Valério/IV

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O coronel Borges possuía alguns cabedais, bastante para sustentar a casa e deixar patrimônio à família. A sua principal paixão era a política; era esse verdadeiro pão cotidiano que ele pedia a Deus com heróica humildade. Se lhe tirassem a política do mundo, o mundo ficaria um ermo. A política era para ele o sol do mundo moral; quando a política desaparecesse começaria a morte. Nesse caso, dizia ele, poderei dormir. Pessoas de algum juízo afirmavam que, antes que a morte viesse, o coronel dormiria, e essa realidade era a maior dor que ele poderia ter.

Não nos enganemos, entretanto. A política do coronel não existe nos livros de Montesquieu nem Maquiavel; tinha outros códigos; a outras leis obedecia. A política do coronel começava no subdelegado e acabava no coronel. Uma remoção de comarca valia para ele um princípio. A Guarda Nacional e a polícia eram para ele toda a opinião pública. Sorria com desdém quando lhe falavam de outras coisas que não fossem estas coisas práticas. Escudado no axioma que diz que a política é uma ciência de aplicação, o coronel tinha mais respeito a um juiz municipal que a um artigo de lei, porquanto a lei era o tema e o juiz municipal a imagem da aplicação.

Na Câmara fez um papel de mudo; mas o seu ar de gravidade era respeitado como um sintoma de sabedoria. Aplicava muitas vezes esta resposta de Sólon a Pariandro: Não sabes tudo que é impossível ao tolo calar-se durante um festim? O Parlamento, no juízo dele, era o festim da opinião, e se era verdade, como ele dizia, que a opinião estava na política, podemos sem afronta da lógica compará-lo a um covilhete. Covilhete sou, responderia o homem, mas para a boca dos meus adversários, que me hão de engolir quer queiram quer não.

Não falava nem escrevia. Os amigos políticos ofereceram-lhe um lugar numa gazeta; recusou. Estranharam-lhe a recusa; por que motivo recusava ele a tribuna e a imprensa? Explicou-se, dizendo que não tinha os talentos requeridos. Ninguém aceitou a explicação; atribuíram-lhe a virtude da modéstia. O deputado sorriu. O sorriso é a elasticidade aplicada à conversação; diz tudo e nada; isto e aquilo; o mau e o bom; confessa e nega; aceita e recusa.

Deixou o Parlamento sem fazer manifestação nenhuma; mas ficou-lhe a reputação de homem de bom conselho, qualidades políticas, gravidade de pensar, e recolheu-se à tenda, como Aquiles, disposto a não sair dela sem que lhe matassem um Pátroclo. Aconteceu justamente que um parente da mulher recebeu garrote do governo, e o sangue dessa vítima, que gozava de perfeita saúde, reclamou vingança imediata. Pegou na pena e escreveu um livro de duzentas páginas em que dizia coisas do arco-da-velha ao governo e ao país. Quis conservar o mais restrito incógnito; mandou o folheto à imprensa por mão de seu sobrinho, a quem confiou a direção do preparo tipográfico; e aguardava ansioso o dia em que aparecesse a obra e fizesse pasmar o mundo literário.

— Olha lá, meu André, dizia-lhe a esposa, não te vás meter em trabalhos...

— Que trabalhos, Luísa?

— Eu sei! Descompor o governo! Não te podes arriscar a ser preso?

— Isso não me há de acontecer, por desgraça minha! Obter a palma do martírio! Não, não sou tão feliz!

Benzeu-se a esposa, que era temente a Deus e à polícia, enquanto o coronel mandava para a tipografia as provas que o sobrinho lhe trouxe.

Aguardava-se a publicação da obra, que, na opinião do autor, era uma colubrina de bronze coado, quando se deu o sarau do escrivão e encontro de Valério. O escrevente prometera lá ir à casa do coronel no dia seguinte, e assim o fez, depois dos trabalhos da imprensa, que terminaram pelas sete ou oito horas.

No cumprimento exato da promessa, influiu acaso a filha do foliculário? Indo à casa do coronel, Valério levava a esperança de avistar-se com a moça? Para ser verdadeiro, devo dizer que não. Era talvez mais poético que assim fosse; mas não era a idéia do rapaz. Valério fazia justiça à sua posição, que era nenhuma. Não nutria a esperança de merecer da moça um momento de atenção; demais a impressão da noite anterior, conquanto fosse viva, passara depressa, do mesmo modo que se esvoam os sonhos da sorte grande ao proletário que não tem com que comprar um bilhete.

Digamos a verdade toda.

Valério foi exato na execução da sua palavra pela esperança de que o coronel viesse a protegê-lo, e as palavras do escrivão influíram também para isso. Na situação em que se achava, queria mão que o levantasse, amigo que o protegesse. Não tinha mão nem amigo. O coronel pareceu-lhe homem talhado para ajudar um rapaz laborioso e pobre. Valério não quis repelir aquele auxílio da fortuna.

Recebeu-o alegremente o coronel.

— Bem-vindo seja, meu amigo, disse-lhe ele, convidando-o a entrar para a sala. Cuidei que não viesse.

— Bem sei que é um pouco tarde, respondeu o escrevente, mas só agora acabei o trabalho.

— Não é por isso... Pensei que não viesse, porque não supunha que um pedido meu pudesse trazê-lo cá tão cedo.

Valério fez um gesto; o coronel interrompeu-lho:

— Já sei o que me vai dizer, e eu, por exceção, creio no seu protesto. Não falemos nisso. Diga-me: toma chá comigo, não?

— Não posso, sr. coronel.

— Por quê?

— Tenho um trabalho urgente.

— Ainda hoje?

— Sim, senhor.

— Trabalha muito!

— Assim é preciso.

— Pois trabalhará até mais tarde; mas por hoje é meu.

Valério não respondeu, ainda que contrariado com o obséquio. Quanto ao ex-deputado, entrou logo a falar no opúsculo que devia aparecer dentro de oito dias, e de novo perguntou se o achava bem escrito. Ouvida a confirmação de Valério, o coronel não se deteve; e confessou-lhe que era o autor. Valério já devera tê-lo percebido, mas o rapaz, apesar dos trinta anos feitos, era de uma ingenuidade pueril. Cumprimentou o coronel pela obra, e o coronel sorriu com ar de satisfação.

Entrou a conversa pela política dentro. Valério de política apenas sabia alguma coisa que lia nos jornais do Carceller quando lá ia almoçar. Mas era fácil conversar com o coronel; fazia-se o papel de confidente. Tão reservado era o ex-deputado na rua e na Câmara, como expansivo em casa, principalmente quando o auditório não lhe parecia nímio instruído.

Veio uma mucama dizer que o chá estava pronto.

Quando Valério e o coronel entraram na sala de jantar, já lá estavam sentadas a sra. D. Luísa e a menina Hélvia. O coronel fez uma apresentação geral do conviva, que não deixou de estremecer quando encontrou os olhos da moça. Esta fitou tranqüilamente os seus no rapaz, e pareceu conhecê-lo; fez um esforço de memória e lembrou-se de tê-lo visto na véspera na casa do escrivão.

Nenhum incidente perturbou este chá patriarcal entremeado de observações políticas do coronel e vagos suspiros da filha. A sra. D. Luísa, sabendo, na conversa, que Valério nascera no dia da revolução de abril, contou uma anedota do tempo, e o coronel aproveitou o ensejo para dizer a sua opinião sobre a revolução. Hélvia pouco falou; comeu um biscoito, bebeu uma xícara de chá, olhou três vezes para Valério e pediu licença à mãe para levantar-se por ter dor de cabeça. Concedeu-lha a boa senhora, enquanto o coronel sorria maliciosamente à parte.

Pouco depois retirou-se Valério, mas só depois de prometer ao coronel que o iria ver no dia seguinte de manhã. Foi com efeito no dia seguinte à casa do coronel; eram oito horas da manhã.

— Sabe o que eu desejo? Conheci que o senhor é moço inteligente; queria incumbi-lo da leitura das últimas provas do meu folheto... dando-lhe autorização para emendar o que lhe parecer, porque eu escrevi aquilo à pressa, e agora tenho muitas coisas que me tomam o tempo.

— Com muito prazer, respondeu Valério, mas eu não creio que se deva emendar mais nada.

— Pode haver, pode haver, insistiu o coronel. Eu tinha encarregado desse trabalho aquele moço que lá ia, e que é meu sobrinho; mas houve um desacordo de família, e agora... Estamos entendidos?

— Estamos.