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Urupês (5ª edição)/Velha Praga

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Velha Praga


Andam todos, em nossa terra, por tal forma estonteados com proezas infernaes dos bellacissimos "vons" allemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer ás gentes da cidade que, se por lá fóra o fogo da guerra lavra implacavel, fogo não menos destruidor devasta as nossas mattas com furor não menos germanico.

Em agosto, por força da excessiva secca do inverno "von Fogo" lambeu montes e valles, sem um momento de treguas durante o mez inteiro.

Vieram em começos de Setembro chuvas leves, chuvinhas de apagar poeira, e, breve, novo "verão de sol" se estirou por Outubro a dentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapára á sanha de Agosto.

A serra da Mantiqueira ardeu como uma aldeia belga arde, e é hoje um cinzeiro immenso, entremeiado, aqui e acolá, de manchas de verdura — as restingas humidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela cautella dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.

A' hora em que escrevemos, fins de Outubro, chove. Mas que chuvinha sordida! Que miseria d'agua! Emquanto cáem do céu pingos homeopathicos, medidos por conta-gottas, o fogo, amortecido, mas não dominado, amoita-se insidioso nas piu'cas, a fumegar imperceptivel, prompto para vermelhar em chammas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.

Preoccupa a toda gente o conhecer em quanto fica, por dia, em francos e centimos. um soldado em guerra: mas ninguem cuida de calcular os prejuizos de toda a ordem, provindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de humus destruidas; os sues preciosos que. breve. as enxurradas deitarão fóra, rio abaixo, via oceano: a rejuvenescimento florestal da terra paralysado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possivel advento de pragas inscetiformes; a alteração para peior do clima, pela aggravação crescente das seccas; os vedos e aramados perdidos: o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as mil e uma particularidades que dizem respeito a esta ou aquella zona e, dentro della, a esta ou aquella situação agricola...

E' peculiar de Agosto, e typica, esta desastrosa queima de mattas; nunca, porém, assumiu tamanha violencia e alcançou tal extensão como neste tortissimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado de perto com o celebre anno mil de macabra memoria. Tudo nelle culmina, e vae logo ás do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram á regra.

Razão sobeja para, desta feita, encarar seriamente com o problema e resolvel-o de vez. Do contrario a Mantiqueira em pouco tempo será toda um sapeseiro sem fim crysipelado de samambaia — esses dois pontos finaes á uberdade das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade?

E' mister um rodeio para lá chegar.

A nossa montanha é victima de um parasita, piolho da terra. peculiar ao solo brasileiro como o Argas aos gallinheiros, o "Sarcoptes mutans" á perna das aves domesticas.

Poderiamos analogicamente classifical-o como um "Porrigo decalvans", productor da "pellada" das montanhas, pois, onde assiste, se vae ella despojando da coma vegetal até cahir em morna decrepitude, nu'a e escalvada. Em quatro annos, a mais ubertosa região se despe dos jequetibás e perobeiras millenarias, seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cahir em capoeira, passar desta á humildade da vassourinha, e, decahindo sempre, encru´ar definitivamente na desdita do sapeseiro, — sua tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o caboclo, especie de homem baldio, semi-nomade, inadaptavel á civilisação, mas que vive á beira della, na penumbra das zonas fronteiriças. A' medida que o progresso vem chegando com a via ferrea, o italiano, o arado, a valorisação das terras vae elle refugindo em silencio, com o seu cachorro, o seu pilão, a sua pica-páu, o seu isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado em uma rotina de pedra, recu'a, mas não se adapta.

E' de vêl-o abordar a um sitio novo para nelle armar a sua arapuca de "aggregado"; nomade, por força de vagos atavismos, não se liga á terra, como o camponio europeu, "aggrega-se-lhe", tal qual o "sarcoptes", pelo tempo necessario á completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para adiante com a mesma bagagem com que alli chegou.

Vem de um sapesal para criar outro. Coexistem em intima symbiose: sapé e caboclo são idéas associadas. Este inventou aquelle e lhe dilata os dominios; em troca disso o sapé lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colmeia das pobres abellas.

Chegam silenciosamente, elle e a "sarcopta" esposa, com um filhote no utero, outro ao peito, outro á ourela da saia, já de pito na bocca e faca á cinta. Completa o rancho um cachorro sarnento, — Brinquinho, a foice, a enxada, a pica-páu, o pilãosinho de sal, a panella de barro, um santo encardido, tres gallinhas pévas e um gallo indio. Com estes simples ingredientes o fazedor de sapeseiros perpetua a especie e a obra de esterilisação iniciada pelos remotissimos avós.

Abancam.

Em tres dias uma choça, que por euphemisco chamam casa, brota da terra como um urupê. Tirou tudo do lugar, esteios caibros, ripas, barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes. a palha do tecto. Tão intima é a communhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéa de tortulho nascido do chão por obra espontanea da natureza, — se a natureza fosse capaz de coisas inestheticas.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte das redondezas. Começam as requisições. Com a pica-páu limpa a floresta da volalaria incauta. Polvora e chumbo adquire-os vendendo palmito no povoado visinho. Quando o palmito escasseia, rareiam os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as peças; está encerrado o cyclo venatorio.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais bello páu. Arvores diante de cuja majestosa belleza Ruskin choraria de commoção, elle as derriba, impassivel, para extrahir o mel escondido num ôco.

Prompto o roçado, chegando o tempo da queima, entra em funcções o isqueiro. Mas aqui o "sarcopte" se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aceiros de dimensões sufficientes á circumscripção do fogo, urde traças para illudir a lei, cocando dest'arte a velha preguiça e a velha malignidade. Foi neste momento que o viu o poeta.

"Scisma o caboclo á porta da cabana”.

Scisma, de facto, não devaneios lyricos, mas geitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um "alibi" demonstrativo de que não esteve lá no dia do fogo.

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Onze horas.

O sol quasi a pino queima como chamma. Um "sarcopte" esgueira-se por ali, resabiado. Some-se. Minutos após crepita uma labareda medrosa na touça mais secca; oscilla, incerta; ondeia ao vento; logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do terreno, estruge fragorosa, com infernal violencia, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes, despejando para o céu golphões de fumo escuro estrellejado de faiscas. E' o fogo de matto.

Como não o detem nenhum aceiro, invade a floresta e caminha por ella a dentro, ora frouxo, nas capetingas ralas, ora massiço, aos estouros, nas moitas de taquarussu'; caminha em treguas, moroso e tibio quando a noite fecha, insolente se o ajuda o sol.

E em arrancadas furiosas, vae galgando montes, descendo encostas, em passo lento e traiçoeiro até que o detenha a muralha natural dum rio, estrada ou rampa noruega.

Barrado, inflecte para os flancos, ladeia o obstaculo, esgueira-se para os lados, e lá continua no abrazamento implacavel. Amordaçados, e lá continua o abrazamento implacavel. Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se numa «piúcã», quieto e invisivel, para, no dia seguinte, ao esquentar do sol, proseguir na faina carbonisante.

Quem foi o incendiario? Donde partiu o fogo?

Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado n'um litro de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processal-o? Não ha recurso legal contra elle. A pena, unica possivel, barata, facil e já estabelecida como praxe, é «tocal-o».

Curioso este preceito: «ao caboclo, toca-se».

Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma gallinha que vareja pela sala.

E tão affeito anda elle a isso que é commum ouvil-o dizer: se eu fizer tal coisa o senhor não me toca?

Justiça summaría que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente.

Emquanto a matta arde, o «sarcopte» regala-se.

— Eh! fogo bonito!

No vazio de sua vida semi-selvagem, em que os incidentes são um jacú abatido, uma paca fisgada n'agua e o filho novimensal, a queimada é o grande espectaculo do anno, supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.

Entrado Setembro, o caboclo planta na terra em cinzas um boccado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua producção annual é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cincoenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo maximo da sua resistencia ás privações. Nem mais nem menos. "Dando para passar fome", sem virem a morrer disso, elle, a mulher e o cachorro — está tudo muito bem; assim fez o pae, o avô, assim fará a prole empanzinada, que naquelle momento brinca, nu'a, no terreiro.

Quando se exhaure a terra; o aggregado muda de sitio.

No lugar fica a tapera e sapeseiro. Um anno que passe e só este attestará a sua estadia ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frageis materiaes de choça, e como nem sequer uma laranjeira foi plantada, nada mais lembra a passagem do Manoel Peroba, Chico Marimbondo, Geca Tatu' e outros sons ignaros de dolorosa memoria á natureza circumvinsinha.


Ha uma postura adoptada em quasi todos os codigos municipaes, prescrevendo, sob pena de multa, um aceiro de taes e taes dimensões em redor de todos os roçados destinados á queima. Como, entretanto, se não curou dos meios de lhe fiscalizar a execução, a sabia providencia dorme no cemiterio da Letra Morta. E' mister. é urgente tiral-a dahi, completando-a de modo a fazel-a produzir todo o beneficio de que é capaz. E isso se conseguirá facilmente. Basta attribuir aos inspectores de quarteirão a tarefa de verificar se os aceiros obedecem ás condições exigidas, prohibindo-se terminantemente, sob fortes penas, o deitar fogo ás roças sem a prévia inspecção dessa autoridade.

Avultado como é o numero de taes inspectores, ramusculos terminaes da arvore da Autoridade, o serviço se organisaría facilmente, com grande efficacia, sem despezas, sem barulho, sem burocracia.

Só das Camaras é licito esperar alguma cousa neste sentido. A União cuida de casos politicos, e, mesmo que voltasse a attenção para o problema, viria logo com uma dessas machinas pesadas, complicadas, matracolejantes, carissimas e inuteis como a Defesa da Borracha, de papelula memoria, caranguejolas que só funccionam nos relatorios e nas folhas do Thesouro.

O Estado...

Só as Camaras, só as Camaras poderão providenciar efficazmente, só ellas conhecem de perto as necessidades locaes, só dellas poderá partir a medida pratica e simples capaz de açaimar de vez o funestissimo fogo de Agosto.

A ellas, pois, o brado de misericordia da legião de prejudicados.






Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.