Utilizador:DanielTom/Lisboa Edificada

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Argumento
O mar Jónio Ulisses dividia,
E, rendido ao furor do bravo vento,
Amparo e porto a Júpiter pedia,
Que os deuses convocou do etéreo assento:
De Atlante o neto as naus ao porto guia,
Onde, achando suave acolhimento,
Circe, de ver Ulisses obrigada,
Porto e descanso dava à grega armada.

1
As armas e o varão que os mal seguros
Campos cortou do Egeu e do oceano,
Que por perigos e trabalhos duros
Eternizou seu nome soberano:
A grã Lisboa e seus primeiros muros
(De Europa, e largo império lusitano
Alta cabeça), se eu pudesse tanto,
À pátria, ao mundo, à eternidade canto.

2
Lembra-me, Musa, as causas, e me inspira
Como por tantos mares o prudente
Grego, vencendo de Neptuno a ira,
Chegou do Tejo à túmida corrente:
Ouvirá o som da lusitana lira
O negro ocaso e lúcido oriente,
Se tu dás ser a meu sujeito falto,
Para que caiba em mim furor tão alto.

3
Vós, grão senhor, com quem o céu reparte
Dons que o poder excedem da ventura,
Que, armado, filho pareceis de Marte,
E Adónis, desarmado, em formosura,
Em quem se uniu por natureza e arte
Co' a mor severidade a mor brandura,
Que em vossa altiva fronte o peso grave
Amor excita com temor suave:

4
Vós, que nos tenros anos um gigante
Representais, e como forte Godo
Novas esferas que não soube Atlante
Sustentais por mais alto e raro modo:
Que com ombros armados de diamante,
Sem c' o peso inclinar do mundo todo,
Dais santas leis às terras mais estranhas
De ambas as Índias, de ambas as Espanhas:

5
Vós, Alcides hespério, a quem não cansa
Vencer monstros do polo congelado,
Qu' inda de sangue seu por vossa lança
Seu plaustro as Ursas hão-de ver banhado:
Por vós, que encheis de medo e de esperança
O mundo, quando entrais no campo armado,
De que o grito imortal da fama corre
Donde o sol nasce às ondas onde morre:

6
Vós, águia imperial, a que o otomano
Falcão temendo as livres asas cerra,
A quem não hão-de ser pelo oceano
As Órcades, ou Thule, última terra:
Vós, açoite do torpe luterano,
Que buscando alta fama em dura guerra,
Penetrareis as grandes serras, onde
A famosa cabeça o Nilo esconde:

7
Vós, que humildes fareis os empolados
Mares, não sendo navegados dantes,
E os campos de Ampelusa subjugados
Vereis, pisando as luas arrogantes;
E a vossos pés rendidos e prostrados,
O dragão frio, os pérsicos turbantes,
E tudo o que há do antártico a Calisto,
Té o grão sepulcro libertar de Cristo:

8
Suspendei por um pouco do áureo cetro
A régia majestade soberana,
Ouvi cantar ao som do grego plectro,
Com grave acento a Musa lusitana:
E enquanto dais a mais sonoro metro
Obras dignas de glória mais que humana,
Dai-me vosso favor, que nele espero
Cantar de Ulisses, imitando a Homero.

9
Cortando o golfo Jónio prosseguia
Seu curso a grega armada, quando irado
Bóreas as negras asas sacudia,
Sobre o mar todo em serras levantado:
Euro bramindo o centro revolvia,
Via-se o ar de nuvens coroado,
E o fogo e confusão que o Inferno imita,
Mostra que o céu no mar se precipita.

10
Ao longe o mar bramia horrendamente,
Quebrando as ondas que c' o vento crescem,
Vão-se os ares cerrando, em continente
Da vista o mar e o céu desaparecem:
Encanece Neptuno, que o valente
Austro as ondas levanta, e quando decem
Deixam-se ver as grutas e as montanhas
Que esconde o mar nas húmidas entranhas.

11
Em braços da tormenta embravecida,
Que às naus último estrago ameaçava,
Corria a armada grega dividida,
Que já apenas as ondas contrastava:
Vendo-a o Dulíquio quase submergida,
Porque do porto o vento a desviava,
Co' a confusão do esp'rito aos céus erguia
A lagrimosa voz, e assim dizia:

12
"Ó grande Ámon, que a terra rodeaste
Dessas figuras belas e prestantes,
E esta lustrosa máquina abraçaste
Co' as luzes das esferas rutilantes:
Que o destino das coisas que criaste
Escreves nesses lúcidos diamantes,
Sendo divinas letras as estrelas,
Porque teu grão poder leiamos nelas:

13
"As fúrias doma de Neptuno irado,
E aplaca as iras do soberbo vento,
Pois das estrelas e do mar inchado
Só podes alterar o movimento:
Tu, que ordenas repouso ao sol dourado
No grande leito do húmido elemento,
Fazendo com justíssima balança
Seguir à tempestade a mor bonança:

14
“Não permitas, senhor, que este desterro,
Que há tantos anos temo, há tantos sigo,
Dilatando-se vá de erro em erro,
Que menos temo a morte que o perigo:
Permite-me lançar seguro ferro
Naquela doce praia e porto amigo,
E que possa gozar alegre porto,
Quando não seja vivo, ao menos morto."

15
Ouviu o grão Tonante o afligido
Coração com que Ulisses se queixava,
E nas entranhas paternais movido,
Dar-lhe porto e descanso desejava:
E para ser de todos entendido
O que do forte Ulisses se ordenava,
Conselho quer fazer no céu superno,
Onde declare este decreto eterno.

16
Ao grande Olimpo tinha convocado
Dos deuses a divina companhia,
Os que na zona ardente e congelado
Polo gozam do largo e breve dia:
Já para a hora e tempo limitado
Chamados de Cilénio a láctea via
Pisando vêm, e as deusas da prestante
Filha da bela Electra e de Taumante.

17
Nos quícios d' ouro sólido e seguro
Geme a porta do Olimpo omnipatente,
Treme dos claros céus o cristal puro
Ao aceno de Júpiter potente:
De balais e safira o sólio duro
Formava um jaspeado transparente,
E Júpiter, envolto em claridade,
Tinha ante o rosto um véu de majestade.

18
Nova luz de seu rosto recebendo
Com Júpiter assiste a cara esposa,
Ele os raios depõe, de quem tremendo
Está do mundo a máquina lustrosa:
O alígero Cilénio recolhendo
Os deuses na alta sala e luminosa,
Nela lugar lhes dava, qual convinha,
Seguindo a ordem que de Jove tinha.

19
Vê-se o intonso Apolo, e junto dele
Mavorte altivo armado de diamante;
Cobrindo os membros nus d' uma áurea pele
Vulcano, deus do fogo rutilante:
O rubicundo filho de Semele,
E o da formosa Acesta, a quem diante,
Dando co' as asas brandos movimentos,
Vão como pajens os menores ventos.

20
Palas, armada, valerosa entrava,
E logo a bela deusa, que em Citera
Pafos e Gnido reina, e se mostrava
Belona no semblante irada e fera:
Nenhum dos altos deuses se assentava,
Que sinal da tranquila mão se espera
De Júpiter, que inclina a luz serena,
E que se assentem gravemente acena.

21
Resplandecia Jove no alto assento,
A que suavemente se subia
Por degraus de cristal, cujo ornamento
De prata e d' ouro o resplandor vencia:
E no dossel, que iguala o firmamento,
Brilhava a radiante pedraria,
Que a clara luz do sol e sua beleza
Vence na graça, excede na pureza.

22
O estrado de matéria era mais fina
Que a massa das puríssimas estrelas;
Um arco vario forma Íris divina
D' outras cores mais finas e mais belas:
O tempo, fim das coisas, se reclina
A seus pés, como autor de todas elas,
E os esp'ritos, que em roda lhe assistiam,
Como átomos da luz, voando ardiam.

23
Abaixo os semideuses preeminente
Assento tinham de cristal lavrado,
E o rio de mor fama e mor corrente
Está sobre urnas de ouro reclinado:
Treme a parte do céu mais eminente,
Um lume arcano as portas tem guardado:
Silencio dá com tom de voz suave,
E das palavras segue o peso grave:

24
"Vistes como de Troia debelada
Saiu Ulisses? Como o mar undoso
Do Helesponto passou e da encurvada
Cicónia costa o porto perigoso?
As tormentosas sirtes e a abrasada
Praia africana? Como ao temeroso
Ciclope a luz da carregada fronte
Nas entranhas rompeu de um grave monte?

25
"Pois agora, obediente às leis dos fados,
A lusitana costa vai buscando,
Por força e arte mares empolados,
Duros ventos vencendo e contrastando:
Por mitigar trabalhos tão pesados,
Quero que Circe com repouso brando,
Apesar de Neptuno e bravo vento,
Dê à cansada armada acolhimento.

26
"Por este capitão, por esta gente
A eterna lei do imóbil Fado ordena
Se funde uma cidade onde a corrente
Do Tejo se dilata mais amena:
A quem o Gange e o Indo do oriente
As leis virão pedir e paz serena,
Fazendo obedecer-se a grã Lisboa
Do tardio Boote à tocha Eoa.

27
"E pois o fado assim o determina,
Quero, sagrados deuses, que o facundo
Ulisses veja as partes donde inclina
Seu áureo coche o sol ao mar profundo;
Levante uma cidade peregrina,
Cabeça alta do mundo, um breve mundo,
Que ocupe com eterna monarquia
Té os horizontes últimos do dia."

28
Disse; e qual nos primeiros resplandores
As abelhas solicitas, levando
O rocio subtil das puras flores,
Na conhecida casa vão entrando,
Adonde os suavíssimos licores
Com estranho artifício dilatando,
Se ouve um leve sussurro: assim soava
O rumor que entre os deuses se formava.

29
Já cessara de todo o rumor leve;
Porém, Marte, que o caso mal sofria,
Mil pensamentos neste espaço breve
Na soberana mente revolvia:
Até que, c' o respeito que se deve
Do lugar que ocupava, em pé se erguia,
Dando dois passos pela régia sala,
E desta sorte airoso a Jove fala:

30
"Júpiter poderoso e sempiterno,
A quem só foi o Olimpo em sorte dado,
Que deste alcáçar o caminho eterno
Tens de estrelas luzentes adornado:
Que os diáfanos céus e escuro inferno
Vês a teu grão poder ajoelhado,
E os montes que co' as nuvens se terminam,
A teu nome a cerviz tremendo inclinam:

31
"Tu, que ao celeste globo, a esta dourada
Máquina deste luz, deste beleza,
E na terra dos homens habitada
Dás vida e leis à mesma natureza:
Que o sol pisas e a lua prateada,
E os elementos desta redondeza
Concertas, dando aos peixes as suaves
Ondas, ao monte as feras, ao ar as aves:

32
"Coisa parece, grão senhor, estranha
Que venha a ocupar o sólio hespério
Um enganoso grego, que por manha
Trocou de Troia em cinza o antigo império:
A fama que hoje a Alcides rende Espanha,
E ao padre Baco o índico hemisfério,
Em grande opróbrio seu por esta via
Na memória dos homens ficaria.

33
"Havendo mais que os gregos ofendido
Têm aos deuses do Olimpo iniquamente,
Que eu entre as armas gregas fui ferido:
A quem tão grande mal não foi presente?
Pois como a um fraudulento, a um atrevido
Queres dar nome e fama preeminente,
Para que esqueça em sua nova glória
Das imortais deidades a memória?"

34
Aqui cessou Mavorte, e da viseira
O fumo da corage ardendo exala,
Quando deixando Palas a cadeira,
O meio ocupa da divina sala;
Botando o escudo atrás, forte e guerreira:
"Marte", dizia, "se arrojado fala,
Ocasiões dará donde se veja
Que não é zelo o seu, mas pura inveja.

35
"Se aqui fora lugar, força bastante
Tenho e valor", diz Palas, enojada,
Indo embraçando o escudo rutilante
Com vista um pouco acesa e cor mudada;
Na divina cadeira o grão Tonante
Bateu, dizendo: "Basta!", e da pancada
Tremeu o céu e os orbes estrelados
Nos mesmos eixos onde estão cravados.

36
"Assim c' o imóbil Fado o determino!",
Diz Júpiter com voz grave e severa;
Em pé junto do assento cristalino
Cada um sinal para partir-se espera:
Ajoelhando a Júpiter divino
Todos se tornam à sua própria esfera,
E Jove neste tempo do alto via
A armada que entre as ondas perecia.

37
Manda Mercúrio logo; ele os talares
Divinos e galero alado toma,
Qual leve seta vem partindo os ares,
E de Éolo e Neptuno as forças doma:
Compõe do undoso pego os grossos mares,
E, quando no horizonte o sol assoma,
Ao porto a armada chega, aonde aferra
A tenaz unha a desejada terra.

38
Carrega os ombros d' um gracioso outeiro,
De bosques povoado, em largo assento
Um soberbo castelo, alto e guerreiro,
Que da formosa Circe era aposento:
Onde com sua luz fere primeiro
Febo em seu abrasado nascimento,
Que sobre as densas nuvens eminente
As chuvas e os trovões abaixo sente.

39
No largo porto entrado a armada tinha,
Onde Ulisses ordena que Creonte
Os trabalhos e afrontas, com que vinha
Sulcando o largo mar, a Circe conte:
Acompanhado sobe qual convinha,
E o alto pisa do soberbo monte,
Dos paços admirava a arquitetura,
E mais de Circe a rara formosura.

40
Ela, depois de o ouvir, e ter presente
Os sucessos de Ulisses destroçado,
Seus caracteres faz, com que se sente
C' os seus Creonte noutro ser mudado:
Qual de usso a pele imunda, ou de serpente,
Qual brancas penas veste e o ar delgado
Vai abrindo, e suspenso o peso teve
Sobre as asas iguais do corpo leve.