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Uma senhora

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UMA SENHORA.


Nunca encontro esta senhora que me não lembre a prophecia de uma lagartixa ao poeta Heine, subindo os Appeninos: «Dia virá em que as pedras serão plantas, as plantas animaes, os animaes homens e os homens deuses.» E dá-me vontade de dizer-lhe:--A senhora, D. Camilla, amou tanto a mocidade e a belleza, que atrazou o seu relogio, afim de ver se podia fixar esses dois minutos de crystal. Não se desconsole, D. Camilla. No dia da lagartixa, a senhora será Hebe, deusa da juventude; a senhora nos dará a beber o nectar da perennidade com as suas mãos eternamente moças.

A primeira vez que a vi, tinha ella trinta e seis annos, posto só parecesse trinta e dous, e não passasse da casa dos vinte e nove. Casa é um modo de dizer. Não ha castello mais vasto do que a vivenda d'estes bons amigos, nem tratamento mais obsequioso do que o que elles sabem dar ás suas hospedes. Cada vez que D. Camilla queria ir-se embora, elles pediam-lhe muito que ficasse, e ella ficava. Vinham então novos folguedos, cavalhadas, musica, dansa, uma successão de cousas bellas, inventadas com o unico fim de impedir que esta senhora seguisse o seu caminho.

--Mamãi, mamãi, dizia-lhe a filha crescendo, vamos embora, não podemos ficar aqui toda a vida.

D. Camilla olhava para ella mortificada, depois sorria, dava-lhe um beijo e mandava-a brincar com as outras creanças. Que outras creanças? Ernestina estava então entre quatorze e quinze annos, era muito espigada, muito quieta, com uns modos naturaes de senhora. Provavelmente não se divertiria com as meninas de oito e nove annos; não importa, uma vez que deixasse a mãi tranquilla, podia alegrar-se ou enfadar-se. Mas, ai triste! ha um limite para tudo, mesmo para os vinte e nove annos. D. Camilla resolveu, emfim, despedir-se d'essses dignos amphytriões, e fel-o ralada de saudades. Elles ainda instaram por uns cinco ou seis mezes de quebra; a bella dama respondeu-lhes que era impossivel e, trepando no alazão do tempo, foi alojar-se na casa do s trinta.

Ella era, porém, d'aquella casta de mulheres que riem do sol e dos almanaks. Côr de leite, fresca, inalteravel, deixava ás outras o trabalho de envelhecer. Só queria o de existir. Cabello negro, olhos castanhos e callidos. Tinha as espaduas e o collo feitos de encommenda para os vestidos decotados, e assim tambem os braços, que eu não digo que eram os da Venus de Milo, para evitar uma vulgaridade, mas provavelmente não eram outros. D. Camilla sabia d'isto; sabia que era bonita, não só porque lh'o dizia o olhar sorrateiro das outras damas, como por um certo instincto que a belleza possue, como o talento e o genio. Resta dizer que era casada, que o marido era ruivo, e que os dois amavam-se como noivos; finalmente, que era honesta. Não o era, note-se bem, por temperamento, mas por principio, por amor ao marido, e creio que um pouco por orgulho.

Nenhum defeito, pois, excepto o de retardar os annos; mas é isso um defeito? Ha, não me lembra em que pagina da Escriptura, naturalmente nos Prophetas, uma comparação dos dias com as aguas de um rio que não voltam mais. D. Camilla queria fazer uma represa para seu uso. No tumulto d'esta marcha continua entre o nascimento e a morte, ella apegava-se á illusão da estabilidade. Só se lhe podia exigir que não fosse ridicula, e não o era. Dir-me-ha o leitor que a belleza vive de si mesma, e que a preoccupação do calendario mostra que esta senhora vivia principalmente com os olhos na opinião. É verdade; mas como quer que vivam as mulheres do nosso tempo?

D. Camilla entrou na casa dos trinta e não lhe custou passar adiante. Evidentemente o terror era uma superstição. Duas ou tres amigas intimas, nutridas de arithemetica, continuavam a dizer que ella perdera a conta dos annos. Não advertiam que a natureza era complice no erro, e que aos quarenta annos (verdadeiros), D. Camilla trazia um ar de trinta e poucos. Restava um recurso: espiar-lhe o primeiro cabello branco, um fiosinho de nada, mas branco. Em vão espiavam; o demonio do cabello parecia cada vez mais negro.

N'isto enganavam-se. O fio branco estava alli; era a filha de D. Camilla que entrava nos dezenove annos, e, por mal de peccados, bonita. D. Camilla prolongou, quanto poude, os vestidos adolescentes da filha, conservou-a no collegio até tarde, fez tudo para proclamal-a creança. A natureza, porem, que não é só immoral, mas tambem illogica, emquanto sofreava os annos de uma, afrouxava a redea aos da outra, e Ernestina, moça feita, entrou radiante no primeiro baile. Foi uma revelação. D. Camilla adorava a filha; saboreou-lhe a gloria a tragos demorados. No fundo do copo achou a gotta amarga e fez uma carêta. Chegou a pensar na abdicação; mas um grande prodigo de phrases feitas disse-lhe que ella parecia a irmã mais velha da filha, e o projecto desfez-se. Foi d'essa noite em diante que D. Camilla entrou a dizer a todos que casára muito creança.

Um dia, poucos mezes depois, apontou no horisonte o primeiro namorado. D. Camilla pensára vagamente n'essa calamidade, sem encaral-a, sem apparelhar-se para a defeza. Quando menos esperava, achou um pretendente á porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinivel, a inclinação dos vinte annos, e ficou prostrada. Casal-a era o menos; mas, se os seres são como as aguas da Escriptura, que não voltam mais, é porque atraz d'elles vêm outros, como atraz das aguas outras aguas; e, para definir essas ondas successivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camilla viu imminente o primeiro neto, e determinou adial-o. Está claro que não formulou a resolução, como não formulára a idéa do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocinio. As que ella teve foram rapidas, obscuras, no mais intimo do seu ser, d'onde não as extrahiu para não ser obrigada a encaral-as.

--Mas que é que você acha de máo no Ribeiro? perguntou-lhe o marido, uma noite, á janella.

D. Camilla levantou os hombros.--Acho-lhe o nariz torto, disse.

--Máo! Você está nervosa; fallemos de outra cousa, respondeu o marido. E, depois, de olhar uns dous minutos para a rua, cantarolando na garganta, tornou ao Ribeiro, que achava um genro aceitavel, e se lhe pedisse Ernestina, entendia que deviam ceder-lh'a. Era intelligente e educado. Era tambem o herdeiro provavel de uma tia de Cantagallo. E depois tinha um coração de ouro. Contavam-se d'elle cousas muito bonitas. Na academia, por exemplo... D. Camilla ouviu o resto, batendo com a ponta do pé no chão e rufando com os dedos a sonata da impaciencia; mas, quando o marido lhe disse que o Ribeiro esperava um despacho do ministro de estrangeiros, um logar para os Estados-Unidos, não poude ter-se e cortou-lhe a palavra.

--O que? separar-me de minha filha. Não, senhor.

Em que dóse entrára n'este grito o amor materno e o sentimento pessoal, é um problema difficil de resolver, principalmente agora, longe dos acontecimentos e das pessoas. Supponhamos que em partes eguaes. A verdade é que o marido não soube que inventar para defender o ministro de estrangeiros, as necessidades diplomaticas, a fatalidade do matrimonio, e, não achando que inventar, foi dormir. Dois dias depois veiu a nomeação. No terceiro dia, a moça declarou ao namorado que não a pedisse ao pai, porque não queria separar-se da familia. Era o mesmo que dizer: prefiro a familia ao senhor. É verdade que tinha a voz tremula e sumida, e um ar de profunda consternação; mas o Ribeiro viu tão sómente a rejeição, e embarcou. Assim acabou a primeira aventura.

D. Camilla padeceu com o desgosto da filha; mas consolou-se depressa. Não faltam noivos, reflectiu ella. Para consolar a filha, levou-a a passeiar a toda parte. Eram ambas bonitas, e Ernestina tinha a frescura dos annos; mas a belleza da mãi era mais perfeita, e apezar dos annos, superava a da filha. Não vamos ao ponto de crêr que o sentimento da superioridade é que animava D. Camilla a prolongar e repetir os passeios. Não: o amor materno, só por si, explica tudo. Mas concedamos que animasse um pouco. Que mal ha n'isso? Que mal ha em que um bravo coronel defenda nobremente a patria, e as suas dragonas? Nem por isso acaba o amor da patria e o amor das mãis.

Mezes depois despontou a orelha de um segundo namorado. D'esta vez era um viuvo, advogado, vinte e sete annos. Ernestina não sentiu por elle a mesma emoção que o outro lhe dera; limitou-se a aceital-o. D. Camilla farejou depressa a nova candidatura. Não podia allegar nada contra elle; tinha o nariz recto como a consciencia, e profunda aversão á vida diplomatica. Mas haveria outros defeitos, devia haver outros. D. Camilla buscou-os com alma; indagou de suas relações, habitos, passado. Conseguiu achar umas cousinhas miudas, tão sómente a unha da imperfeição humana, alternativas de humor, ausencia de graças intellectuaes, e, finalmente, um grande excesso de amor proprio. Foi n'este ponto que a bella dama o apanhou. Começou a levantar vagarosamente a muralha do silencio; lançou primeiro a camada das pausas, mais ou menos longas, depois as phrases curtas, depois os monosyllabos, as distracções, as absorpções, os olhares complacentes, os ouvidos resignados, os bocejos fingidos por traz da ventarola. Elle não entendeu logo; mas, quando reparou que os enfados da mãi coincidiam com as ausencias da filha, achou que era alli de mais e retirou-se. Se fosse homem de luta, tinha saltado a muralha; mas era orgulhoso e fraco. D. Camilla deu graças aos deuses.

Houve um trimestre de respiro. Depois appareceram alguns namoricos de uma noite, insectos ephemeros, que não deixaram historia. D. Camilla comprehendeu que elles tinham de multiplicar-se, até vir algum decisivo que a obrigasse a ceder; mas ao menos, dizia ella a si mesma, queria um genro que trouxesse á filha a mesma felicidade que o marido lhe deu. E, uma vez, ou para robustecer este decreto da vontade, ou por outro motivo, repetiu o conceito em voz alta, embora só ella pudesse ouvil-o. Tu, psychologo subtil, pódes imaginar que ella queria convencer-se a si mesma; eu prefiro contar o que lhe aconteceu em 186....

Era de manhã. D. Camilla estava ao espelho, a janella aberta, a chacara verde e sonora de cigarras e passarinhos. Ella sentia em si a harmonia que a ligava ás cousas externas. Só a belleza intellectual é independente e superior. A belleza physica é irmã da paysagem. D. Camilla saboreava essa fraternidade intima, secreta, um sentimento de identidade, uma recordação da vida anterior no mesmo utero divino. Nenhuma lembrança desagradavel, nenhuma occurrencia vinha turvar essa expansão mysteriosa. Ao contrario, tudo parecia embebel-a de eternidade, e os quarenta e dous annos em que ia não lhe pesavam mais do que outras tantas folhas de rosa. Olhava para fóra, olhava para o espelho. De repente, como se lhe surdisse uma cobra, recuou atterrada. Tinha visto, sobre a fonte esquerda, um cabellinho branco. Ainda cuidou que fosse do marido; mas reconheceu depressa que não, que era d'ella mesma, um telegramma da velhice, que ahi vinha a marchas forçadas. O primeiro sentimento foi de prostração. D. Camilla sentiu faltar-lhe tudo, tudo, viu-se encanecida e acabada no fim de uma semana.

--Mamãi, mamãi, bradou Ernestina, entrando na saleta. Está aqui o camarote que papai mandou.

D. Camilla teve um sobresalto de pudor, e instinctivamente voltou para a filha o lado que não tinha o fio branco. Nunca a achou tão graciosa e lepida. Fitou-a com saudade. Fitou-a tambem com inveja, e, para abafar este sentimento máu, pegou no bilhete de camarote. Era para aquella mesma noite. Uma idéa expelle outra; D. Camilla anteviu-se no meio das luzes e das gentes, e depressa levantou o coração. Ficando só, tornou a olhar para o espelho, e corajosamente arrancou o cabellinho branco, e deitou-o á chacara. _Out, damnet spot! Out!_ Mais feliz do que a outra lady Macbeth, viu assim desapparecer a nodoa no ar, porque no animo d'ella, a velhice era um remorso, e a fealdade um crime. Sae, maldita mancha! sae!

Mas, se os remorsos voltam, porque não hão de voltar os cabellos brancos? Um mez depois, D. Camilla descobriu outro, insinuado na bella e farta madeixa negra, e amputou-o sem piedade. Cinco ou seis semanas depois, outro. Este terceiro coincidiu com um terceiro candidato á mão da filha, e ambos acharam D. Camilla n'uma hora de prostração. A belleza, que lhe supprira a mocidade, parecia-lhe prestes a ir tambem, como uma pomba sae em busca da outra. Os dias precipitavam-se. Creanças que ella vira ao collo, ou de carrinho empuxado pelas amas, dansavam agora nos bailes. Os que eram homens fumavam; as mulheres cantavam ao piano. Algumas d'estas apresentavam-lhe os seus _babies_, gorduchos, uma segunda geração que mamava, á espera de ir bailar tambem, cantar ou fumar, apresentar outros _babies_ a outras pessoas, e assim por diante.

D. Camilla, apenas tergiversou um pouco, acabou cedendo. Que remedio, senão aceitar um genro? Mas, como um velho costume não se perde de um dia para outro, D. Camilla viu parallelamente, n'aquella festa do coração, um scenario e grande scenario. Preparou-se galhardamente, e o efeito correspondeu ao esforço. Na egreja, no meio de outras damas; na sala, sentada no sophá (o estofo que forrava este movel, assim como o papel da parede foram sempre escuros para fazer sobresahir a tez de D. Camilla), vestida a capricho, sem o requinte da extrema juventude, mas tambem sem a rigidez matronal, um meio termo apenas, destinado a pôr em relevo as suas graças outoniças, risonha, e feliz, emfim, a recente sogra colheu os melhores suffragios. Era certo que ainda lhe pendia dos hombros um retalho de purpura.

Purpura suppõe dynastia. Dynastia exige netos. Restava que o Senhor abençoasse a união, e elle abençoou-a, no anno seguinte. D. Camilla acostumara-se a idéa; mas era tão penoso abdicar, que ella aguardava o neto com amor e repugnancia. Esse importuno embryão, curioso da vida e pretencioso, era necessario na terra? Evidentemente, não; mas appareceu um dia, com as flores de Setembro. Durante a crise, D. Camilla só teve de pensar na filha; depois da crise, pensou na filha e no neto. Só dias depois é que poude pensar em si mesma. Emfim, avó. Não havia duvidar; era avó. Nem as feições que eram ainda concertadas, nem os cabellos, que eram pretos (salvo meia duzia de fios escondidos), podiam por si sós denunciar a realidade; mas a realidade existia; ella era, emfim, avó.

Quiz recolher-se; e para ter o neto mais perto de si, chamou a filha para casa. Mas a casa não era um mosteiro, e as ruas e os jornaes com os seus mil rumores acordavam n'ella os echos de outro tempo. D. Camilla rasgou o acto de abdicação e tornou ao tumulto.

Um dia, encontrei-a ao lado de uma preta, que levava ao collo uma creança de cinco a seis mezes. D. Camilla segurava na mão o chapellinho de sol aberto para cobrir a creança. Encontrei-a oito dias depois, com a mesma creança, a mesma preta e o mesmo chapéu de sol. Vinte dias depois, e trinta dias mais tarde, tornei a vel-a, entrando para o bond, com a preta e a creança.--Você já deu de mamar? dizia ella á preta. Olhe o sol. Não vá cahir. Não aperte muito o menino. Acordou? Não mexa com elle. Cubra a carinha, etc., etc.

Era o neto. Ella, porém, ia tão apertadinha, tão cuidadosa da creança, tão a miudo, tão sem outra senhora, que antes parecia mãi do que avó; e muita gente pensava que era mãi. Que tal fosse a intenção de D. Camilla não o juro eu. («Não jurarás», MATH. V, 34 ). Tão sómente digo que nenhuma outra mãi seria mais desvellada do que D. Camilla com o neto; attribuirem-lhe um simples filho era a cousa mais verosimil do mundo.

no match

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FIM DE UMA SENHORA.