedaços do santinho, fragmentos da tunica, etc. Mas o desleixado, o imprudente, não trazia caixeiro! De tal sorte que teve de se contentar com dois que lhe forneceu um negociante de pannos. Estes dois habeis vendedores a retalho, collocados á porta da egreja nas tardes de sermão, deante de taboleiros de feira, enfeitados de toalhas bordadas e cheios de reliquias, dirigiam activamente o seu negocio pio. Quem entrava na egre- ja comprava com devoção. E no entretanto o mis- sionario no pulpito trovejava. - Contar aqui o que elle declamava no seu vozeirão labrego não o po- demos - para que estas paginas não venham a ser consideradas tão picantes como as das memorias de Faublas.
No entanto uma inquietação atormentava este varão pio. Não sabia a conta exacta das relíquias que dera aos caixeiros, e punha neles uma confiança pouco evangélica! De modo que tomou este expediente triunfante. Ao fim de cada sermão, clamava:
— Agora vão-se benzer as relíquias! Quem tiver rosários de Nossa Senhora, erga-os ao ar!
Os fiéis que se tinham provido daquela espécie levantavam-na com fervor. O missionário então, como absorto em êxtase, contava com os olhos, rapidamente, a voo de pregador, os rosários. Depois abençoava-os. Passava em seguida, p elo mesmo processo extático, à contagem das outras relíquias. E quando saía da igreja conferia os seus apontamentos mentais do púlpito com os resultados monetários da porta. Os caixeiros eram honrados, e este homem fez um bom lucro. Que Deus o proteja, e a polícia o não incomode!
Nós achamos tudo isto extremamente regular. Somente desejamos saber:
Se os srs. missionários são exclusivamente negociantes, que, de passagem e por demais, também pregam sermões;
Ou se são sacerdotes, que, para se ocuparem em mais alguma coisa, também fazem negocio.
No primeiro caso, sendo negociantes que por demais pregam sermões, achamos perfeitamente inútil que, depois de terem feito o seu comércio, queiram mostrar a sua eloquência. Um negociante que, depois de nos vender uma peça de linho, nos recitasse uma ode da sua lavra, seria aleivosamente impertinente. Julgamos pois dispensável que os srs. missionários, tendo recolhido na praça o seu ganho, subam ao púlpito a exalar a sua retórica.
Que andam eles fazendo? Andam espalhando a palavra de Deus? — Mas então, se existem em Portugal vilas ou aldeias não convertidas ao cristianismo, em que pensa o
Governo que não manda as suas hostes rechaçar o infiel? Bajoica de Riba é moura?
Expulse-se de lá o adorador de Mafoma! Mas se Bajoica já é cristã e católica, que têm que fazer lá os missionários? Os antigos padres das missões, educados na tradição apostólica, iam à China, ao Japão e à índia, em viagens maravilhosas, ensinavam o Deus novo, e morriam nos tormentos. Estes senhores que vão fazer agora em diligência a
Tondela, ou em ónibus a Mafra? Não possui cada freguesia o seu pároco, as suas prédicas, as suas missas, o seu culto? Se os missionários não vão lá senão ensinar a religião que lá se prega, são evidentemente inúteis: se vão ensinar uma religião nova, que a polícia e o Estado os condene, porque não é permitido alterar a religião do reino.
Fugi a isto, doutores de teologia! E se os senhores bispos entendem que é necessário que os missionários fortaleçam a fé enfraquecida das freguesias — então que se dirá de SS. Ex.as Reverendíssimas? Por que consentem SS. Ex.as nas suas dioceses um clero colado tão incompetente que assim deixa enfraquecer a religião, e que torna necessário que, para a restabelecer, ande constantemente percorrendo o País um clero errante? — Parece-nos pois inútil que os srs. missionários, depois de terem feito o seu negócio, preguem os seus sermões.
Se porém, na hipótese do segundo caso, eles são sacerdotes que acumulam um pequeno negócio de relíquias, então uma coisa grave se apresenta:
Todo o negociante que atribui ao objecto que vende uma qualidade superior, para o fazer valer, usa de fraude, e está incurso nas penalidades da lei.
A lei, que não pode impedir a simplicidade e a credulidade, põe-na ao abrigo dos exploradores. Ainda há pouco um homem que vendia camisolas de malha vermelhas, declarando que elas tinham o privilégio de curar repentinamente o reumatismo mais rebelde, foi devidamente autuado e multado.
Por consequência todo o missionário pode descer do púlpito, e vir para a praça vender rosários, imagens, litografias de santos, etc. Está no seu pleno direito civil. Mas se, servindo-se da sua autoridade sacerdotal, esse homem afiança do púlpito, invocando
Deus e sob a garantia da sua missão religiosa, que essas relíquias lhe foram entregues por um anjo, e curam as doenças, fazem voltar ao amor os maridos distraídos, saram a esterilidade, livram de tentações, e que recai um castigo sobre quem as não compra — esse homem atribui ao seu ramo de comércio um valor sobrenatural, e vende como relíquia vinda do Céu uma quinquilharia de Braga. Cai pois, como negociante fraudulento, sob os rigores da polícia!
É lógico. Os jornais liberais dirão que esse homem lança a multidão num fanatismo animal; substitui o respeito de Deus pela adoração imbecil de emblemas; faz da absolvição divina uma especulação própria; conduz os homens à idolatria! Nós colocamo-nos no ponto puramente legal: — Esse homem, diremos, é um negociante fraudulento.
Todos aqueles que têm observado as missões e a venda de relíquias, sabem, além disso, que a certeza principal que se dá aos devotos — é que a relíquia comprada os absolve de antemão de todo o pecado.
De modo que o cidadão, depois de pagar e meter na algibeira a sua relíquia
(rosário, lasca de lenho santo, pedaço de sudário, bocado da túnica da Virgem) julga-se na graça de Deus e na permissão de toda a fantasia! Daí por diante pode altercar na taberna, espancar o vizinho, maltratar a mulher, roubar quem passa: não tem ele bem guardada no peito a relíquia que o absolve, que lhe salva a alma?
Assim, com um mesmo acto, o missionário que prega e vende — infringe a lei comercial e contraria a lei civil. E estes males são ainda bem menores que os que ele faz
à lei moral!
XXXVIII
Outubro 1871.
Cidadãos! Vejamos um pouco a nossa diplomacia.
Queixava-se há tempos o excelente Jornal da Noite que o Governo não publicasse os relatórios dos seus diplomatas, ministros, encarregados de negócios, secretários, etc.
Ingénuo Jornal da Noite! E o mesmo que censurar que se não fotografem os baixos-relevos
— de uma parede Lisa. Que quer o distinto redactor do Jornal da Noite que o
Governo publique? A diplomacia só tem a oferecer, como resultado dos seus trabalhos há vinte anos, o seu papel almaço — em branco. Se os nossos diplomatas quiserem um dia remeter para Portugal, em consciência, devidamente empacotados, os documentos do que nas suas missões criaram, organizaram, pensaram, trataram — a secretaria encontraria espantada, ao abrir o pacote:
Um montão de luvas gris-perle em m au uso!!
Se a esses cavalheiros que têm sido ministros e encarregados de negócios em
Londres, em Berlim, em Paris, em Madrid, em Bruxelas, em Estocolmo, em
Sampetersburgo, em Milão, em Roma, no Rio de Janeiro, em Viena de Áustria, em
Washington, com os seus secretários de embaixada, os seus adidos, os seus ordenados, despesas de representação, despesas de expediente, despesas secretas, etc., unia voz impertinente perguntasse: — «Como têm VV. Ex.as desempenhado as suas missões? Que tratados vantajosos têm alcançado para o nosso País? Que estabelecimentos portugueses têm lá favorecido? Que serviços internacionais têm regularizado? Que relações sólidas e protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios trabalhos as têm aconselhado para nosso progresso? Que conhecimento têm dado aos estrangeiros das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência! Etc.? Etc.?» — SS. Ex.as a tais interrogações ficariam pálidos de surpresa! Os nossos diplomatas inteiramente ignoram que estes sejam os seus encargos. Nenhum curso lhos ensinou, nenhuma lei lhos incumbiu. Eles seguem a velha tradição de que a diplomacia é uma ociosidade regalada, bem convivida, bem comida, bem dançada, bem gantée, bem voiturée, com bons ordenados e viagens pagas. Estão ali para serem diplomatas na gravata — e não para serem diplomatas no espírito: e achariam um abuso inclassificável que os tivessem nomeado para marcar o cotillon e no fim lhes exigissem relatórios. SS. Ex.as entendem que o País está bem representado desde o momento em que o seu colarinho é irrepreensível... E todavia SS. Ex.as estão representando uma nação — e não uma camisaria! Se SS. Ex.as vão unicamente encarregados de mostrar aos países estrangeiros a excelência dos nossos alfaiates — então o País não é o interessado, e o Sr. Keil que lhes pague! Se SS. Ex.as têm apenas por missão mostrar lá fora como o País dança bem, entendemos que SS. Ex.as prestam melhor serviço na sua pátria; e não ousando pedir ao
Governo que os faça recolher à secretaria, pedimos aos Srs. Valdez e Cossoul, empresários de S. Carlos, que os façam recolher ao corpo de baile!
O País conhece bem a nossa diplomacia: já a viu à luz da rampa, a um rumor de orquestra: já riu com ela, já lhe bateu as palmas: ela aparecia, esplendidamente real, na corte grotesca de S. A. a grã-duquesa de Gerolstein, poderosa princesa em três actos.
Era o barão Grog. O barão Grog, não se lembram? Somente a nossa diplomacia não usa rabicho, e curva-se com menos elegância. E o barão Grog conspirava! Os nossos nem sequer conspiram! Ele tinha graça, os nossos são lúgubres! Ele só nos custava um bilhete de plateia, os nossos custam-nos infinitos contos!
Evidentemente na organização da nossa diplomacia vamos seguindo um caminho imprevidente.
As habilitações que se exigem de um cidadão devem estar em harmonia com os serviços que se esperam dele. Não se requer, dos que pretendem ser lentes do Curso
Superior de Letras, que apresentem certidão de saber dançar dignamente o cancã. Ora se a missão de um diplomata é comer bem, dançar bem, vestir bem, parece-nos inútil que se lhe peçam provas de que conhece o direito internacional e a história diplomática! O mais trivial bom senso ordena que ele seja examinado simplesmente em pontos como estes:
Maneira mais própria de pôr a gravata branca, e suas divisões;
Método mais fino de comer a ostra; princípios gerais; aplicações;
Da valsa: teorias; questões principais; exemplos; etc.
Assim suponhamos que algum dos nossos mais nobres «vultos políticos», o Sr.
Braamcamp, por exemplo, pretende uma embaixada. Autorizam-no a isso a sua experiência e o seu critério. Que se lhe dê! Mas que antecipadamente S. Exª seja examinado na secretaria dos estrangeiros por um júri competente e recto:
Tenha V. Exª, Sr. Braamcamp (dirá o júri), a bondade de se sentar àquela mesa e comer aquele linguado frito, para nos provar que não lhe é estranho esse ponto da ciência diplomática...
E S. Exª tomando delicadamente o garfo, e na extremidade de dois dedos uma côdea fina de pão, com os braços unidos, a cabeça direita, os olhos baixos, provará a sua imensa competência naquela questão difícil.
— Tenha agora V. Exª, Sr. Braamcamp, a bondade de valsar um momento pela casa, com donaire...
E S. Exª arqueando molemente os braços, despedido em giros graciosos por entre as mesas da secretaria, com a cabeça meigamente reclinada, o olhar amoroso, a cintura mórbida, provará vitoriosamente que tem compulsado com mão diurna e nocturna todos
Os expositores daquela ilustre matéria.
(N. B. — Para que o concorrente não valse só, poderá utilizar-se como dama o contínuo da secretaria, que o examinando tomará nos braços com requebro meigo).
E aprovado que tosse o Sr. Braamcamp, ou outro cavalheiro, nos pontos sujeitos, o País podia entregar-lhe confiadamente uma missão numa corte estrangeira, certo que os seus interesses seriam ali dignamente — comidos e dançados!
Também nos ocorre que consistindo uma das principais funções dos secretários de embaixada e adidos em dançar nos bailes do Paço, a melhor maneira de alcançar um pessoal diplomático verdadeiramente superior seria escolhê-lo — no corpo de baile!
Ninguém teria então, entre a diplomacia europeia, mais graça, harmonia e ligeireza nos movimentos. E seria honroso para todos que os jornais estrangeiros pudessem noticiar:
«Chegou hoje a Srª Pinchiara, antiga primeira bailarina de S. Carlos, hoje secretário da embaixada portuguesa...
E mais tarde registassem para vaidade eterna da nossa Pátria:
«Ontem a maravilha no baile da corte foi a maneira adorável por que dançou a Srª
Pinchiara, secretário da legação portuguesa. Parecia um silfo, com os seus vestidos de gaze. Notou-se apenas que o sr. secretário da legação estava um pouco decotado de mais. É admirável a brancura do seu colo!...»
Igualmente nos parece vantajoso que o concurso para adido de legação verse, não sobre a ciência dos concorrentes — mas sobre a sua roupa branca. Se o dever essencial de um adido é a exposição solene dos colarinhos que se alteiam sob a suíça, dos Largos peitos de camisa que se arqueiam como couraças, e dos punhos que espirram para fora da manga com uma rijeza de aço — deve o Governo de S. M. utilizar para o serviço diplomático aqueles que, pela beleza e solidez dos seus engomados, melhor acreditarem lá fora as nossas instituições. E a diplomacia começará a dar garantias da sua eficácia, quando o Sr. X tiver conquistado os sufrágios do júri pelo brilho das suas camisas inglesas e pelo valor das suas peúgas — e o Sr. Y for plenamente reprovado por ter apresentado, por toda a ciência e experiência dos negócios, um reles colarinho à mamã!
Com entranhada mágoa o dizemos: os senhores diplomatas portugueses vestem-se de um modo a que só falta para ser distinto — ser inteiramente diverso do que é. SS. EXª ou se ajeitam pelo feitio nacional que tanto domina na Rua dos Fanqueiros, ou então adoptam o velho chique de boulevard, ainda do tempo do ministério Rouher, hoje unicamente usado pelos pollos de Madrid! Não seria pois fora de propósito que existissem na secretaria dos estrangeiros figurinos-modelos, com comentários e notas, que os senhores adidos deveriam estudar antes de encomendar as suas farpelas.
Outrossim se nos afigura imprudente que os srs. diplomatas possam fazer um fraque sem previamente levarem o corte e talhe à aprovação da comissão diplomática.
Igualmente pedimos ao Governo, em nome do País, que não deixe sair nenhum senhor diplomata sem previamente lhe ter examinado:
As unhas e a caspa do cabelo!
Uma das coisas que prejudica a nossa diplomacia é ela não possuir espírito. Ser espirituoso é metade de ser diplomata. A tradição clássica mostra-nos Talleyrand governando a intriga europeia com as finas decisões dos seus bons ditos: modernamente, desde Morny até ao sombrio Sr. de Bismarck, a diplomacia tem feito do espírito quase um método. O espírito move tudo e não responde por coisa alguma: ele é a. eloquência da alegria, e o entrincheiramento das situações difíceis: salva uma crise fazendo sorrir: condensa em duas palavras a crítica de uma instituição: disfarça às vezes a fraqueza de uma opinião, acentua outras vezes a força de uma ideia: é a mais fina salvaguarda dos que não querem definir-se francamente: tira a intransigência às convicções, fazendo-lhes cócegas: substitui a razão quando não substitui a ciência, dá uma posição no mundo, e, adoptado como um sistema, derruba um império. E, sobre-tudo pelo indefinido que dá à conversação, ele é a arma verdadeira da diplomacia. Ora, com compunção o dizemos, a nossa diplomacia não tem espírito. Seria por isso bem útil que o ministério dos estrangeiros examinasse os seus diplomatas, antes de os nomear, em pontos assim concebidos:
— Estando o senhor adido numa sala, e começando na rua a chover, que pilhéria deverá o senhor dizer?
— Num camarote de ópera, quais são as facécias que deve lançar um secretário de legação sobre o corpo de baile?
E seria conveniente que a secretaria possuísse uma lista de jocosidades, para todos os usos da vida, que os senhores diplomatas deveriam decorar:
Pilhérias para baile;
Ditas para almoço;
Ditas para cerimónias religiosas;
Ditas para recepções no Paço;
Ditas para entreter personagens célebres;
Ditas para enterro de pessoas reais, etc.
Concorre muito para que a nossa diplomacia não seja brilhante, o horror que o
País tem a ser representado por homens inteligentes. Não se pode dizer que isto proceda do amor de os possuir no seu seio: antes parece que o domina o terror de que eles vão destruir a reputação de embrutecimento que o País goza lá fora. A verdade é que, quando algum homem inteligente vai em missão diplomática, os jornais bravejam, e a opinião pública apita!
Se alguém ousasse, por arrojo absurdo, mandar em embaixada o Sr. Alexandre
Herculano, a Nação, de raiva, abria as veias! Por sua vontade o País enviaria às cortes estrangeiras, para ser representado dignamente — bacorinhos do Alentejo. Não o faz, porque, corno ao mesmo tempo é avaro e desconfiado, receia que as cortes estrangeiras, não podendo arrancar a tais diplomatas segredos políticos, lhes arrancassem — presuntos! Por isso manda homens. E só por isso!
Ao mesmo tempo o País gosta de pagar barato à sua diplomacia. E neste ponto abusa. Quer uma diplomacia bem fardada, bem bordada: e no fim se se lhe apresenta, por ter uma diplomacia, uma conta um pouco maior do que por ter um carroção — escandaliza-se e grita pelo sr. bispo de Viseu, D. António. De modo que um ministro plenipotenciário vê-se mais embaraçado com o rol das compras, que com o manejo das políticas!
Os diplomatas portugueses passam por agra. dar no estrangeiro pela sua palidez!
Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza de raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País — é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição de diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem:
«Ontem, na Rua de... caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado.
Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade — era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.»
Que o País atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País, no número do pessoal diplomático — diminua os adidos e aumente os bois.
Que a nossa diplomacia, aliás meritória e simpática, se não agaste com estes traços ligeiros! Quisemos apenas rire un brin. E nesta nossa triste terra, quando a gente se quer alegrar e folgar um pouco, tem de recorrer às instituições, que são entre nós — pilhérias organizadas funcionando publicamente.
XXXIX
Outubro 1871.
Jesus, quando não soffria ainda aquella aspera me. lancholia que lhe deu mais tarde a presença de Je. rusalem branca e dura, era um meigo rabbi, que percorria perpetuamente, no infinito enlêvo do seu sonho, a sua tranquilla e humana Galiléa, ora a pé, ora n’um d’esses pequenos burros que teem os olhos tão grandes e tão dôces e que veem da alta Syria. Entrava nas synagogas; e, commentando os velhos papyros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casaes, sentava-se as portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sycomoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: «fala, rabbi, fala! » As creanças tomavam-lhe as mãos, ou puxando lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pelle de camêlo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discipulos afastavam as creanças. Mas o Mestre murmurava sorrindo:
— Deixai vir ter comigo as crianças, abençoadas são elas! elas sabem muitos segredos que os sábios ignoram.
Parece que ultimamente o clero não tem esta consoladora ideia de Jesus. O Sr.
Encomendado de Santos-o-Velho, no dia de Finados, depois da missa conventual, paramentado, sobre o degrau do altar, voltou-se para o povo, e repreendeu as mães que levavam consigo as crianças à missa! E aí estão enfim as crianças expulsas da Igreja, não podendo ao menos ir uma vez por semana erguer as suas pequeninas mãos para
Aquele que foi outrora, nas sombras da Galileia, o seu amigo imortal!
Respeitamos profundamente esta opinião católica do Sr. Encomendado de Santos-o-
Velho. sem dúvida mais moral que as mães levem seus filhos à taberna, e lhes ensinem cuidadosamente — mostrando-lhes, em lugar de uma cruz, uma navalha de ponta — esta máxima salutar: esfaquiai-vos uns aos outros! Assim se formam os justos. E seria mesmo conveniente que a opinião do Sr. Encomendado tivesse uma realização prática: que houvesse na Igreja, para as crianças, a mesma polícia que há para os cães: e que, ao lado do respeitável funcionário enxota-cães, se perfilasse do outro lado da porta o meritório empregado enxota-crianças. E o culto alcançaria, definitivamente limpo do ladrar dos cães e do chorar das crianças — o mais alto grau de pureza.
Realmente as crianças que choram à missa cometem um desacato. Segundo afirma a teologia casuística, os manuais de inquisidores, as dissertações dos dominicanos,
(Chicotes, Lanternas, Fustigações, são os títulos destes livros pios) e ainda segundo as profundas obras de Nieder, Sprenger, Spina e Bodin, o ilustre legista de Angers, as crianças trazem dentro de si o demónio, e quando choram nas igrejas é porque Satanás pretende insultar o culto e o sacerdote. De sorte que o Sr. Encomendado de Santos-o-Velho ainda nos parece tolerante; porque deveria talvez, com a sua autoridade de sacerdote e de teólogo, ordenar às mães que quando à missa as criancinhas lhes chorem ao peito — imediatamente lhes esmaguem as cabeças no lajedo, para abafar a voz do
Maligno!
O Sr. Encomendado referia-se apenas às crianças pobres. Às crianças ricas não imporia ele, sacerdote de Jesus, esse aristocrático mestre, uma exclusão irrespeitosa. — E essas mães pobres podem talvez d izer-nos:
Que são pobres; que não têm quem lhes fique em casa a tomar conta dos filhos;
Jesus, quando não sofria ainda aquela áspera melancolia que lhe deu mais tarde a presença de Jerusalém branca e dura, era um meigo rabi, que percorria perpetuamente, no infinito enlevo do seu sonho, a sua tranquila e humana Galileia, ora a pé, ora num desses pequenos burros que têm os olhos tão grandes e tão doces e que vêm da alta
Síria. Entrava nas sinagogas; e, comentando os velhos papiros da lei, ensinava o Deus novo. Parava nos casais, sentava-se às portas, sobre os bancos encanastrados de vime, debaixo dos sicômoros. As mulheres davam-lhe mel, vinho de Safed, e diziam: — «fala, rabi, fala!» As crianças tomavam-lhe as mãos, ou puxando-lhe pelas compridas pontas do seu couffie, amarrado por uma corda da pele de camelo, queriam ver o fundo dos seus olhos. Os discípulos afastavam as crianças. Mas o Mestre murmurava sorrindo: que os não querem deixar sós no berço, chorando no isolamento, ou, se são mais crescidos, ao pé do lume, arriscados ainda a caírem, a ferirem-se, a virem para a rua, a serem atropelados; que enfim não se querem separar deles, e que, como são pobres, sem pão farto, desgraçadas neste mundo, só lhes resta na Igreja o sonho consolador de um
Céu que repara! Isto é talvez assim (ainda que se percebe que estas razões são inspiradas por Satanás). — Mas também é verdade que os Srs. Encomendados não podem ser interrompidos na sua missa pelas crianças que rabujam, e que se torna de toda a justiça que sejam excluídas da Igreja, como perturbadoras da ordem, da decência e do respeito — as mães que ousem vir rezar com o seu filho ao colo!
Pobres pequenos! consolai-vos! Jesus, o vosso amigo, também não é mais feliz: há muitos séculos que ele procura erguer a pedra do seu túmulo — e há muitos séculos que o seu clero carrega na pedra para baixo!
XL
Outubro 1871.
A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! Vivemos aqui ao nosso canto, sem cerimónia, em chinelas — e não gostamos que gente culta venha ter a revelação da nossa mobília pobre e da nossa conversação simplória.
E tanto que pedimos claramente ao Governo, em nome do País envergonhado e com a barba por fazer, que proíba, sob as penas mais severas, à companhia dos caminhos de ferro, o facilitar assim por preços baratos, a essa aparatosa Espanha, viagens de recreio através da nossa miséria!
O País não pode em sua honra consentir que os Espanhóis o venham ver. O País está atrasado, embrutecido, remendado, sujo, insípido. O País precisa fechar-se por dentro e correr as cortinas. E é uma impertinência introduzir no meio do nosso total desarranjo, hóspedes curiosos, interessados, de luneta sarcástica!
Imaginemos que amanhã chega aí, ao largo arquejar da máquina, num desses comboios impudentes, uma coorte espanhola, descaradamente ilustre — estadistas, oradores, generais, literatos, pintores, professores, arquitectos, jornalistas... Que vergonha, meus senhores, que vergonha!
Imaginemos que esses homens políticos, esses oradores, esses parlamentares,
Sagasta, Martos, Py y Margal, Zorrilla, Rivero, Castelar, Canovas, conservadores e revolucionários, ministros e tribunos, filósofos e dialécticos, se vão sentar, num dia de sessão, na galeria desbotada de S. Bento, e que vêem, piedoso Deus! as nossas câmaras, a nulidade do pensamento, a relice da palavra, o abandono de todo o decoro, os insultos e os desmentidos, a compostura plebeia e grossa, a ciência que lá falta, a intriga que lá abunda, a horrível baixeza daquela pocilga constitucional!
Imaginemos que esses estadistas conversam com esses que são entre nós os estadistas — e vêem, vergonha eterna! que eles ignoram a administração, a economia, a história, as questões do tempo, toda a ideia, todo o facto, e que por única verve e por
única profundidade sabem afirmar que o regedor de Cabanelas é amigo do ferrador da
Cortegaça e que este compadrio aldeão dá cinquenta votos combinados ao Governo de
S. M. F.!
Imaginemos que esses generais, que venceram em África e que venceram em
Espanha, estudam o nosso exército, visitam os nossos quartéis, examinam o nosso armamento, conversam com os nossos generais!
Oh por piedade! consideremos que esses professores podem entrar na obscura vergonha das nossas escolas! Que esses jurisconsultos podem querer ver os nossos tribunais! Que esses arquitectos podem deitar a luneta às nossas construções! Que esses pintores podem perguntar pelas nossas galerias! Que esses homens do mundo podem tratar com os nossos dândis, ou mirar-lhes a toilette! Que vergonhas! que vergonhas!
A companhia dos caminhos de ferro está abusando um pouco da amizade impaciente que (no seu entender) nós e a Espanha nutrimos reciprocamente. A cada momento nos facilita entrevistas baratas e ternas. Sim, decerto, nós e os Espanhóis meigamente nos amamos! Mas não sentimos a necessidade urgente e ávida de nos pre-cipitarmos, assim, todos os oito dias, nos braços uns dos outros!
Ah! meus senhores, não consintamos que essa cruel Espanha, que se levanta, que se organiza, que se engrandece — venha, de luneta no olho e gargalhada na boca, fazer o inventário jocoso do nosso abaixamento! Não consintamos que nos vejam!
Aferrolhemo-nos! Os Chins, outrora, não permitiam que os europeus vissem o seu esplendor. Sejamos a China da miséria!
E se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos — então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha, e com cujas civilizações possamos competir: —
Cafres, Patagónios, Lapónios, Abexins, Etiópios, Tártaros, e Hotentotes! E estaremos então em família.
A Espanha, porém, a garrida Espanha, é que parece desejar profundamente que nós os Portugueses examinemos de perto o seu salero político, económico, artístico, religioso e teatral: porque, com uma originalidade cómica, que excede tudo quanto contaram os romances picarescos do século XVII, a Espanha condecora todos os por-tugueses que cometam o arrojado feito de ir a Madrid! Sem distinção, sem escolha! O viajante português chega, o dono da Fonda traz-lhe chocolate — e um contínuo do Paço
Real traz-lhe a comenda. Ou porque a Espanha queira compensar os incómodos e os tédios de lhe ir ver a capital: ou porque o rei Amadeu, que nunca foi visitado pela aristocracia espanhola, se comova até à lágrima e até à condecoração quando se digna ir vê-lo a burguesia lusitana — o português que chega recebe em pleno peito, sem pre-venção, sem água vai, uma comenda e um diploma enrolado!
Já se sabe de antemão aquela graça. Pode-se até telegrafar assim para Madrid: —
Hotel de los Embajadores, calle S. Jeronimo: Ao Sr. Moreto, proprietário. — Chego amanhã, prepare-me quartos e a comenda de Carlos III.
Podia, até, para maior franqueza, ser a condecoração indicada na lista dos hotéis:
Gravanzos ............................................................................. 1 duro
Grã-cruz de Isabel a Católica ................................................. grátis
Dizem que o Governo espanhol resolveu condecorar assim os que tomam bilhetes de 1ª a ou 2ª classe para Madrid, com o fim único de favorecer a companhia dos caminhos de ferro.
Em tal caso era mais cómodo entregar logo a condecoração em Santa Apolónia.
— Um bilhete de 2ª classe, e a condecoração! — gritaria o viajante ao postigo do vendedor de bilhetes.
E a companhia pregava-lhe a marca no bojo do saco de noite — e a comenda no peito do fraque. E o sr. comendador entrava para o seu vagão!
Há, evidentemente, duas intenções delicadas naquele derramar de condecorações:
A primeira é compensar as contas dos hotéis. Depois da guerra de Marrocos, aqueles que podiam mostrar uma cicatriz apresentavam-se na Secretaria da Guerra e recebiam a Medalha de África. Agora parece que, depois de alguns dias de Madrid, aqueles que puderem mostrar, não uma cicatriz mas uma conta de hotel, recebem na
Secretaria da Gobernacion a comenda de Carlos III! Nesse caso aqui estamos! Temos uma conta da Fonda de Madrid, em Cádis, Plaza Santo António, inumerável em gravanzos — e em duros inumerável! Em boa lógica não pode deixar de nos ser dada uma capitania geral! E ainda perdemos!
A segunda intenção é premiar os que viajam. Mas então que honras se reservam
àqueles que vão ainda além de Madrid? Que grã-cruzes se dão a quem vai a Barcelona?
Que títulos de nobreza esperam aqueles que chegam às Vascongadas?
Porque enfim se um de nós se perfilasse diante de S. M. Amadeu, e lhe falasse destarte:
— Real senhor! o vosso humilde servidor já foi a Espanha, daí a Malta, depois ao
Egipto, depois à Arábia, depois à Palestina, e a Jerusalém; atravessou os montes da
Judeia, peregrinou até o Jordão, subiu à Síria, visitou o Líbano...
...S. M. Amadeu não podia deixar de descer os degraus do trono, e gritar comovido:
— Viajante dessa ordem, reina sobre os Espanhóis!
Gloriosa Espanha, faceta Espanha! — A Cristóvão Colombo, que fez a viagem maravilhosa e chegou ao Novo Mundo, deste umas poucas de palhas para ele morrer num cárcere: — a quem empreende a viagem de Madrid e chega à Calle Reale, dás uma comenda de prata, gloriosa Espanha, faceta Espanha!
Andávamos bem enganados com os méritos humanos. O nosso espirituoso amigo
Pinheiro Chagas tem sido, desde a mais distante mocidade, um trabalhador. Jornalista, poeta, romancista, historiador, dramaturgo, crítico, sempre à sua mesa de trabalho com o valor de quem está numa trincheira, tem belamente despertado com a sua pena vigorosa a nossa curiosidade indolente. Nenhum governo lhe pôs nada ao peito, nem um botão de rosa no casaco. A Espanha nunca pensara em lhe dar os bons-dias! Pinheiro
Chagas lembra-se um dia de se meter num vagão do caminho de ferro. O Governo espanhol acorda, fita-lhe o peito, e, com um grito de amor, crava-lhe a placa de Carlos
III!
Qual é a ilação? Que, aos olhos do Governo espanhol, o maior feito que pode cometer um varão contemporâneo não é fazer um grande livro, ganhar uma grande batalha, descobrir uma grande máquina — mas ter a sobre-humana coragem de ir a
Madrid. Haverá nada mais humilhante para Madrid? E fazer uma pavorosa ideia de uma capital o considerar como um acto de coragem — ir lá! O Dr. Levingstone, que tem viajado os desertos desconhecidos, os ásperos sertões, os rios bárbaros, as tribos antropófagas — é grande; mas falta-lhe a façanha suprema — ir, ao meio-dia, à Rua de
Alcalá!
E nós Portugueses, levando nossos filhos pela mão, quando encontrarmos mais tarde algum dos heróicos viajantes de Madrid, diremos a nossos filhos:
— Vês, meu filho, aquele senhor condecorado, meneando a sua bengala?
— Sim, papá.
— Admira-o, menino, e imita-o! Aquele homem sublime, num momento de coragem, contando em nada a vida, cheio só da fé em Deus e do amor da humanidade, teve um dia o valor febril, a audácia estonteada, de tomar o comboio de recreio e de ir a
Madrid!
E quereis saber, amigos, como começará o novo poema que mais tarde ou mais cedo tem de ser feito sobre os Novos Lusíadas? Começará assim:
Eu celebro os varões assinalados
Que da ocidental praia, heróicos, sós,
Em vagões nunca dantes franqueados
Passaram ainda além de Badajoz.
XLI
Outubro 1871.
Reappareceu ou continuou (não sabemos), no theatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monarchia. Consiste elle em que, nos dias de gala, quando S. M. está na tribuna, no apparato de côrte, os es- pectadores não podem applaudir, nem patear, nem mostrar opinião.
Consiste ele em que, nos dias de gala, quando S . M. está na tribuna, no aparato de corte, os espectadores não podem aplaudir, nem patear, nem mostrar opinião.
Este costume — vindo dos antigos tempos em que na presença do seu rei o vassalo devia estar sem ideia, sem gesto, perfilado e nulo — é belo. Mas autoriza uma certa lógica:
Podendo o espectador aplaudir ou desaprovar quando S. M. ocupa o seu pequenino camarote de veludo cor de cereja, e não podendo fazer ruído quando S. M. se apresenta na tribuna, sob o esplendor dos lustres — segue-se que o rei só é respeitável e só se respeita quando está de gala!
Portanto, à maneira que S. M. vai saindo do cerimonial da gala, vai diminuindo o nosso respeito para com ele!
Quando S. M. se mostra na tribuna, estamos humildes e tácitos:
Quando S. M., nos dias simples, vem para o seu camarote, perdemos um pouco o respeito, e começamos a fazer barulho:
(E esta lógica não pára nas suas conclusões!):
Quando S. M. sair do seu camarote, e for humanamente meter-se na sua carruagem, como a gala diminuiu ainda mais, o nosso respeito diminui também — e passamos, numa liberdade crescente, a dirigir-lhe chulas:
Quando S. M., dentro do seu cupé, acender o seu charuto, como o cerimonial é menor do que no momento retro, o respeito é menor ainda — e rompamos logo, numa intimidade já irreprimível, a atirar-lhe cebolas;
Se víssemos S. M. a comer bifes, o nosso respeito estava no fio, e principiávamos a dar-lhe piparotes na orelha.
Se o víssemos de robe de chambre o respeito ficaria extinto, e saltaríamos para os seus reais ombros, esporeando as suas reais ilhargas.
Ora isto, realmente, não convém à Monarquia!
Porque enfim, por este modo, S. M. não tem remédio para se fazer respeitar cabalmente — senão ficar eternamente na tribuna.
E seria cruel obrigar S. M. a dormir na tribuna, tomar banho na tribuna, passear a cavalo na tribuna, caçar a lebre na tribuna, e viajar pelas províncias — na tribuna.
Não, Portugueses, não o consintais!
Que os poderes públicos pois sejam generosos, e se permita à plateia de S. Carlos, mesmo em dias de gala, ter opinião! Não aplaudir, estar sério, sorumbático, soturno — é talvez o respeito: mas pode confundir-se também com o desgosto, com o tédio.
E seria triste que perguntando um estrangeiro:
— Porque está esta plateia tão amuada?
Se lhe devesse responder:
— Porque faz anos o seu rei.
Reapareceu ou continuou (não sabemos), no teatro de S. Carlos, um antigo costume de todo o ponto prejudicial aos interesses da monarquia.
XLII
Outubro 1871.
Na Foz foram presos vinte pescadores por usarem redes de arrastar.
O sr. juiz respectivo levou os pescadores para o cárcere, com as famílias atrás a chorar: os barcos ficaram em estado de arresto: o peixe apreendido foi vendido em leilão: o dinheiro cuidadosamente guardado no depósito judicial.
No Egipto, no tempo de Mehemet-Ali, ainda depois de 1820, os cádis
(autoridades locais) que, ou por violência de temperamento, ou por imbecilidade, ou por exploração, vexavam o trabalhador, o fellah, eram pregados a uma porta pelas orelhas, como morcegos, e ali ficavam dois dias, pendurados, gotejando sangue. Não estão sen-tindo uma forte saudade por este exemplar Mehemet-Ali, o astuto tirano que foi pastor?
Ah! realmente uma autoridade dá muitas garantias quando está suje ita a ver as suas orelhas pregadas por dois pregos de cabeça amarela, no travejamento de uma porta!
Raciocinemos! As redes de arrastar prejudicam a pesca; o peixe desaparecia das nossas costas se se fizesse de tais redes um uso imoderado. Uma lei proibiu as redes de arrastar: mas até 1867 nunca foi posta em prática. Começa, por uma portaria, a vigorar em 1867. No ministério seguinte a portaria cai em desleixo, e as redes de arrastar varrem livremente as costas. Vem o sr. bispo de Viseu, e proíbe de novo as redes. Surge o Sr. Dias Ferreira e dá ampla liberdade às redes. No ministério seguinte nova proibição. Outra vez esta proibição se relaxa. E uma derradeira portaria, enfim, impõe vigilância escrupulosa.
Como vêem, temos aqui uma legislação complicada e flutuante. E necessário seguir com cuidado o Diário do Governo para conhecer com precisão quando as redes são legítimas e quando as redes são criminosas. O acto varia de perfil, ora meritório ora culpado, conforme o temperamento do ministro e o seu amor pela pesca. Um advogado, consultado, teria de folhear a colecção de leis: o Sr. Governador Civil do Porto, certa-mente, não conhece de cor esta legislação confusa: os srs. Administradores não poderiam diferençar com exactidão as épocas tolerantes e as épocas proibitivas: os Srs.
Regedores são totalmente alheios a esta parte da jurisprudência.
Pois bem, foi justamente por não saberem corno rábulas estas portarias sucessivas, que os vinte pescadores da Foz foram encarcerados na Relação!
Um pobre homem passa o seu dia remando, quebrado pela luta com o mar, para comer à noite, na promiscuidade da mesma gamela, com uns poucos de filhos, uma pouca de sardinha. Levou para isso a sua rede de arrastar com que trabalha há muito, que ele vê no barco do seu amigo, do seu vizinho, do seu patrão. Desembarca ao pôr do
Sol, esfomeado, encharcado de agua — e encontra pela frente o Sr. Regedor! — E como existe a portaria de tantos de tal, revogada por uma portaria posterior, posta em vigor por outra, caída depois em desleixo, novamente revogada, alterada por uma diferente legislação, ultimamente anulada, e agora rediviva e activa — ele, por ignorar inteiramente esta jurisprudência trapalhona, vai ser levado por aqueles soldados ao
Porto e aferrolhado numa enxovia!
O crime deste homem, portanto, é não ler o Diário do Governo! Esse homem está preso por não ser um jurisconsulto! Esse homem será condenado por ousar ser pescador
— antes de ser bacharel formado!
Foram presos vinte. Vinham em dois barcos, eram duas companhas. O arrais é dono do barco e mestre da companha. É ele quem dirige a pesca, quem vai ao leme. Pela manhã manda-os embarcar. As redes estão no barco! mãos aos remos! vela ao largo!
Partem; e se o mar tem a condescendência de os não esmagar na negra rocha de Leixões ou de Felgueiras, é realmente singular que à volta, com os barcos mal cheios de peixe, doze horas de remos, e todos molhados das voltas do mar — vão dali do cais, em chusma, presos por não terem ido consultar um advogado, antes de obedecerem ao seu arrais!
— «Mas tinham-se afixado editais!» Lêem eles editais? sabem eles ler? Trabalham.
O barco tem as redes, o vento refresca, o mar aplaina, o arrais diz: larga! Largam.
E, se algum arrais leu o edital, quantos editais não têm visto na esquina! Quantas vezes pregados, quantas vezes arrancados! Quantas vezes pescou com as redes, claramente, diante do regedor! Quantas vezes elas têm sido proibidas e quantas vezes toleradas? Vê o mar bom, o céu limpo, o vento mudo, e naturalmente não manda este telegrama à secretaria: «Cá vou à pesca, há aí alguma lei nova que o proíba?»
Porque então torna-se difícil ser pescador; serão necessários para arrais, grandes estudos de legislação; e o único homem que pode, com a consciência tranquila, sem receio de desacatar alguma portaria, pescar a sardinha — é o Sr. Martens Ferrão, procurador-geral da Coroa!
E além disso foram presas três crianças de 10 anos! Ah! estes criminosos vão decerto ser tratados com as penas mais severas! Lá estão na enxovia, as mães choram às grades! É justo! estes indignos entezinhos também pescavam! Aos 10 anos, quando todas as crianças brincam, até as dos lavradores miseráveis, que guiam os bois, trepam aos ninhos, se rolam rias altas ervas — estes bandidos que já trabalham, que já vão ao mar, que já aprendem a morrer na idade em que os outros ainda nem sequer aprendem a viver, que já ajudam os pais, que já são um braço ao remo, uma mão à escota, às vezes uma criança ao mar, estes celerados tinham ido nos barcos com as redes, ganhar o seu pedaço de pão, enquanto as mães, inquietas, esperavam na praia, ousando também eles, os facínoras, ignorar as portarias do sr. ministro do Reino! Por isso agora choram na cadeia!
E são vinte pescadores! Vinte famílias, dez pelo menos, sem pão, sem lume! Os pais, os maridos, os irmãos presos, têm ao menos o rancho da cadeia: as mulheres pedem pelas esquinas! E estamos em pleno Inverno, e vêm os temporais, e começa aquele mar violento, varrido dos ventos, que as pobres mães olham dias e dias da praia, com os seus mantéus pela cabeça, sem o verem jamais condescendente, sem o verem jamais piedoso!
E no entanto o peixe apreendido é vendido em leilão, o dinheiro guardado no depósito. É justo: os homens na cadeias as mulheres na miséria, o dinheiro na algibeira do Governo.
Não sentem unia imensa saudade de Mehemet-Ali, o velho tirano que pedira esmola aos piratas do Arquipélago nas praias de Cavala? Bom Mehemet-Ali! Excelente
Mehemet-Ali! Cismemos! Um cádi, pendurado pelas orelhas, e elas repuxadas, arroxeadas, ensanguentadas, laceradas! Bom Mehemet-Ali! Evidentemente eras um justo! Dois bons pregos! uma trave segura! e as duas orelhas de um regedor da Foz!
XLIII
Outubro 1871.
O Clamor do Povo pensa dignamente que é menos delicado envolver em ironias vingativas uma mulher desgraçada. — A verdade, porém, é que a sr. condessa de Teba é apenas uma imperatriz despedida. A Srª condessa não foi uma esposa obscura e desinteressada do Governo, no fundo retiro dos seus quartos. S. Exª foi duas vezes regente; assinou proclamações, decretos, sentenças; constituiu ministérios; interveio na política do seu tempo, fomentou a reacção religiosa, presidiu, ao lado de seu marido, a conselhos de Estado. Estes factos colocam-na sob a crítica e sob a história. Se a Srª condessa de Teba, durante o governo amável de seu e sposo, não se tivesse separado do seu cesto de costura, do berço de seu filho e das chaves da sua despensa, como fazem
SS. MM. as imperatrizes da Alemanha e da Rússia, ela teria sido simplesmente uma esposa e uma mãe inviolável, indiscutível, inatacável. Mas se S. Exª se manifestou na vida pública do seu País, como uma força política, gerente e reinante — cai logicamente sob o domínio da história, glorificada ou condenada. Se a história não pode falar das mulheres, porque são mulheres, com que direito então os livros sagrados amaldiçoam
Jesabel? Com que direito condena o Evangelho Herodíade, que matou João Baptista?
Levar para a história as preocupações de uma sala seria chique mas bacoco. Se devemos calar e chorar quando passa uma imperatriz destronada, que silêncio e que lágrimas devemos reservar quando no Evangelho passa Maria, mãe de Jesus, à volta do Calvário?
Os políticos não têm sexo: têm o sexo dos seus actos. Não podemos em boa verdade escrever histórias — unicamente masculinas. Seria privar-nos de saber o que pensaram tantas lindas cabeças, o que cometeram tantas lindas mãos, desde a nossa mãe Eva, a loura e bárbara curiosa! Se um historiador, sob o pretexto que Isabel II de Espanha é uma mulher, calar no futuro o seu reinado, o Clamor do Povo dirá que ele é um gentleman, e nós que é um grotesco. E se o século XX aprofundar esta questão, dirá que o Clamor do Povo é um romântico de xácara — e as Farpas umas burguesas de senso.
O Clamor do Povo diz que mais generoso que nós foi Vítor Hugo que, nos
Châtiments, deixa no silêncio a mulher de Luís Bonaparte. Mas, nesse tempo, o Clamor sabe que a Srª condessa de Teba ainda não era casada; era apenas uma loura amorosa, dançando nas Tulherias uma valsa desinteressada com o galante de Failly, coronel de guias! Hugo não podia prever na noiva de Saint-Cloud a regente de França. Por este lado ainda mais generoso que Hugo, creia o Clamor — foi Tito Lívio!
Diz o Clamor do Povo que não devíamos acusar a Srª D. Eugénia porque nunca recebemos ofensas de Napoleão III. Mais pasmado ficará o excelente jornal quando lhe afirmarmos que Nero foi um celerado — e todavia, pela nossa honra o juramos, nunca, nunca recebemos de Nero a mais ligeira descortesia! E por esse lado Michelet, Guizot,
Martin, só poderiam escrever a história de França se tivessem sido esbofeteados no boulevard — por Carlos Magno ou Pepino o Breve!
O Clamor do Povo pinta, com grande sensibilidade, a Srª condessa de Teba usando, depois de destronada, uma coroa de espinhos. Não vimos.
S. Exª, quando passou em Lisboa, levava apenas um elegante chapéu branco, evidentemente saído dos ateliers de madama Julie, em Bond-Street.
O Clamor do Povo, num artigo traçado com uma generosidade apaixonada e poética, censura às Farpas algumas páginas irónicas sobrea Srª condessa de Teba, imperatriz que foi dos Franceses da decadência.
Diz o Clamor que se não deve motejar uma senhora que não tem quem a defenda.
Oh! meu Deus, os jornais franceses dizem justamente o contrário — queixam-se de que a
Srª condessa de Teba tem quem a defenda de mais! A França, ao que parece, ferve em partidários bonapartistas. E de resto não tem ela seu marido? Não nos eximiremos a trocar com Luís Bonaparte uma estocada ou uma bala no alto de Alcolena, ou no Poço do Bispo, ao alvorecer do dia! O perigo está em que esse homem, pelo hábito, capitule.
O Clamor do Povo fez, de resto, um artigo eloquente, cheio dos mais cavalheirescos sentimentos, das imagens mais floridas, bela página poética, que tem apenas o defeito de que um trovador a poderia assinar.
N. B. — O Clamor do Povo alude às relações dos redactores das Farpas com o segundo império francês. Esclareçamos:
Um dos redactores das Farpas, achando-se em Paris, e almoçando em casa de
Véfour com o seu amigo II. James Mortimer, o mesmo que em Londres está redigindo hoje uma folha bonapartista, teve ocasião de oferecer ao imperador, por intermédio deste amigo comum, uma garrafa do mesmo vinho do Porto que o jornalista americano e o jornalista português tinham bebido juntos. O vinho foi achado delicioso nas
Tulherias: e, passados dias, aquele que devia ser depois o prisioneiro de Wilhelmshöe, fez entregar por M. de Conti, écuyer, um bilhete de visita ao que é agora redactor das
Farpas. Uma garrafa dada, um bilhete agradecendo. O redactor das Farpas julga-se quite com o segundo império.
O outro redactor desta crónica, estando no Egipto, teve ocasião de esperar a que era então S. M. a imperatriz dos Franceses, durante duas horas, no cais de Porto Said, sob um sol candente, até que S. M., desembarcando toda vestida de linho branco, com a sombra azulada da sua ombrelle chinesa ondeando-lhe sobre o colo, tomasse com aquele firme andar que fazia lembrar Diana, em Homero, a dianteira de um cortejo em que o redactor das Farpas se achava obscuramente incorporado.
Duas horas de sol, num areal do Egipto! Em redor, apertados no estreito cais de madeira, suavam e abanavam-se com os seus lenços de baptiste os Srs. de Beust, o duque de Aosta, o príncipe Frederico da Prússia, Abd-el-Kader, o príncipe da Holanda, e S. M. o imperador da Áustria.
Vinte dias depois, o mesmo redactor das Farpas passava no deserto do Sara sob um sol cruel. Era na areia fulva, a perder de vista. Pouca água, uma fadiga terrível.
Havia a distância um khan, espécie de casebre de pau, onde se podia ter abrigo e o repouso de um bom sono. O redactor das Farpas ia abrigar-se lá, quando teve de sair à pressa pela razão que estava chegando e se ia lá abrigar S. M. a imperatriz. O redactor das Farpas continuou sob o sol. Mas, confessa-o, nesse momento, lembrando-se também das duas horas de Porto Said, pediu mentalmente ao Deus justo que castigasse o segundo império — que lhe fazia apanhar tanto sol. A Prússia encarregou-se de vingar o redactor das Farpas. Ele julga-se igualmente quite com a família Bonaparte — e aproveita esta ocasião solene de agradecer publicamente à Prússia.
XLIV
Dezembro 1871.
A camara municipal de. Lisboa, segundo se affirma, compenetrada da necessidade inilludivel de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a acquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brazil.
Respeitamos a câmara. Todavia parece-nos discutível esta maneira zoológica de pôr alguma ordem na confusão do município. Nem se nos afigura lógico que a 300 000 habitantes que pedem higiene, limpeza, polícia, iluminação, passeios, a câmara responda, no seu zeloso cuidado — com um bicho dentro de uma jaula!
A cidade, realmente, não oferece um aspecto próspero.
A iluminação é sepulcral. O gás mostra-se inferior em seus serviços à antiga candeia de lata. Nas principais ruas, parte dos candeeiros repousam, apagados; os que velam bocejam, num dormente bocejo de luzinha mortal; outros nunca se estrearam, e nem sabem que são candeeiros.
Monturos de caliça e de pedregulho tomam nas ruas um espaço abusivo. O entulho tem um certo direito a estar parado nos passeios, vendo as senhoras que passam, mas não deve pelo menos privar de igual regalia os habitantes que pagam décima.
As ruas, pela sua limpeza, mereceram de nós a designação que lhes ficou — canos do avesso. As que são calçadas tomam com a chuva o aspecto gentil de uma missanga de charcos. As macadamizadas, essas, depois de se terem desfeito no Verão numa atmosfera de pó fétido, apressam-se no Inverno a reabilitar-se mostrando que são, como outra qualquer vereda, capazes de saber exercer a profissão de lameiro.
A glória da capital, a maravilha, o Aterro, é ladeado em todo o seu comprimento por duas suaves circunstâncias — o cheiro da imundície dos canos, e o pó de carvão das fábricas; oferecendo assim o caso de uma sociedade rica e dândi que passeia no brilho da riqueza e nos vagares do luxo — com a palma da mão sobre a boca e o lenço sobre o nariz!
As obras que a câmara constrói são talvez excelentes: mas ela vai-as erguendo tanto em segredo, tão longe das curiosidades imprudentes, que muita gente supõe que a câmara abre as suas ruas, planta as suas árvores, alarga os seus passeios — na sala do conselho, debaixo da mesa, em sessão secreta!
A canalização merece da parte da câmara o respeito — de relíquia. Não se lhe toca, nem de leve. A ilustre câmara pratica com os canos a mesma delicada reserva que os escravos dos haréns com os perfumes preciosos e evaporáveis. A cidade por baixo está podre: aí habitam na sentina as epidemias, os tifos, a cólera, a anemia, a deterioração da raça: através da delgada película das calçadas, Lisboa sua a morte. Nós vivemos sobre um furúnculo: onde quer que se pique, isto é, que se escave, sai uma vaporização torpe, que perturba. Há dias assim foi, ao pé da Casa Havanesa. E, no entanto, a câmara mantém ao domicílio da imundície a inviolabilidade que a Carta só garante ao cidadão.
Os bairros pobres são por si uma acusação cruel. As vielas negras e sujas; os casebres imundos e caducos; os destroços de vitualhas e de farrapagens; a vadiagem dos cais; a exalação das sarjetas; a humidade infecta, tudo faz daqueles lugares — uma espécie de depósito da miséria pública. Como para o vão da escada se atiram nas casas os restos de trapos, de louças, de chinelos velhos — para aqueles bairros se atira
A Câmara Municipal de Lisboa, segundo se afirma, compenetrada da necessidade iniludível de melhorar as condições da cidade, trata com toda a solicitude de fazer a aquisição de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar, para completar a obra da regeneração municipal, araras do Brasil. desapiedadamente com os restos da plebe!
Lisboa é a cidade mais suja da Europa. A própria Constantinopla, com o torpe desleixo turco, a própria Atenas, com a indolente miséria grega — são mais limpas. E se não fosse o Tejo que lhe faz uma certa toilette, e este sol maravilhoso que tudo alegra e doura — Lisboa, aqui ao canto, junto do mar, como um cano, seria a sentina da Europa.
E perante esta situação, o município, penetrado da sua responsabilidade, e resolvido a dotar a cidade de condições habitáveis — o que lhe dá?
Um leopardo.
É talvez interessante, mas não excessivamente prático, este facto: a fera em substituição da obra pública.
Porque a verdade é que, quando se expuser convincentemente à câmara que a cidade de noite está escura, a câmara não pode em sua honra — em vez de mais gás, adquirir mais leões.
Não queremos mal às feras: e quanto mais conhecemos os homens mansos, mais estimamos os bichos bravos... Mas entendemos que as feras se portam mal, entram no domínio do ilícito, mostram uma ambição indesculpável, excedem as suas atribuições de fera — querendo acumular a qualidade de melhoramentos municipais. Um crocodilo é decerto estimável: mas ver-se-ia superiormente embaraçado quando a câmara, no seu zelo febril, o encarregasse de substituir um passeio público. E por seu lado o habitante não se daria por extremamente satisfeito, no dia em que nos passeios, para fazer as vezes de árvores, se enfileirassem lobos!
A câmara, na sua inteligência, deve compreender que o bicho não é inteiramente o equivalente do edifício.
Nunca a câmara viu, por exemplo, S. M. El-Rei passear as ruas a cavalo no
Arsenal. Portanto não é justo que nas praças, em lugar de dar ao habitante fatigado um banco de madeira — ela lhe ofereça o dorso de um rinoceronte.
Deste modo toda a cidade corria o risco de ser em breve mordida pelos melhoramentos municipais. E seria desagradável que os jornais noticiassem: «Ontem, a
última obra em construção devorou na Rua Nova da Palma uma criança de cinco anos, ficando depois a lamber os beiços, de regalada...
Que a câmara medite (porque a sua inteligência é para muito), que se ela der o exemplo funesto de substituir as construções pelos animais — pode levar o habitante a substituir os animais pelas instituições. E no dia seguinte àquele em que a câmara, para mandar abrir um chafariz, comprar, em substituição, um elefante — qualquer sujeito, em vez de dizer ao criado: — «O António, põe o selim no ruço... — pode esquecer-se a ponto de gritar:
— O António, aparelha a câmara!
O que prejudicaria fortemente os interesses constitucionais!
XLV
Dezembro 1871.
S. M. a Rainha passeava no Aterro. Um mendigo vem junto dela e pede-lhe esmola. Um polícia corre e prende o mendigo. O desgraçado, retido todo o dia na esquadra policial, com frio e com fome, tem unia dor. Foi necessário mandá-lo numa maca para o hospital. Não se sabe ainda se o fuzilarão. O dia estava nublado, mas seco.
S. M., cujo vestido de veludo orlado de peles era perfeito, continuou serenamente na serenidade da tarde.
Sempre que um pobre se aproxima com a mão estendida de S. M. o Rei, de S. M. a Rainha, de SS. AA. os Infantes — é preso.
Aprovamos. E como este mendigo vai para a cadeia, iremos a seu lado para exprobrar a esse homem pervertido os fundos abismos da sua negra acção! Dir-lhe-emos:
— «É bem feito! Bem te conhecemos, desgraçado... Vós sois muitos, e a cidade está cheia da vossa multidão, que erra por e ssas esquinas, esfomeada e amarela, de caridade em caridade! Bem vos conhecemos: os velhos com os seus chapéus altos, o peito sumido para dentro, apoiados tremulamente a uma bengala, pedindo com uma voz exausta e meio morta; as mulheres, de rostos macilentos, com uma saia curta, umas velhas botas esfarrapadas, aconchegando no xale traçado uma pobre criancinha que se encolhe entre os farrapos, coçando as chagas da cabeça com a sua pobre mãozinha regela da; os desgraçados pequenitos, que gemem, enrolados numa velha e larga jaqueta de cotim, no degrau de uma porta fechada; os que não têm trabalho, e que à noite, sem camisa, com a gola do casaco remendado erguida para cima, fazendo bater na laje da rua as solas despegadas, pedem, explicando a sua fome; os que suplicam baixo, timi-damente, com o terror da recusa; os que são insistentes, e apelam com o desespero de um náufrago que se agarra a uma última tábua; os que querem beijar a mão de agradecimento; os que ficam a rezar, sufocados, com as lágrimas nos olhos... Vivem em buracos ignorados, dormem pelos bancos, escondidos nas sombras dos entulhos, acolhidos pelos cocheiros na palha das cavalariças; comem de vez em quando; têm todas as dores que dá o frio, todas as agonias que dá a fome; andam sob o terror da polícia; desejam o hospital como um refúgio, e um dia, embrulhados numa serapilheira, são deitados à vala!...
«Miserável, tu foste impudente! Viste aquela senhora, descendo de uma caleche, com batedores; julgaste que ela, rainha, rica, bem agasalhada, podia dar-te a ti, pobre diabo, uma moeda de vintém, o custo de um caldo quente numa taberna!... Porque enfim, velhaco, bem se vê que vais precisando de comer por este frio áspero...
Imaginaste que a tua audácia te podia render um vintém! Bem vês, rendeu-te a cadeia.
Aprende! Um mendigo como tu, esfarrapado e nojento, não se aproxima assim de uma princesa nova, na frescura aveludada da sua toilette! Pois ousaste ir pedir uma esmola sem levares uma farda de moço fidalgo? O teu hálito de fome podia incomodar aquela gentil senhora. Imagina que ela manchava a ponta da sua luva gris pene, se te tocasse na mão, nessa mão sempre estendida e cortada do leste... Que desgraça! a sua luva perfumada com «marechala»! Pois a policia podia lá consentir tal desastre! Tu és um animal! Vejam lá! Sob pretexto de que o Inverno é terrível, de que não tens pão, nem lume, nem uma manta, que tiritas, que sentes dores, que és velho, vais assim pôr-te diante de uma princesa, em toda a crua realidade dos teus andrajos, e pedes-lhe 10 réis!
10 réis! Assim se pedem 10 réis! Ah! imbecil, tu cuidas que os vestidos de cetim e de veludo, as peles, as jóias, as caxemiras, os perfumes, vêm do ar e de graça, como esse frio que te traspassa? Que desplante! «dê cá 10 réis!» E onde os havia ela de ir buscar, os 10 réis? Tu imaginas que todo o mundo é rico como o bom Deus que atira tudo às mãos cheias, estrelas, sóis, nuvens, maravilhas, e aquele pavilhão azul do Céu que lhe devia ter custado milhões? És tonto! Supões que uma rainha desce assim, como uma burguesa, a ter pena de um pobre? Tu não lês os jornais, bem se vê! Ouviste talvez dizer que um, que se chamava Napoleão III, parava nos passeios a cada momento o seu breack para encher de sous os chapéus dos pobres? Talvez te contassem que uma, a quem chamam a imperatriz da Alemanha, distribui por sua mão, de manhã, com os cabelos caídos sobre um penteador, dinheiro aos mendigos! Mas essa gente — é gente exagerada! Talvez também ouvisses dizer de um chamado Jesus, que abraçava os pobres e lhes enxugava o sangue das feridas! Esse era um poeta! Tu és ignorante, velho!
Decerto não lês o Figaro. Tens ouvido que a mais bela, a única missão das rainhas é a caridade... Ora aprende! Medita na Cadeia a caridade das rainhas! Bem feito. Ah! tens frio? tens fome? Pois a enxovia te dará o pago de teres fome e teres frio. Pede outra vez, anda! pede! Muito feliz foste ainda em não te correrem a chicote!»
Assim falaríamos a este indigno mendigo vil e torpe, e pediríamos a S. M. a
Rainha que insistisse em que esse grande criminoso fosse rapidamente enforcado — se na realidade S. M. a Rainha tivesse culpa ou responsabilidade deste facto intolerável e grotesco.
Não foi S. M. que prendeu o pobre — foi a polícia. E estamos certos que, se alguém se afligiu seriamente, não foi o pobre — foi S. M.
Ora pedimos, para honra e sossego de todos, que não seja permitido a qualquer sr. polícia chegar-se ao pé de S. M. a Rainha, e fazer-lhe insulto mais brutal e mais vil — que é prender os desgraçados que lhe pedem esmola!