Urupês (5ª edição)/Bucolica

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Bucolica



ANTA chuva hontem... O cedrão do pasto fendido pelo raio — e hoje, que manhan!

A natureza orvalhada tem a frescura duma criancinha ao deixar o banho.

Inda la rolos de cerração vadia nas grotas.

O sol já nado e ella com tanta preguiça de recolher os pannos de neblina...

A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas que cahem e tremelicam folhas, sorri como em extase.

Ha em cada vergontea folhinhas de esmeralda tenra, brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste: colhe-as de alcance porque é um gosto mordiscar-lhes a polpa macia.

Meu Deus, o que vae de aranhóes pela relva! Nos galhinhos da joveva, nas flexas de capim, grandes e pequeninos, todos mimosos de desenho, tecidos a fio de seda...

Compraz-se a noite em agrumar nelles milhões de diamantesinhos que a luz da manhan irisa.

Mal-me-queres por toda a parte. Amarellos e brancos. E tanta flor sem nome...

— Flôr atôa, diz a gente roceira.

São, coitadinhas, a plebe humilima.

A nobreza floral mora nos jardins, esplendendo côres de dansa serpentina em formas luxuriosas de odaliscas.

A duqueza Dhalia, sua majestade a Rosa, o samurai Chrisanthemo — que fidalguia!

Bem longe estão desta aqui, azuleguinha, pouco maior que uma conta de rosario.

Não obstante vejo cá mais alma.

Leio mil coisas na sua modestia.

Luctou sem treguas com a terra tramada de raizes concurrentes, com as geadas, com as lagartas, com os bichos que pastam.

Que tenacidade, que prodigio de economia não representam estas iscas de petalas, e o perfume agreste que as olorisa, e a côr — tentativa de azul — com que se enfeitam, as faceirinhas!

Entretanto possuem a belleza selvatica das coisas que jámais soffreram a domesticação do homem.

As de jardim: escravas de harem... Adubo farto, terra livre, tutores para a haste, cuidados mil — cuidados do homem para com a rez na ceva...

As agrestes morrem livres no hastil materno; as fidalgas. na guilhotina da tesoura, e vão murchar em vasos ou lapelas.

Fabula do lobo e do cão...


Que ar! A gente das cidades, affeita a sorver um indecoroso gaz feito de lama em suspensão n’um mixto de máu azoto e peior oxygenio, não sabe o prazer sadio que é sentir os pulmões borbulhantes deste fluido vital em estado de virgindade.

O oxygenio, fresquinho: foi elaborado naquelle momento pela vegetação viçosa.

Respiral-o é sorver vida á nascente.


Alli o rio.

Ingazeiros desgalhados desdobram sobre elle as franças cujas pontas arripiam o espelho das aguas.

Cáem na corrente flores mortas.

O rio, feito movediço esquife, condul-as com mimo té á corredeira proxima; ali, irritado, amarfanha-as, fal-as pedaços, e ellas viram babugem.

Margeia o rio a estrada, ora d'ocre amarello, ora roxa-terra, aqui tunnel sob a verdura picada no alto de nesgões de luz, além escampa.

Nos barrancos ha tocos de raizes decepadas pelo enxadão, e covas de formigas onde as andorinhas armam ninho.

Surgem casotas de caipira.

Lá na aguada bate roupa uma mulher.

Rumor no matto: sae delle, de lenha ao hombro, uma cabocla.

— Sinh'Anna, bom dia! Que é do Luiz?

— No eito, coitado.

— Sárou bem?

— Ché que esperança! Melhorsinho. Panaricio é uma festa!...

— Malva, Sinh'Anna, malva cozida.


Baitacas em bando, bulhentas, a sumirem-se num capão d'angico.

Borboletas amarellas nos humidos: parece que debulharam alli flores de ipé.

— Zut!

Uma preá que corta o caminho. Péga, Vinagre!

Outra casinha lá longe.

E' a toca do Urunduva, caboclo amaleitado,

Este diabo tem nas terras a coisa mais bella da zona — a paineira grande.

Tóco para lá.

Um carreirinho entre roças, a pinguela, um vallado a saltar...

Eil-a!

Que maravilha!

Derreada de flôres côr de rosa parece uma só immensa rosa crespa.

Beija-flores como aqui ninguem jámais viu tantos.

Milheiros não digo — mas centenas, uma centena pelo menos lá está zinindo.

Vêm de longe, todas as manhãs, emquanto dura a festa floral da paineira mãe.

Voejam rapidos como o pensamento, ora librados no ar sugando uma corolla, ora riscando curvas velocissimas em trabalhos de amôr.

Que lindo amôr — alado, rutilante de pedrarias!...

Respiro um ar cheiroso, adocicado, e fico-me em enlevo a ver as flores que cáem, gyrantes.

Se afla mais forte a brisa, despegam-se em bando, e recamam o chão. Devem ser assim as arvores, no paiz das fadas...


O Urunduva?

E' elle mesmo. Amarello, inchado, a arrastar a perna...

— Então meu velho, na mesma?

— Melhorsinho. A quina sempre é remedio.

— Isso mesmo, quina,quina.

— E'... mas está cara, patrão. Um vidrinho assim, tres cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira.

— ??

— Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ella e inda um capadinho de choro. Como este anno carregou demais vem paina p'r'arrobas. Elle quer aproveitar, derruba e...

— Derruba!!...

— Derruba e...

— Porque não colhe a vara, homem de Deus?

— Não vê que é mais facil derrubar...


— Derruba!!...

Fujo d'alli com este horrivel som a azoinar-me a cabeça.

Aquella maleita ambulante é "dona" da arvore.

O Urunduva está classificado no genero "homo".

Goza de direitos.

E' o rei da criação, e dizem que feito á imagem e semelhança de Deus.

— Derruba!!...


Roças de milho.

A terra calcinada, com as cinzas escorridas pelo aguaceiro da vespera, inça-se de tocos carbonisados, e arvores nu'as ennegrecidas até meia altura, e paulama em carvão.

Entremeio, covas de milho já espontando folhinhas tenras.

Adiante, feijão. O terreno varrido, côr de sepia, pontilhado pelo verde das plantas recem-vindas lembra chita de velha: as velhas gostam de chitas escuras com pintas verdes.


E' aqui o sitio da Maria Veva.

Tem ruim fama esta mulher papuda. Má até alli dizem.

O marido, coitado! um bobo que anda pelo cabresto — Pedro Suan.

Ganhou este appellido desde uma celebre festa em que o surrou a mulher com um suan de porco.

Lá vem elle, de espingardinha.

— Vae caçar?

— Antes fosse. Vou cuidar do enterro.

—Enterro?

— Pois morreu a menina, a Annica.

— Pobresinha! De que?

— A gente sabe? Morreu de morte.

Estupido!

Sem querer dirijo-me para a casa delle. Não gosto da Veva. E' horrenda, beiço rachado, olhar máu, e aquelle papo!

— Então Nha, morreu a menina? Soube-o ainda agora pelo Pedro...

— E'.

Que resposta secca!

— E de que morreu?

— Deus é que sabe.

Peste!

E como a atrevidaça me olha duro!

Sinto-me mal em sua presença.

— Adeus, Sycorax!

Para alguma coisa sirva a literatura...


Arrepio caminho, entristecido.

A manhan vae alta, já cru'a de luz.

O sol estupido, o azul de irritar.

Que é dos aranhóes?

Sumiram-se com o orvalho que os visibilisa.

Estão agora invisíveis a apanhar os insectos incautos que Nha Veva Aranha devora.

A paisagem perdeu o encanto da frescura e da bruma.

Está um logar commum.

Não vejo flores nem passaros.

O excesso de luz dilue as flôres, o calor esconde as aves.

Só um cará-cará resiste ao mormaço empoleirado num esgalho de perobeira. Está de tocaia aos pintos do Urunduva, o rapinante.

Um vulto.

E' mulher.

Será a Ignacia?

Vem de trouxa á cabeça.

E' ella mesma, a preta aggregada aos Suans.

— Então, rapariga?

— Ah, seu moço, vou-me embora. Alguem ha de ter dó da velha. Na casa da peste papuda nem mais um dia. Antes morrer de fome!...

— Que coisa houve?

— Não sabe que morreu a aleijadinta? Pois é, morreu. Morreu a pobre só porque hontem esta negra foi ao bairro do Liborio e a chuva me prendeu lá. Se eu pudesse adivinhar...

— Mas de que morreu a menina, creatura?

— Sabe de que morreu? Morreu... de sede! Morreu, sim, eu juro, um raio me abra pelo meio se a coitadinha não morreu...

Aqui soluços de choro cortaram lhe a voz.

—... de sede! Meu Deus do céu, o que a gente não vê neste mundo!


A menina era entrevada e a mãe má como a irára.

Dizia sempre: pestinha, porque não morre? Bocca atôa, a comer, a comer. Eslica o cambito, diabo!

Isso dizia a mãe — mãe. hein?

A Ignacia, entretanto, morava li só para zalar da aleijadinha.

Era quem a vestia, e a lavava, e arrumava o pratinho daquelle passarico enfermo.

Sete annos assim.

Excellente negra!

— Coisa de tres dias, 'garrou uma doencinha, dor de cabeça, febre, febre. Dei chá de hortelã, nada, dei cidreira, nada. Sempre a quentura da febre. Disse commigo. o compadre Liborio é bom curador. Vou lá e trago uma dóse. Fui — é longinho, tres quartos — elle me deu a dóse, mas quem disse de poder voltar? Uma chuvarada... Pousei no Liborio. Hoje, manhansinha, vim.

Entrei alegre, pensando: a coitadinha vae sarar. Eu que pisei na sala dou com a menina espichada na esteira, fria. Annica! Annica! Quando vi bem que estava morta de uma vez, ah! seu moço, berrei como nunca na minha vida!...

— Nha Veva, de que geito morreu Annica, conte, conte!

Nha Veva quieta, repuxando a bocca. Uma pedra. Não disse nada. Cahi em cima da menina, beijei, chorei. Nisto uma cotucada — era o Zico, aquelle negrinho, sabe? Olhei p'ra elle: fez geito de me falar lá fóra, longe da tatorana. Lá me contou tudo. A menina des'que eu sahi peiorou, mas quietinha sempre. Noite alta gemeu.

— Cala a bocca, peste! gritou do outro quarto a mãe — mãe, veja!

— Quero agua, nha mãe!

— Cala a bocca, peste!

A menina calou. Mais tarde gemeu outra vez, baixinho.

— Quero agua! quero agua!

Ninguem se mexeu.

— "E tu, negrinho safado, porque não acudiu a menina?" — "Não vê! Eu conheço nha Veva".

O seu Pedro, aquelle trapo, esse estava na pinga de todo o dia. Ninguem na casa para chegar uma caneca d'agua á bocca da doentinha. Ella, — um chorinho ainda; depois — mais nada. De manhã...

Lagrimas escorriam a fio pela cara da Ignacia e soluços de dor escandiam-lhe as palavras.

— De manhã foram encontrar a menina morta na cozinha, rente do pote d'agua. Arrastou-se até lá o anjinho que nem se mexer na cama podia, e morreu de sede diante da agua!...

— Quem sabe se...

— Não bebeu, não! O pote, em cima da caixa, ficava alto, e o côco estava tal e qual no logarsinho do costume. Não beheu, não. Morreu de... sede, o anjo!

Enxugou as lagrimas na manga.

— Agora vou no Liborio. Se elle me quizer, fico. Se não, sou bem capaz de me pinchar nesse rio. Este mundo não paga a pena...


Sol a pino.

Desanimo, lassidão infinita...







Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.