Uma Campanha Alegre/II/XXXI

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XXXI

Julho 1872.

O regulamento das cadeias é provisório. Conheceu-se, ao fazê-lo, quanto era incompleto, deficiente, anti-higiénico, mal seguro, bárbaro, antigo, sujo: fez-se provisório, por alguns meses. Sabem há quanto tempo dura este regulamento provisório? Há vinte e nove anos.

Mas hoje é uma curiosidade toda particular que queremos revelar. De entre tantas faltas das cadeias - — a falta de espaço, a falta de ar, a falta de pessoal, a falta de segurança, a falta de asseio, a falta de alimento, a falta de moral, a falta de higiene — queremos destacar, como um diamante de um colar, a falta de roupa.

Os presos — não têm roupa. Na última leva de degredados, os que partiram foram vistos sair do Limoeiro em farrapos a maior parte, e um ou dois quase nus.

O Limoeiro tem um lúgubre guarda-roupa: calças de linho, camisas de riscadinho, sapatos brancos e bonés de cotim. Daqui fornecem-se os faxinas, que são os presos encarregados de varrer e lavar os dormitórios e corredores — e, além dos faxinas, os presos pobres.

Ora quando se embarca uma corda de degredados, o carcereiro deve ter de véspera a relação dos que partem, para lhes preparar o enxoval, fatal e definitivo como a mortalha — uma camisa, uma calça, um boné e um par de sapatos!

Fiquemos a ver um pouco esta avareza imunda.

Um preso tem em Portugal, para o seu degredo de África — uma camisa e uma calça. A França, que não é exemplar na organização dos seus serviços penais, dá ao deportado seis camisas, três blusas, seis calças, seis lenços, dois pares de sapatos, etc., um enxoval cómodo, lógico, facilmente transportável na sua mochila, e novo. Ele mesmo tem obrigação de lavar, a bordo, de três em três dias a sua roupa, e a sua limpeza

é fiscalizada com o rigor de um dever. Em Portugal, país quente, para a África, terra afogueada — dá-se a um homem uma camisa e uma calça. É sujo.

Metido atulhadamente no negro porão de um navio, na acumulação bestial dos corpos, na promiscuidade dos suores, sem disciplina, sem água, com a indiferença pelo corpo que dá a miséria do destino, em que estado chega ao seu desgraçado fim aquela miserável criatura condenada, com a sua camisa única e a sua calça solitária?

Por isso os que têm visto um porão de degredados, nos nossos navios, o descrevem como a maior deformação da miséria. Corpos que se não lavam, cabelos que se não penteiam, confusão de enxergas, a quente exalação de todos os cheiros, ar coalhado e torpe, uns enjoados, outros doentes, o fervilhar dos vermes, a vil confusão dos farrapos, o abatimento do tédio, o chão escorregadio de imundícies, a abafada negrura daquele vão soturno; — e ali vão apodrecendo, em nome da lei, aqueles lúgubres restos de gente. É infame!

E é um castigo maior para além da sentença; porque se alguma coisa humilha, avilta, amolece a dignidade, coalha e petrifica a alegria, enodoa a esperança, debocha o carácter, amolece e amiasma o sentimento, dá um irremissível desprezo próprio — é a

Quando o Senhor D. Pedro V subiu um dia as escadas da Relação do Porto, disse com uma tristeza irritada: isto precisa de ser arrasado! A cadeia da Relação é das melhores deste Reino venturoso onde florescem de acordo — a papoila e Vidal. porcaria forçada.

E deve perder o pudor, a vontade, a consciência, cair numa desmoralização bestial, o homem que sente o seu corpo suar e verminar-se na sua única camisa.

Quem decretou esta infâmia? Se foi o regulamento das cadeias, reforme-se essa disposição como se lava uma nódoa. Esse regulamento não é inepto — é sujo. Não obriga só a reagir a consciência, obriga a pôr o lenço no nariz. Não precisa crítica — precisa benzina.

E porque o não reformam? As autoridades que o consentem dão uma ideia bastante escura da sua limpeza pessoal, tolerando para enxoval de um homem — uma camisa. Suas senhorias, essas autoridades, não podem exalar de si um aroma fino. Quem consente que um homem leve para um degredo — uma camisa — pode ser um jurisconsulto que se respeite, mas é um corpo que se evita. Tal autoridade não deve ser repreendida, deve ser lavada. Para ser reconhecida não precisa a toga — basta-lhe o cheiro. Não lhe façamos crítica, atiremos-lhe bacias de água. Que o sr. ministro da

Justiça lhes faça pagar os seus ordenados em sabão. E enquanto às suas cabeças, não pediremos à lei que as inspire — mas sim que as cate.

E sabem porque se dá ao degredado essa camisa? Não é asseio, nem higiene, nem dignidade, nem dó. E porque o preso, até ao cais, tem de passar na Baixa, e não se quer enojar os curiosos que param, com o aspecto devastador dos remendos da enxovia. E para que os srs. lojistas e ourives, imóveis em seus chinelos aos portais da loja, não se enojem, não se enjoem, com os farrapos pendentes daquele pobre corpo maquinal que vai para o seu porão! E uma atenção aos srs. lojistas. E só para atravessar a Baixa. Para isso, com efeito, basta uma camisa. Depois, na viagem, que apodreçam! Ah! como estas coisas põem ao claro sol do desdém, as baixas feições de um país! Uma camisa para um desterro, a camisa da lei. A autoridade é mais suja que o degredado, e a lei é mais suja que a autoridade. Terra de ruas infectas e de corpos imundos! Ao menos sejamos francos: em lugar das cinco quinas, ponhamos as cinco nódoas.

Pois bem. Essa mesma camisa — única — foi julgada excessiva. Tirou-se a camisa ao degredado. Nesta última leva, a 5 do mês passado, iam todos em trapos, alguns quase nus. As autoridades entenderam, e bem, que para um degredado, um zero, um farrapo humano, uma sombra pisada, uma vida em rodilha — uma camisa era de mais. Era. Para um degredado, em Portugal, uma camisa era afrontoso. Uma camisa tem um desembargador!

E por isso tirou-se a camisa ao preso.

Pela nossa parte achamos bem: e só pedimos a todos os nossos amigos que indaguem cuidadosamente quais foram as autoridades que, dando esta ordem suja — deram uma tão especial ideia do seu próprio asseio — para que não suceda aproximarmo-nos delas, desprevenidamente — sem desinfectantes!