Uma Campanha Alegre/II/VI
VI
Janeiro 1872.
Ainda há pouco Mgr. Dupanloup, bispo de Orleães e antigo académico, pedia à
Academia a sua demissão por incompatibilidade com Littré, positivista e académico recente. Isto, bem entendido, obrigaria Mgr. Dupanloup (se nos não trans-via uma errónea lógica) a pedir a sua demissão de deputado à assembleia, porque onde está a fé-dupanloup não pode estar a impiedade-littré — e o positivista Littré é deputado à assembleia. Mas sendo Littré cidadão francês — deve Mgr. Dupanloup, pela lógica da incompatibilidade, demitir-se de cidadão francês. Resta porem alguma coisa. Littré é homem, e o princípio de Mgr. Dupanloup obriga-o desde já, se é consequente, a demitir-se da sua qualidade de homem. E não é tudo ainda. Littré é animal vertebrado, e portanto o lógico e incompatível Mgr. Dupanl oup deve correr perante a autoridade competente e demitir-se nobremente de animal vertebrado. Mais ainda! Littré é ser —
(parte do Universo, etc.) e Mgr. Dupanloup, que é incompatível com tudo o que é Littré, segundo as suas palavras, deve trabalhar até conseguir — a sua demissão de ser. E enfim demitido de académico, de deputado, de francês, de homem, de matéria, e de ser — o que fica, deste bispo de Orleães, sábio latinista e panfletário ilustre?
Em Portugal, agora, o clero descobre incompatibilidade entre a qualidade de católico e a qualidade de mação.
Ora, como sabem, hoje as associações maçónicas (que perderam há muito a sua feição carbonária, jacobina, etc.) são em Portugal associações públicas com os seguintes fins:
Eleições;
Socorros mútuos;
Beneficência;
Auxílio e protecção recíproca aos irmãos no País e no estrangeiro.
De sorte que, segundo a opinião recente do clero, um católico — não pode tratar de eleições.
Nem socorrer, proteger e auxiliar os seus amigos.
Enquanto a eleições, os srs. eclesiásticos são os mais lesados em que haja incompatibilidade entre a qualidade de católico e de agente de eleições, porque a carreira sacerdotal de SS. Sª depende essencialmente da sua habilidade eleitoral: e SS.
S.as não foram subtis apresentando a caça ao voto incompatível com a devoção a Roma.
Querem os srs. párocos definitivamente abandonar a urna? Então SS. S.as arriscam-se a criarem bolor nas suas pobres paróquias de aldeia. Pretendem continuar a proteger candidatos? Em tal caso perdem a sua natureza católica e não podem ganhar pelo altar.
Quererão SS. S.as dizer-nos que não trabalham em eleições? É a sua missão mais clara e efectiva. Na última eleição, numa diocese próxima de Lisboa, a autoridade eclesiástica superior oficiou aos párocos de todas as suas freguesias para que desenvolvessem o maior zelo, influenciassem, por todos os modos patentes e ocultos, na luta política. E por esta estrada de votos que se chega às boas paróquias.
Enquanto a socorros e protecção — não nos parece que os srs. sacerdotes sejam muito mais hábeis, declarando que ser católico é incompatível com ser beneficente.
O clero começa a reconhecer entre a Igreja e a vida incompatibilidades inesperadas.
Devem lembrar-se que a Igreja vive de esmolas! que o Papa vive de esmolas! E essa teoria nova leva a suprimir o dinheiro de S. Pedro, a côngrua, todos os haveres ecle-siásticos.
Por outro lado se o sacerdote começa a esmiuçar à beira do leito de morte a vida do moribundo, para achar nela incompatibilidades com o Céu, podem dar-se casos terrivelmente burlescos. Porque se é um pecado irresgatável o ter trabalhado em eleições (o que constitui uma das ocupações da maçonaria), sê-lo-á igualmente ter pertencido a unia filarmónica — outro emprego fortuito da maçonaria. Em algumas terras do reino as sociedades maçónicas filiais — não tendo trabalhos, nem fins mais altos — reúnem-se usualmente como bandas de música! E assim chegaremos ainda a tempos amargos em que os jornais publiquem esta retractação:
«Declaro que renego e me arrependo do facto culpado e terrível de ter, em companhia criminosa, esquecido todos os deveres cristãos, e sob a influência do espírito mau — tocado o «Barba Azul» no clarinete!»
Não se vê menos embaraçado o próprio Governo, ele!
A Igreja condena a maçonaria; mas a maçonaria é hoje simplesmente uma sociedade constituída para fazer eleições; — a Igreja portanto condena completamente o tráfego eleitoral.
Tem pois o Governo a escolher entre fazer eleições, o que lhe atrai a reprovação da Igreja, ou contentar a Igreja, o que lhe traz a perda do poder! Porque ter depois de morto a glória do Céu, e em vivo a delícia de gozar como deputado o Sr. Melício — não pode ser!
Tem de escolher entre Melício para a câmara e o Céu para a bem-aventurança. Se, para ganhar o Céu, repele Melício com pudico e místico meneio — perde um formoso apoio: e se, para ter esse voto considerável, acolhe Melício com amoroso braço, rasgam-se- lhe sob os pés as fendas do abismo teológico.
Tem de decidir — entre o Céu e a maioria. Devoto, perde as eleições; eleitoral, perde o Paraíso. Ou S. Pedro ou Melício.
Melício está-lhe de frente, com todas as apetitosas atracções da maçã proibida, nas manhãs do Paraíso. Se estende mão ávida para colher Melício, Satã, o terrível comissário civil do abismo, deita-lhe a mão à gola do casaco: se se afasta, e deixa, sem o colher, Melício baloiçando-se na ponta do ramo verde, perde um voto imenso. E enfim o Céu é o Céu, mas um Melício é um Melício. Que fazer? colher Melício? — é o ranger de dentes. Deixar Melício nas árvores para que os pardais o comam? — é a queda do poder. Porque aqui Melício é mais que homem, aqui Melício é pomo, o pomo de onde depende o Bem e o Mal! (E não falamos do Sr. Melício, inteligente e laborioso rapaz, que amamos: falamos do grande símbolo constitucional, d’Ele, de Melício!)
Que fará o Governo nesta questão espinhosa? Renunciará às eleições ou renunciará ao Céu? ==__MACH__:Página:Uma campanha alegre v2 (1891).pdf/43== VII
Janeiro 1872.
«Sei — diz o Sr. Sampaio — que muitos concelhos mortos para a administração vão ressuscitar para a resistência.»
É a verdade. Há concelhos cm que nem câmara, nem administração, nem regedoria se manifestam mais do que em atravessar pomposamente a praça, no dia da procissão dos Passos, fazendo reluzir ao sol o óleo espesso do penteado. A vila está entregue aos acasos naturais. Nenhumas obras; as vielas descalçam-se, os muros aba-tem, os enxurros empoçam. Nenhuma higiene: a imundície apodrenta em sossego, os maus cheiros fazem atmosfera, os porcos fossam às portas, a praça é uma capoeira pública. Nenhuma polícia; no mercado a desordem, na taberna o jogo, nas esquinas os bêbedos. A administração namora as moças, a regedoria barbeia os fregueses. Não se cria nada, nem se conserva coisa alguma. O que há serve tranquilamente para se estragar: desde a escola que vai perdendo os discípulos, até à cadeia que vai perdendo as grades. É uma vila que apodrece. Há aí o silêncio dos sítios em que cresce o bolor. Um marchante que passa, uma égua que trota, surpreendem: as crianças escancaram a boca, as autoridades espreitam do canto. Ninguém é rico, ninguém é vivo. Dizem-se apenas meias palavras e aperta-se apenas meio botão. Não se vive inteiramente, como não se vestem inteiramente os casacos: a vida e os casacos — trazem-se às costas.
Pois bem, um dia uma portaria diz: «Este concelho está extinto — e fica anexado a tal outro...