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Uma Campanha Alegre/II/XXIX

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XXIX

Julho 1872.

Os socorros foram dados por uma lancha de pilotos, que se apressou corajosamente, e por outro barco, que veio, num risco agudo, da praia do Cabedelo. Conseguiram salvar 10 homens: 14 morreram.

A 10 passos do mar, repousava placidamente o salva-vidas. O salva-vidas não desceu ao mar. Fez como o Palácio da Torre da Marca, ou como a estátua de D. Pedro

IV — deixou tranquilamente os pescadores na agonia das vagas. Entendeu que não era com ele. Eram apenas 14 homens que iam morrer afogados. Quem tinha obrigação de vir era a bomba dos incêndios. O salva-vidas, não. O salva-vidas só se moveria para algum caso espe cial, em que ele pudesse dar os seus serviços especiais — como, por exemplo, se tivesse desabado um muro.

Então correria. Assim, como era um naufrágio, o salva-vidas conservou-se imóvel, aboborando.

O salva-vidas da Foz tem um fiscal remunerado e tem a Comissão do Salva-vidas.

Esta comissão, cujas atribuições ignoramos, revela às vezes a sua existência na prosa das gazetas. Lê-se: «Ontem reuniu-se a Comissão do Salva-vidas, em assembleia geral, para deliberar»; ou «Foi mandada louvar pelo governo civil a Comissão do Salva-vidas».

Destas deliberações e destes louvores resulta que, quando se volta uma lancha com 24 homens, morrem 14; resulta que tem de se aprestar, rapidamente, na aflição, um barco casual, com homens voluntários e compassivos, que às vezes se volta numa violência de mar, e complica o desastre; e resulta que o salva-vidas, nem sequer finge.

Podia descer, molhar-se, navegar um instante: não; conserva-se agasalhado na sua habitação onde, dizem rumores gloriosos, ele está embrulhado em algodão, num cofre.

No entanto a opinião interroga o senhor fiscal. O senhor fiscal explica:

— Não saiu o salva-vidas, porque não há tripulação.

Assim foi muito tempo.

O salva-vidas não tinha tripulação. O Porto confiou sempre que o salva-vidas se tripulasse a si mesmo. Porque, enfim, um barco que tinha a forma, a construção aparente, o tamanho dos outros a que se chamava salva-vidas, devia ter qualidades originais, exclusivas, de excepção — e que naturalmente possuía o poder de se dirigir e de se tripular. E esperou-se sempre que, se houvesse um naufrágio, o salva-vidas se desamarraria, se meteria cordas e cabos, se desceria ao mar, se remaria, se iria ao leme, e ele mesmo estenderia a proa, como mão salvadora e firme, aos náufragos desolados.

Esperava-se isto do brio do salva-vidas. Vem um naufrágio. Bom! Abrem-se-lhe as portas e a comissão fica esperando que ele se espreguiçasse e corresse febrilmente ao desastre.

O salva-vidas não se moveu. — Está a dormir, disseram entre si, e sacudiram-no robustamente. — Agora, agora! murmuravam. Mas com um espanto aterrado, viu-se que o barco estava imóvel, como num alicerce. Gritava-se na praia, e o grosso mar bramia.

A comissão suava, pedia-lhe, increpavao, cuspia-lhe: — o barco, inabalável, estendia a sua sombra bojuda sobre a quente amarelidão da areia. Então a inteligência da comissão deu um grito e compreendeu — que para fazer navegar um barco é necessária uma

Na Foz, há pouco, voltou-se uma lancha. Morreram 14 homens. tripulação.

Quando a comissão, em assembleia geral, afirmou definitivamente esta ideia — foi que o governador civil, surpreendido justamente por tanta agudeza e engenho — os mandou louvar, em portaria. — E começou-se a procurar uma tripulação...

Mas aí foi a crise temida. Cada marinheiro, cada remador, convidado a comparecer, acercava-se do salva-vidas, apalpava-o, olhava-o, e recusava resolutamente. Foram chamados os afoitos, os destemidos, os heróicos. Torciam o barrete entre os dedos, e diziam secamente: — Menos eu!

A comissão tinha os cabelos brancos. A cada recusa afastava-se melancolicamente, e ia deliberar. Os naufrágios seguiam o seu curso trágico. O salva-vidas dormia.

Enfim um dia a comissão, exasperada, veio, em grupo, interrogar o segredo estranho. Aproximou-se do salva-vidas. Olhou e levou violentamente a mão ao nariz. O salva-vidas, o jovem salva-vidas estava podre!

Se descesse à água desfazia-se — foi a opinião dos peritos. E a comissão com o olfacto resguardado, saiu e continuou a deliberar. Sempre que uma lancha se volta a comissão reúne-se, e grave, delibera. E o senhor fiscal, concentrado e pontual, recebe o seu ordenado. A areia do Cabedelo reluz ao sol, as senhoras passeiam na Cantareira, as gaivotas voam, e os que naufragam morrem.

E de vez em quando o senhor governador civil, despertando do seu cismar, manda louvar acomissão.