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Urupês (5ª edição)/Boccatorta

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Boccatorta



S fidelissimos portuguezes do seculo 15 legaram aos mundos descobertos o vezo de attribuir aos santos uma tarefa onomastica algo destoante das funcções da côrte celeste. De principio eram as terras recem-pisadas, e com ellas ilhas, golfos, praias, montanhas e o mais respectivo a relovos geographicos que tomavam nomes tirados do alto.

As cidades incipientes se foram, depois, nas mesmas aguas e com ellas ruas, becos infectos, padarias, bodegas, botequins e outras bain'cas onde se furta no peso.

Não parou ahi a mania. Desceu pelas miudezas domesticas abaixo até alcançar o porretinho de guatambu' assado ao fogo, o qual virou S. Benedicto, e o arção das seilas que inda é hoje Santo Antonio.

Isto, no fundo, talvez commova de lagrimas o calendario: mas não deixa bem airados os santos varões. Não valeu a pena ao primeiro padecer martyrios beatificatorios para de descer á terra transfeito em lenho, e andar por ahi nos disturbios a empolar gallos no coruto dos espancados. Nem ao segundo operar o milagre dos peixes para desfechar afinal em esteio de máus cavalleiros em transe de corcóvos.

Não fugiram á praxe as velhas fazendas. Rara é a que toma o nome d'algum estygma peculiar ao feitio topographico, escapando desse modo á santificação.

Ha-as, porém, e entre estas a fazenda do Atoleiro, propriedade do major João Lucas.

A quarto de legua do arraial do mesmo nome, seus quinhentos alqueires de massapê vêm morrer á espalda do povoado, rente ao pequenino cemiterio de taipa.

De permeio entre este e um tracto de mattas virgens, dormita de papo acima o atoleiro que deu figa aos santos. Pégo de insidiosa argila negra, fraldejado por coroa de velhos guembês nodosos, a tabu a esvelta cresce-lhe á tona, viçosa na folhagem erectil como espadas verdes que as brisas tremelicam. Pela inflorescencia, longas varas soerguem-se a prumo sustendo no apice um chouriço côr de telha que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuira arisca de longo bico, e saltita pelas hastes a corruila do brejo, cujo ninho bojudo se ouriça, tramado de aculeos, nos espinheiros marginaes.

Fóra disso răs, mimbuias pensataivas e, a rabear velocissima nas pocas verdinhentas d'algas, a trahira, o voraz esqualosinho do lodo. Um brejo, emfim, como cem outros.

Notabilisa-o, porém, a profundez. Ninguem ao vel-o tão calmo sonha o abysmo trahidor occulto na verdura. Dois, tres bambu's emendados que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se no lodo sem alcançar pé.

Além de varios animaes sumidos nelle, contava-se o caso tragico dum portuguez teimoso que, na birra de salvar um burro já atolado a meio, se viu tragado lentamente pelo barro maldito. Desd'ahi ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular como uma das boccas do proprio inferno.

Transposto o abysmo a vegetação encorpa até constituir a matta, por cujo seio corre a estrada mestra da fazenda.

Pela manhã daquelle dia passára ali o troly do major, de volta da cidade.

Além do velho, de sua mulher Don'Anna e de Christina, a filha unica, vinha, a passeio, o bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça. E áquella hora ouviam todos na varanda, da bocca do Vargas, fiscal, a noticia do succedido durante a ausencia.

Já contára Vargas do café, da puxada dos milhos e estava na criação.

— Porcos, têm sumido alguns. Uma leitôa rabicó e um capadete malhado dos "Polanchan" ha duas semanas que moita. Para mim, ninguem me tira da cabeça, o ladrão foi o negro, inda mais que essa criação costumava alongar das bandas do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do maldelazento. Aquillo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não "querem" me acreditar...

O major sorriu áquelle "querem". Vargas tinha ogerisa velha ao misero Boccatorta, não perdia ensanchas de lhe attribuir maleficios, e de estumar o patrão a correr com elle das terras, que aquillo, Nossa Senhora, até enguiçava uma fazenda!

Interessado, o moço indagou do estranho personagem.

Boccatorta é a maior curiosidade da fazenda. Filho d'uma escrava de meu pae, nasceu, o coitado, disforme e horripilante como não ha memoria de outro. Um monstro. De tão feio fugiu ao mundo e ha annos vive sosinho, entocado no matto, donde raras vezes sae e só á noite. O povo diz delle horrores, que come crianças, que é bruxo, que tem parte com o diabo. Todas as desgraças acontecidas no arraial correm á sua conta. Para mim é um pobre diabo cujo crime unico é ser feio demais. Perdeu a medida, e está a pagar o crime que não commetteu.

Vargas interveio, cuspilhando com cara de asco:

— Se o doutorsinho o visse!... Que bicho! E' a coisa mais nojenta deste mundo!

— Feio como Quasimodo? perguntou o da cidade.

— Esse não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou jurando que o negro passa diante do... como é?

Eduardo apaixonava-se pelo caso.

— Mas, amigo Vargas, feio como? porque feio? explique-me lá essa feiura.

Grande parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e disse:

— O doutor quer saber como é o negro? Venha cá. Vossa Senhoria 'garre n'um juda de tabatinga e judie delle; cavoque o buraco dos olhos e afunde dentro duas brazas allumiando; metta a faca nos beiços e saque fóra os dois; 'rranque os dentes e só deixe um toco; entorte a bocca de viez na cara; faça uma coisa desconforme, Deus que me perdoe. Depois, como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés. Quando cançar, descance. Corra o mundo campeando feiu'ra braba e applique o pior no estupor. Quando acabar 'garre no juda e ponha rente do Boccatorta. Sabe o que acontece? O juda fica lindo!

Eduardo desferiu uma gargalhada.

— Você exaggera, Vargas, nem o diabo não é tão feio assim, creatura de Deus!

— Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se acredita. Aquillo é feiura que só vendo!

— Nesse caso quero vel-o. Um horror dessa marca merece bem uma pernada.

Neste comenos assomou Christina á porta, annunciando café na mesa.

— Sabe? disse-lhe o noivo, temos um bello passeio em perspectiva: desentocar um gorilha que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.

— Boccatorta? exclamou Christina com um reverbero d'enojo no rosto. Não me fale nisso! Só o nome dessa creatura me põe arrepios no corpo.

E contou o que sabia delle. Boccatorta representára papel saliente na sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-n'a as mucamas com a cuca, e a cuca era o negro. Mais tarde, com ouvir ás creoulinhas todos os horrores correntes á conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicavel pavor ao noctambulo. No collegio houve tempo em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo a atropelou: Boccatorta a perseguil-a, e ella, em transes, a fugir. Gritava por soccorro, mas a voz lhe morria estrangulada na garganta. Despertava arquejante, exhausta, lavada em suores frios. Curou-a o tempo, mas a obsessão vincára para sempre fundos vestigios em su'alma.

Eduardo insistia:

— E' o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru' da realidade para desmanchar exaggeros de imaginação. Vamos todos, em farrancho, e asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu soccorro.

Christina consultou-se por uns momentos e,

— Póde ser, disse, talvez vá, mas não prometto. Na hora veremos... se ha coragem.


A maturação do espirito em Christina desbotára a vivacidade nevrotica dos terrores infantis. Inda assim vacillava. Renascia o medo antigo como renasce a encarquilhada rosa de Jerichó por contacto de humilima gotta d'agua. Vexada de surgir aos olhos do noivo tão infantilmente medrosa, deliberou que iria, mas desde esse instante uma imperceptivel sombra annuveou-lhe o rosto.

Ao jantar foram o assumpto as novidades do arraial, eternas novidades de aldeia, o fulano que morreu, a sicrana que casou. Casára um boticario e morrera uma menina de quatorze annos muito chegada á gente do major. Condoida particularmente, Don'Anna não a tirava da idéia.

— Pobre da Luizinha! Não me sae dos olhos o geito della, tão galante, quando cá vinha pelas jaboticabas, ali, áquella porta — Dá licença Don'Anna! — tão cheia de vida, vermelhinha do sol... Quem diria!...

— E inda por cima a tal historia do cemiterio... — interveio Christina. Papae soube?

Corriam no arraial rumores macabros. O coveiro, no dia seguinte ao enterramento, topou a sepultura remexida como se fôra violada durante a noite, e viu na terra fresca pegadas mysteriosas de uma "coisa" que não seria bicho nem gente deste mundo.

Já duma feita succedera caso identico por morte da Sinházinha Esteves; mas todos duvidaram da integridade dos pobres miolos do coveiro sarapantado.

— Esses incréus não mofavam agora do visionario porque o padre e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o facto. confirmavam-n'o.

Eduardo, imbuido do scepticismo bacharelesco dos moços de cidade grande, metteu a riso o caso com muita fortidão de espirito.

— A gente da roça duma folha d'embau'va pendurada no barranco faz logo, pelo menos, um lobishomem, mais tres mulas sem cabeça. Esse caso do cemiterio: um cão vagabundo entrou lá e arranhou a terra. Está ahi todo o grande mysterio!

Christina objectou:

— E os rastos?

— Os rastos! Estou a apostar em como taes rastos são os rastos do proprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco...

— E o padre Lysandro? acudiu Don'Ana para quem um testemunho tonsurado era documento de muito peso.

Eduardo cascalhou uma risada anticlerical e trincando um rabanete, expectorou:

— Ora o Padre Lysandro! Pelo amor de Deus, Don'Anna! O Padre Lysandro é o proprio coveiro de batina e coroa! A proposito...

E contou a proposito varios casos daquella marca, os quaes, no correr do tempo, vieram a explicar-se naturalmente, com grande cara d'asno dos coveiros e Lysandros respectivos.

Christina ouviu, com o espirito absorto em seismas, a bella demonstração geometrica. Don'Anna concordou da bocca para fóra, — por amabilidade. Mas o major, esse não piou nem sim nem não. A experiencia da vida ensinara-lhe a não affirmar com despotismo nem negar com "oras".

— Ha muita coisa exquisita neste mundo... dizia, traduzindo involuntariamente a safada replica do principe indeciso ao cabeça forte do Horacio.


Zangára o tempo quando, á tarde, o rancho se poz de rumo ao casebre de Boccatorta.

Ventava.

Rebojos de nuvens pardas sorviam as ultimas nesgas d'azul.

Os noivos breve se distanciaram dos velhos, que a passos tardos seguiam commentando a boa composição do futuro casal.

Não havia nisso exaggero de paes .Eduardo, embora vulgar, tinha a esbelteza necessaria para ouvir sem favor o encomio de rapagão, e Christina era um ramalhete completo das graças que os dezoito annos sabem compor.

Donaire, elegancia, distincção... pintam lá vocabulos esbeiçados pelo uso esse punhado de "quês" particularissimos cuja somma a palavra "linda" totalisa?

Labios de cereja, a magnolia da pelle accesa em rosas na face, olhos sombrios como a noite, dentes de perola... as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não pintam melhor que o "linda !" dicto sem mais enfeites além do ponto admirativo.

Vel-a mordiscando o hastil d'uma panicula roxa de catingueiro, colhida á beira do caminho, ora risonha ora séria, a côr das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincar-lhe nas temporas, vel-a assim formosa no quadro agreste duma tarde de Junho era comprehender a expressão dos roceiros: linda que nem uma santa.

Olhos, sobretudo, tinha-os Christina de alta belleza. Naquella tarde, porém, as sombras de sua alma coavam nelles penumbras de estranha melancholia. Melancholia e inquietação. O amoroso enlevo de Eduardo arrefecia amiude ante suas repentinas fugas. Elle a percebia longe de si, ou pelo menos introspectiva em excesso, — reticencia que o amor não vê de boa cara. E á medida que caminhavam recrescia aquella exquisitice. Um como intactil norcego diabolico riscava-lhe na alma voejos presagos. Nem o estimulante das brisas asperas, nem a ternura do noivo, nem o "cheiro de natureza" exsolvido da terra eram de molde a esgarçar a mysteriosa bruma de lá dentro.

Eduardo interpellou-a por fim:

— Que tens hoje, Christina? Tão sombria... E ella, num sorriso triste:

— Nada!... Porque?

Nada... E' sempre nada quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão do subconsciente, como os ziguezagues subtilissimos do sismographo em prenuncio de remota commoção tellurica. Mas esses nadas são tudo!...

— A' esquerda, pelo trilho!

A voz do major chamou-os á realidade. Um carreiro mal batido na macega esgueirava-se em colleios até á beira d'um corrego onde todos se reuniram de novo.

O major tomou a frente, e guiou-os matta a dentro pelos meandros d'uma velha picada.

Era ali o matto sinistro onde se alapavam Boccatorta e o seu cachorro lazarento, Merimbico, nome tresandante a satanismo para o faro do povileu, sem que o soubessem porque. A's sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobishomem e se punha de ronda ao cemiterio com muitos uivos á lua e aboccamentos ás pobres almas penadas, coisa muito de arrepiar.

O sombrio da malta enoiteceu de vez a alma de Christina.

— Mas afinal, para onde vamos, meu pae? Afundar no atoleiro como o Simas? Meu pae ji fez o testamento?

— Já, filha, chasqueou o major, e deixo o Boccatorta para ti.

Christina emmudeceu. Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outr'ora e foi com um estremecimento arrepiado que ouviu ladrido proximo de um cão.

— E' Merimbico, disse o velho, estamos quasi.

Mais cem passos e a matta rasgava-se em clareira na qual Christina viu logo a biboca do negro.

Fez-se toda pequenina e achegou-se de Don'Anna, apertando-lhe nervosamente as mãos.

— Bobinha! Tudo isso é medo?

— E' peior que medo, é... não sei quê!

Não tinha feição de moradia humana a alfurja do monstro. A' laia de paredes, paus a pique mal juntos, entresachados de ramadas seccas. Por cobertura, presos com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado e podre. Em redor, um terreirinho atravancado de latas ferrujentas, trapos e cacaria velha. A entrada era um buraco por onde mal passaria um homem de agacho.

— Olá, ó caramujo! Sae da toca que está cá o sinho moço e mais visitas! gritou o major.

Respondeu de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradavel som, Christina sentiu correr na pelle o arrepio dos pesadelos antigos, e num incoercivel movimento de pavor abraçou-se com a mãe.

O negro sahiu da cova meio de rastos com a lentidão de monstruosa lesma. A principio surdiu uma gaforinha arruçada, depois o tronco e os braços e a traparia immunda que lhe escondia o resto do corpo, entremonstrando, nos rasgões, o negror da pelle craquenta.

Christina escondeu o rosto no hombro de Don'Anna — não queria, não podia vêr.

Boccatorla excedia a toda pintura. A hediondez personificára-se nelle, avultando sobretudo, na monstruosa deformação da bocca. Não tinha beiços e as gengivas largas, violaceas, com raros cotos de dentes bestiaes fincados ás tontas, mostravam-se cru'as, como enorme chaga viva. E torta, posta de viez na cara; num esgar diabolico, resumindo o que a teratogenese póde compor de horripilante. Embora se estampasse na bocca quanto fosse preciso para dar áquella creatura a culminancia da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias, e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a fórma do pé humano. E olhos vivissimos, que pulavam das orbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerotica amarella. E pelle grumosa, escamada de escaras cinzentas... Tudo nelle rompia o equilibrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em crear a sua obra prima.

A' porta do casebre Merimbico, cachorro vulgar, todo ossos, pelle e sarna, rosnava contra os importunos.

Don'Anna e a filha retiraram-se, engulhadas. Só os homens resistiam á nauseante visão embora a Eduardo o tolhesse uma emoção jámais sentida, mixto de asco, piedade e horror. Aquelle quadro de suprema repulsão, novo para seus nervos, desnorteava lhe as idéas. Estarrecido como em face da Gorgona, não lhe acudia palavra que dissesse.

O major, entretanto, trocava lingua com o monstro que, em certo ponto, a uma pergunta alegre do velho arregaçou na cara um riso. Eduardo não teve mão de si; aquelle riso naquella cara excedia á sua capacidade de horripilação. Voltou o rosto enojado e se foi para onde as mulheres, murmurando:

— E' demais! E' de fazer mal a nervos de aço!

Seus olhos encontraram-se com os de Christina e viram nelles a expressão de pavor da avesinha engrifada nas pu'as da suindára, o pavor da morte...


Quando sahiram da floresta, morria a tarde sob a chibata d'um vento precursor de chuva. Don'Anna arreceou-se pela filha.

— Foi imprudencia, Christina, vires sem ao menos um chalinho na cabeça. Queira Deus!...

A moça não respondeu. D'olhos baixos, retransida, aspirava a largos haustos o ar gelado para desafogo d'um aperto de coração nunca sentido fóra dos pesadelos.

O mal, entretanto, recalcitrava ás chasadas e aos sudoriferos.

Chamou-se o boticario da villa. Veiu a galope o Macario e diagnosticou pneumonia.

Quem já não assistiu a uma dessas subitaneas desgraças que de golpe se abatem, qual negro avejão de preza, sobre uma familia feliz, e estraçoam tudo quanto representa nella a alegria, a esperança, o futuro?

Noites em claro, dias morosos, janellas cerradas, cochichos pelos cantos, o rumor dos passos abafado...

E o doente a peiorar... O medico da casa, apprehensivo, com vincos na testa... Dias e dias, o duello contra a molestia incoercivel... A desesperança afinal, o irremediavel antolhado imminente, a morte presentida de ronda ao quarto...

Ao oitavo dia foi Christina desenganada e no decimo plangia o sino do arraial o seu prematuro fim.


— Morta!...

Eduardo escondia as lagrimas entre as almofadas do leito repetindo cem vezes a mesma palavra.

— Morta!...

Alcançava-lhe agora o significado tremendo, e, no entanto, quantas vezes a ouvira como a um som vazio de sentido!

A imagem de Christina morta, a esfervilhar na dissolução, sob a terra gelada, contrapunha-se ás visões da Christina viva, toda mimos d'alma e corpo, radiosa manhã humana de cuja luz toda se impregnára sua alma.

Cerrando os olhos revia-a ao seu lado, durante o passeio fatal, envolta nas brumas mysteriosas de vagos presentimentos. Recordava-lhe as palavras dubias, a vacillação. E arrepelava-se por não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes de qualquer coisa mysteriosa que tenazmente a defendia. Taes pensamentos enxameantes em torno á carne viva da sua dôr coavam nella venenos crueis.

Fóra, o sol redoirava cru'amente a vida.

Brutalidade!...

Morria Christina e não se desdobravam crepes pelo céu, nem murchavam as folhas das arvores, nem se recobria de cinzas a terra!

Espesinhado pela indifferença das cousas, fechou-se na clausura de sí proprio, torvo e dolorido, sentindo-se amarfanhar sob a pata cruel do destino.

E assim passavam-se as horas.

Noite alta, acudiu-lhe a idéa de correr ao cemiterio para beijar num ultimo adeus o tumulo da noiva.

Por sobre a vegetação adormecida cahia o pallor cinereo da mingoante. Raras estrellas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de um cão — Merimbico talvez — a escandir o concerto das untanhas que coaxavam gluglus nas aguadas.

Eduardo alcançou o cemiterio.

Estava encadeado o portão.

Apoiou a testa nos frios varões de ferro e mergulhou os olhos queimados de lagrimas por entre os carneiros humildes em busca do que lhe escondia Christina .

No ar. um silencio de eternidade. A espaços as brisas carreavam o olor alacre dos cravos de defunto, que em moitas floriam aquelle triste cemiterio de aldeia.

Seu olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de atinar o sitio onde ella dormia o grande somno quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos. Dirieis um arranhar da terra em raspões cautelosos ao qual se casava o resfolego soffrego d'uma creatura viva.

Pulsou-lhe violento o coração.

Os cabellos cresceram-lhe na cabeça.

Allucinação?

Apurou os ouvidos: o rumor extranho lá continuava vindo de um ponto sombreado de cyprestes. Firmou a vista: qualquer cousa movia-se no chão, agachada.

Subito, n'um clarão, fulgurou em sua memoria a scena do jantar, o caso da Luizinha. as palavras de Christina. Eduardo sentiu arripiarem-se-lhe os cabellos e ganho d'um panico desvairado deilou a correr, como louco, rumo á fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem folego, arquejante, lavado em suores frios, despertando de sobresalto a fa- milia adormecida.

Com gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos dentes entrecortavam, exclamou:

— Estão desenterrando Christina!... Eu vi uma coisa desenterrando Christina !...

O major acudiu estrouvinhado:

— Que loucura é essa, moço?

— Eu vi!... continuava Eduardo, com os olhos desmedidamente abertos. Eu vi uma coisa desenterrando Christina!...

O major apertou a testa entre as mãos. Esteve assim, immovel, um instante. Depois, sacudiu a cabeça num gesto de decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre dentes como em resposta a si proprio:

— Será possivel, meu Deus?

Vestiu-se de golpe, metteu no bolso o revólver e, atirando tres palavras enigmaticas á estarrecida Don'Anna, gritou para Eduardo com inflexão de aço na voz:

— Vamos!

O moço, magnetisado pela energia do velho, seguiu-o como um somnambulo.

No terreiro despertou o capataz.

— Venha comnosco. A "coisa" está no cemiterio.

— Vargas saltou para fóra do foice na mão.

— Vae ver que é elle, patrão, até juro!

O major não respondeu, e os tres homens partiram a correr pelos campos em fóra

A meio caminho Eduardo, exhausto de tanlas commoções, atrazou-se. Seus musculos recusavam-lhe obediencia. Ao defrontar com o atoleiro a perna lhe fraqueou de vez e elle cahiu, offegante.

Entrementes o major e o feitor alcançam o cemiterio, galgam o muro, e approximam-se como gatos do tumulo de Christina.

Um quadro hediondo antolha-se-lhes de golpe: um corpo branco, nu' e inerte, jazia no chão e enleado nelle um vulto vivo, negro como um polvo.

O pae de Christina desferiu um rugido de féra. e qual féra mal ferida arrojou-se d'arremesso para cima do monstro. A hyena, mau grado a surpreza. escapou ao bote e fugiu. E coxeando, cambaio, semi-nu, tropeçando nas cruzes, galgando tumulos com agilidade inconcebivel em semelhante creatura. Bocca-torta saltou o muro e fugiu, seguido de perto pela sombra esganiçaute de Merimbico.

Eduardo concentrava todas as forças para acompanhar o desenlace do drama, quando viu passar rente de si o vulto asqueroso no necrophilo para logo desapparecer mergulhado ma massa rendilhada dos velhos guembês.

Voando-lhe no encalço viu passar em seguida o vulto dos perseguidores.

Houve uma pausa em que só lhe feriu os ouvidos o rumor da correria.

Depois, gritos de colera d'envolta a um grunhir de queixada cahido em mundeu, e tudo se misturou no barulho d'uma lucta que o uivo intercadente de Merimbico dominava lugubremente.

O moço correu a mão pela testa gelada: estaria sob as garras d'um pesadelo? Não; não era sonho. Disse-lh'o a voz alterada do feitor esboçando o epilogo da tragedia:

— Não atire! Não merece. Pr'a que serve o barro?

E logo após sentiu recrudescer a lucta, entre imprecações de colera e os grunhidos cada vez mais lamentosos do monstro.

E ouviu farfalhar o matto como se arrastassem por elle um corpo manietado, a debaler-se em convulsões violentas.

E ouviu um rugir de supremo desespero.

E após o baque fôfo de um fardo que se atufa na lama.

Uma vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu pensamento adormeceu...

Quando voltou a si dois homens lhe borrifavam na cara agua gelada. Encarou-os, marasmado. Ergueu-se, mal firme, apoiado a um delles. E conheceu a voz do major que lhe dizia entre arquejos:

— Seja homem, moço. Christina já está na terra, e o negro...

— ... está beijando o barro, concluiu Vargas.


Ao raiar do dia Merimbico ainda lá estava sentado nas patas trazeiras, a uivar, de olhos postos no sitio onde sumira o seu companheiro.

Nada mais lembrava a tragedia nocturna, nem denunciava o tumulo de lodo açaimador da bocca hedionda que babujára nos labios de Christina o beijo unico de sua vida.









Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.