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Verso e Reverso/II

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ATO SEGUNDO

Uma sala elegante em casa de Teixeira, nas Laranjeiras, (abrindo sobre um jardim)

CENA PRIMEIRA

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JÚLIA, D. MARIANA

(D. MARIANA lê os jornais junto à mesa) JÚLIA (entrando) – Ernesto ainda não acordou? D. MARIANA – Creio que não. JÚLIA – Que preguiçoso! Nem por ser o último dia que tem de passar conosco. Às onze horas deve embarcar. (Olhando a pêndula) Ah! meu Deus já são nove! Vou acordá-lo!... Sim; ele disse-me ontem que era um dos seus maiores prazeres acordar ao som do meu piano, quando eu estudava minha lição. D. MARIANA – Não tem mau gosto. JÚLIA – Obrigada!... Mas qual é a música de que ele é mais apaixonado? Ah! a ária da Sonâmbula! (Abre o piano e toca.)

CENA II

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Os mesmos, ERNESTO

ERNESTO (aparecendo à direita) – Sinto não ser poeta, minha prima, para responder dignamente a um tão amável bom dia. Como passou, D. Mariana? D. MARIANA – Bem; e o Sr.? JÚLIA (levantando-se) – Ah! já estava acordado! (Apertam as mãos.) ERNESTO – Há muito tempo; aproveitei a manhã para fazer uma porção de despedidas que me faltavam. Não se lembra que hoje é sábado? JÚLIA (entristecendo) – É verdade; daqui a pouco... ERNESTO – Quis ficar livre para ir gozar dessas duas últimas horas que devemos passar juntos. Fui a Botafogo, a S. Clemente, e ainda voltei à cidade. JÚLIA – Tudo esta manhã? ERNESTO – Sim; admira-se? Oh! no Rio de Janeiro pode-se fazer isto. Com essa infinidade de carros sempre às ordens!.. JÚLIA (sorrindo) – E que atropelam a gente que anda nas ruas. ERNESTO – Aqueles que andam a pé; mas os que vão dentro, vão depressa e comodamente. D. MARIANA (erguendo-se) – Estimo muito ouvir isto do Sr. (JÚLIA faz à D. MARIANA sinal de silêncio.) ERNESTO – Por que, D. Mariana? JÚLIA (a ERNESTO) – Até logo; agora não tem mais despedidas a fazer. ERNESTO – Por isso mesmo não deve deixar-me. JÚLIA – Vou dar algumas ordens; volto já. Uma dona de casa tem obrigações a cumprir, sobretudo quando deve fazer as últimas honras a um hóspede que vai deixá-la. Não me demoro. ERNESTO – Olhe lá!... JÚLIA (sorrindo) – Um minuto! (Sai.)

CENA III

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ERNESTO, D. MARIANA

ERNESTO – Que graça e elegância ela tem nos seus menores movimentos; e ao mesmo tempo que simplicidade!... Oh! não há como as moças do Rio de Janeiro para fazerem de um nada, de uma palavra, de um gesto, um encanto poderoso! Seu espírito anima tudo; onde elas se acham tudo brinca, tudo sorri, porque a sua alma se comunica a todos os objetos que as cercam. D. MARIANA – Que entusiasmo! ERNESTO – E não é justo, D. Mariana? D. MARIANA – Certamente! (Uma pausa.) ERNESTO – Como passaram rápidos estes três meses! Pareceram-me um sonho! D. MARIANA – Sim? ERNESTO – Oh! tenho-os impressos na memória hora por hora, instante por instante. De manhã os sons prazenteiros do piano de Júlia acordavam-me no fim de um sono tranquilo. Daí a um instante uma xícara de excelente chocolate confortava-me o estômago, condição essencial para a poesia. D. MARIANA – Ah! Não sabia... ERNESTO – Pois fique sabendo, D. Mariana. Esses poetas que se alimentam de folhas de rosas, têm a imaginação pobre e raquítica. Pouco depois dava um passeio com Júlia pelo jardim, apanhávamos juntos flores para os vasos, eu escolhia a mais linda para os seus cabelos, e assim passávamos o tempo até a hora do almoço, em que meu tio ia para a cidade tratar dos seus negócios na Praça... Bela instituição esta da Praça do Comércio! Foi criada expressamente para que os pais e maridos deixassem as suas filhas e mulheres livres, sob pretexto de tratar dos negócios. A princípio aborreceu-me... D. MARIANA – E agora? ERNESTO – Agora compreendo as suas imensas vantagens. D. MARIANA – Ora, Sr. Ernesto, já vê que as velhas do Rio de Janeiro têm sempre algum préstimo. ERNESTO – Que quer dizer, D. Mariana? D. MARIANA – Quero dizer que uma parenta velha que acompanha uma prima bonita serve não só para fazer-lhe companhia, como para receber as confidências de um primo apaixonado. ERNESTO (rindo) – Ora!... Não tem razão! D. MARIANA – Não se ria; é sério! (Sobe.) Aí vem um moço que eu não conheço. ERNESTO (olhando) – Ah! Henrique! D. MARIANA – seu amigo? Deixo-lhe com ele. (Sai.)

CENA IV

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ERNESTO, HENRIQUE

HENRIQUE (entrando) – Aqui me tens às tuas ordens. Como passas? ERNESTO – Bem, meu amigo; peço-te desculpa do incômodo que te dei. HENRIQUE (com volubilidade) – Qual incômodo! Recebi o teu bilhete, dizias que precisavas de mim; fiz o que farias. Vejamos; de que se trata? ERNESTO – Desejava pedir-te um obséquio; mas tenho acanhamento; temo abusar da tua amizade. HENRIQUE – Escuta, Ernesto. Nós aqui no Rio de Janeiro costumamos ser francos; quando um amigo precisa de outro, pede; se ele pode, satisfaz; se não, diz abertamente: e nem por isso deixam de estimar-se da mesma maneira. ERNESTO – Tu me animas; vou dizer-te tudo. HENRIQUE – É o meio de nos entendermos. (Sentam-se.) ERNESTO – Sabes que ainda sou estudante, e por conseguinte não tenho grande abundância de dinheiro; vindo passar aqui as férias, julguei que a mesada que o meu pai me dava chegasse para as minhas despesas. Mas na corte são tantos os prazeres e divertimentos, que quanto se tenha, gasta-se; e gasta-se mesmo mais do que se tem. Foi o que me sucedeu. HENRIQUE – Fizeste algumas dívidas? Não é isso? ERNESTO – Justamente: procedi mal. Mas que queres? Encontrei no Rio de Janeiro uma coisa que eu não conhecia senão de nome – o crédito; hoje que experimentei os seus efeitos não posso deixar de confessar que é uma instituição maravilhosa. HENRIQUE – Vale mais do que dinheiro! ERNESTO – Decerto; é a ele que devo ter comprado o que precisava, sem mesmo passar pelo incômodo de pagar. Mas agora vou retirar-me para São Paulo, e não desejava que viessem incomodar meu tio, além de que seria desairoso para mim partir sem ter saldado essas contas. HENRIQUE – Tens razão; um homem honesto pode demorar por necessidade o pagamento de uma dívida; mas não deve fugir de seu credor. ERNESTO – Quis a princípio falar a meu tio, mas tive vergonha de tocar nisso; resolvi-me recorrer a ti. HENRIQUE – Em quanto importam essas dívidas? ERNESTO – Não chegam a cem mil-réis. HENRIQUE – Ora! uma bagatela. (Abre a carteira) Aqui tens. ERNESTO – Obrigado, Henrique, não fazes ideia do serviço que me prestas! Vou passar-te um recibo ou um vale... HENRIQUE – Que lembrança, Ernesto! Não sou negociante; tiro-te de um pequeno embaraço; quando puderes me pagarás. Não há necessidade de papel e tinta em negócios de amizade. ERNESTO – A tua confiança ainda mais me penhora. Entretanto mesmo para tranquilidade minha desejava... HENRIQUE – Não falemos mais nisso. Quando embarcas? ERNESTO – Hoje; daqui a duas horas. HENRIQUE – Pois se não nos virmos mais, conta que aqui tens um amigo. ERNESTO – Eu te escreverei. HENRIQUE – Se é por simples atenção, não tomes esse incômodo; escreve-me quando precisares de qualquer coisa. ERNESTO – Ora, graças a ti, estou livre de uma grande inquietação!... Mas quero confessar-te uma injustiça que cometi para contigo, e de que me acuso. HENRIQUE – Como assim? ERNESTO – Quando vi os moços aqui da corte, com seu ar de pouco caso, julguei que não passavam de espíritos levianos! Hoje reconheço que sob essa aparência frívola, há merecimento real e muita nobreza de caráter. Tu és um exemplo. A princípio, desculpa, mas tomei-te por um sujeito que especulava sobre a amizade para a emissão de bilhetes de benefício e de poesias inéditas! HENRIQUE (rindo-se) – E mais é que às vezes assim é necessário! Não podemos recusar certos pedidos!.

CENA V

Os mesmos, CUSTÓDIO

CUSTÓDIO (na porta) – Muito bons dias tenham todos nesta casa. ERNESTO (a HENRIQUE) – Oh! Aí vem o nosso compadre como seu eterno que há de novo. (A CUSTÓDIO) Bom dia, Sr. Custódio, como vai? CUSTÓDIO (desce) – Bem, obrigado! Vai-se arrastando a vida enquanto Deus é servido. (Aperta-lhe a mão) Que há de novo? ERNESTO (rindo) – Tudo é velho; ali estão os jornais, mas não trazem coisas de importância. CUSTÓDIO – Conforme o costume. (Voltando a HENRIQUE) Tem passado bem? Que há... HENRIQUE – Nada, Sr. Custódio, nada absolutamente. (CUSTÓDIO vai sentar-se à mesa e lê os jornais.) ERNESTO (a HENRIQUE) – Nas províncias não se encontra essa casta de bípedes implumes, que vivem absorvidos com a política, esperando antes de morrer ver realizada uma espécie de governo que sonharam e que se parece com a república de Platão!... Eis o verdadeiro tipo da raça desses fósseis da Independência e do Sete de Abril. Cinquenta anos de idade, empregado aposentado, bengala, caixa de rapé e gravata branca. Não tem outra ocupação mais do que ler os jornais, perguntar o que há de novo e queixar-se da imoralidade da época. HENRIQUE (rindo) – Serviam outrora para parceiro de gamão nas boticas. CUSTÓDIO (lendo) – Oh! Cá temos um artiguinho da oposição!... Começa! Já era tempo! Com este ministério não sei onde iremos parar. ERNESTO (a HENRIQUE) – Agora ei-lo ferrado com o tal artigo! Bom homem! Quando eu queria conversar com Júlia, nós o chamávamos sempre. Assim éramos três, e ao mesmo tempo estávamos sós; porque, agarrando-se a um jornal, não ouve, fica cego. Podia apertar a mão de minha prima que ele não percebia! HENRIQUE – Esta habilidade não sabia que eles tinham. ERNESTO – Pois recomendo-te! HENRIQUE – Fica ao meu cuidado. Adeus; dá cá um abraço; até a volta. ERNESTO (abraça) – Adeus, Henrique; lembra-te dos amigos, (Quer segui-lo.) HENRIQUE – Não te incomodes. (Sai.)

CENA VI

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ERNESTO, CUSTÓDIO, TEIXEIRA, JÚLIA

CUSTÓDIO (erguendo-se com o jornal na mão) – Isto é desaforo!... Como é que um governo se anima a praticar semelhantes coisas na capital do império? (TEIXEIRA e JÚLIA têm entrado enquanto fala CUSTÓDIO). TEIXEIRA – Que é isto, compadre! Por que está tão zangado? (A ERNESTO) Ernesto, como passaste a noite? ERNESTO – Bem, meu tio. CUSTÓDIO (mostrando o jornal) – Pois não leu? Criou-se uma nova repartição! Um bom modo de arranjar os afilhados! No meu tempo havia menos empregados e trabalhava-se mais. O Real Erário tinha dezessete, e fazia-se o serviço perfeitamente! (JÚLIA senta-se na conversadeira). TEIXEIRA – Que quer, compadre? É o progresso. CUSTÓDIO – O progresso da imoralidade. (TEIXEIRA toma um jornal sobre a mesa; CUSTÓDIO continua a ler; ERNESTO aproxima-se de JÚLIA.) ERNESTO – Um minuto!... Foi um minuto com privilégio de hora! JÚLIA (sorrindo) – Acha que me demorei muito? ERNESTO – Inda pergunta! E agora aí está meu tio, não teremos um momento de liberdade! JÚLIA – Sente-se! Podemos conversar. ERNESTO (sentando-se) – Preferia que conversássemos sem testemunhas! JÚLIA – Tenha paciência, não é culpa minha. ERNESTO – É de quem é, Júlia? Se não se demorasse! (Entra AUGUSTO.)

CENA VII

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Os mesmos, AUGUSTO

AUGUSTO (entrando) – Com licença! TEIXEIRA – Oh! Sr. Augusto! AUGUSTO (a JÚLIA) – Minha senhora! (a ERNESTO e CUSTÓDIO) Meus Srs.! (A TEIXEIRA) Como passou de ontem, Sr. Teixeira? Peço desculpa da hora imprópria... (ERNESTO levanta-se e passa ao outro lado.) TEIXEIRA – Não tem de que. Estou sempre às suas ordens. AUGUSTO – Como me disse que talvez não fosse hoje à cidade... TEIXEIRA – Sim; por causa de meu sobrinho que embarca às onze horas. AUGUSTO – Assentei de passar por aqui, para saber o que decide sobre aquelas cem ações. Talvez hoje tenham subido, mas em todo o caso, não é bom fiar. Se quer o meu conselho – Estrada de Ferro – Estrada de Ferro – e largue o mais. Rua do Cano, nem de graça! Seguros estão em completa oscilação. TEIXEIRA – O Sr. pode demorar-se cinco minutos? AUGUSTO – Como? Mais que o Sr. queira; apesar de que são quase dez horas, e às onze devo fechar uma transação importante. Mas temos tempo... TEIXEIRA – Pois então faça favor; passemos ao meu gabinete; quero incumbir-lhe de uns dois negócios que podem ser lucrativos. AUGUSTO – Vamos a isso! (cumprimentando) Minha Sra.! Meus Srs.! (A TEIXEIRA, dirigindo-se ao gabinete) É sobre estradas de ferro? (Saem, ERNESTO aproxima-se de JÚLIA.)

CENA VIII

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ERNESTO, CUSTÓDIO, JÚLIA

CUSTÓDIO – Estrada de ferro! Outra mania! No meu tempo viajava-se perfeitamente daqui para Minas, e as estradas eram de terra. Agora querem de ferro! Naturalmente para estragar os cascos dos animais. ERNESTO – Tem razão, Sr. Custódio, tem toda a razão! JÚLIA (a meia voz) – Vá, vá excitá-lo, depois não se queixe, quando armar uma das suas questões intermináveis. ERNESTO – É verdade! Mas fiquei tão contente, quando meu tio saiu, que não me lembrei que estávamos sós. (Senta-se.) Diga-me uma coisa, prima; que profissão tem este Sr. Augusto? JÚLIA – É um zangão! ERNESTO – Estou na mesma. Que emprego é esse? JÚLIA (sorrindo) – Eu lhe explico. Quando passeávamos pelo jardim, não se lembra que às vezes parávamos diante dos cortiços de vidro que meu pai mandou preparar, e escondidos entre as folhas levávamos horas e horas a ver as abelhas fabricarem os seus favos? ERNESTO – Lembro-me; e por sinal que uma tarde uma abelha fez para mim um favo de mel mais doce do que o seu mel de flores. Tomou a sua face por uma rosa, quis mordê-la; a Sra. fugiu com o rosto, mas eu que nunca volto a cara ao perigo, não fugi... com os lábios. JÚLIA (confusa) – Está bom, primo! Ninguém perguntou-lhe por esta história! Se quer que lhe acabe de contar, cale a boca. ERNESTO – Estou mudo como um governista. Vamos ao zangão! JÚLIA – Enquanto estávamos embebidos a olhar aquele trabalho delicado, víamos um besouro parecido com uma abelha, que entrava disfarçado no cortiço; e em vez de trabalhar, chupava o mel já fabricado. Não via? ERNESTO – O que eu me recordo ter visto perfeitamente eram dois olhozinhos travessos... JÚLIA (batendo o pé) – Via sim; eu lhe mostrei muitas vezes. ERNESTO – Está bom! Já, que deseja, confesso que via; via com seus olhos! JÚLIA – Pois suponha que a Praça do Comércio é uma colmeia: e que o dinheiro é um favo de mel. Este sujeito que saiu daqui é o besouro disfarçado, o zangão. Os corretores arranjam as transações, dispõem os negócios; vem o zangão e atravessa os lucros. ERNESTO – Compreendo agora o que é o zangão; é uma excelente profissão para quem não tem nada que fazer, e demais bastante útil para a sociedade. JÚLIA – Útil em quê? ERNESTO – Oh! Se não fosse ele, ficaríamos sós? Se não fosse ele, meu tio estaria ainda aqui, querendo por força provar-me que a desgraça dos fluminenses provém de não haver mais trovoadas! Querendo convencer-me que as maravilhas do Rio de Janeiro são a laranja seleta, o badejete, a farinha de Suruí e a água da Carioca! Sim! É uma profissão muito útil! Aconselharei a todos os meus amigos que desejarem seguir o comércio, se façam zangãos da praça!... JÚLIA – Então é nisso que está a grande utilidade... ERNESTO – Mas seriamente, prima; essa profissão fácil e lucrativa é uma carreira aberta à mocidade, que pretenda seguir a vida comercial. CUSTÓDIO – Vou até a cidade! Já passaria o ônibus das dez? JÚLIA – Não sei, Sr. Custódio; mas o senhor não almoça conosco? CUSTÓDIO (erguendo-se) – Almoçar a esta hora! Obrigado!. Sr. Ernesto, boa viagem! ERNESTO (apertando-lhe a mão) – Adeus, Sr. Custódio. CUSTÓDIO – Dê-nos notícias suas. Sem mais. . . D. Júlia! (Sai.)

CENA IX

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ERNESTO, JÚLIA

(ERNESTO vem sentar-se na conversadeira junto da JÚLIA; ambos estão confusos). JÚLIA (erguendo a cabeça) – Então, meu primo, ainda não me disse se leva saudades do Rio de Janeiro? ERNESTO – É preciso que lhe diga, Júlia! JÚLIA – Naturalmente não sente deixar a corte; não achou aqui atrativos que o prendessem; viu uma grande cidade, é verdade; muita gente, muita casa, muita lama. ERNESTO – Sim, mas no meio desse vasto montão de edifícios, encontra-se aqui e ali um oásis magnífico, onde a vida é um sonho, um idílio; onde nada falta para a comodidade da existência e o gozo do espírito; onde apenas se forma um desejo, ele é logo satisfeito. Vi alguns desses paraísos terrestres, minha prima, e vivi três meses em um deles, aqui nas Laranjeiras, nesta casa... JÚLIA – Não exagere, não é tanto assim; há algumas casas bonitas, com efeito, mas a cidade em si é insuportável; não se pode andar pelas ruas sem ver-se incomodado a cada momento pelas carroças, pelos empurrões dos que passam. ERNESTO – Que tem isso? Essa mesma confusão tira a monotonia do passeio. Demais, quando se anda pela Rua do Ouvidor, como andamos tantas vezes, todos esses contratempos são prazeres. O susto de um carro faz com que a moça que nos dá o braço se recline sobre nós; um sujeito que impede a passagem dá um pretexto para que se pare e se torne o passeio mais longo. JÚLIA – Ao menos não negará uma coisa; e é que temos uma verdadeira praga aqui no Rio de Janeiro. ERNESTO – Qual, prima?... Não sei. JÚLIA – Os benefícios. ERNESTO – Não diga isso, Júlia. Que coisa mais bela, do que as pessoas que vivem na abastança protegerem divertindo-se aqueles que necessitam e são pobres! O prazer eleva-se à nobreza da virtude; o dinheiro que o rico esperdiça para satisfazer os seus caprichos, transforma-se em oferta generosa, mas nobremente disfarçada, que anima o talento do artista e alivia o sofrimento do enfermo; a caridade evangélica torna-se uma instituição social. Não; não tem razão, prima! Esses benefícios, que a Sra. censura, formam um dos mais belos títulos do Rio de Janeiro, o título de cidade generosa e hospitaleira. JÚLIA – Não sei por que, meu primo, o Sr. vê tudo, agora, de bons olhos. Por mim, confesso-lhe que, apesar de ser filha daqui, não acho na corte nada que me agrade. O meu sonho é viver no campo; a corte não tem seduções que me prendam. ERNESTO Ora, Júlia, pois realmente não há no Rio de Janeiro nada que lhe agrade? JÚLIA – Nada absolutamente. Os passeios nos arrabaldes são um banho de poeira; os bailes, uma estufa; os teatros, uma sensaboril. ERNESTO – Como se diz isto, meu Deus! Pode haver coisa mais linda do que um passeio ao Corcovado, donde se vê toda esta cidade, que merece bem o nome que lhe deram de princesa do vale? Pode haver nada de mais encantador do que um baile no Clube? Que noites divertidas não se passa no Teatro Lírico, e mesmo no Ginásio, onde fomos tantas vezes? JÚLIA – Fui por comprazer, e não por gostar. Acho tudo isto tão insípido! Mesmo as moças do Rio de Janeiro... ERNESTO – Que têm? JÚLIA – Não são moças. São umas bonecas de papelão, uma armação de arames. ERNESTO – Mas é a moda, Júlia. Que remédio têm elas senão usar? Hão de fazer-se esquisitas? Demais, prima, quer que lhe diga uma coisa? Essas saias balões, cheias de vento, têm uma grande virtude. JÚLIA – Qual é? ERNESTO – Fazer com que um homem acredite mais na realidade e não se deixe levar tanto pelas aparências. JÚLIA – Não o entendo; é charada. ERNESTO – Ora! Está tão claro! Quando se dá a um pobre um vintém de esmola, ele recebe e agradece; mas, se lhe derem uma moeda que pareça ouro, desconfiará. Pois o mesmo me sucede com a moda. Quando vejo uma crinolina, digo com os meus botões – "é mulher ou pode ser". Quando vejo um balão, não tem dúvida. – "é saia, e saia unicamente!" JÚLIA (rindo) – Pelo que vejo, não há nada no Rio de Janeiro, ainda mesmo o que é ruim, que não tenha um encanto, uma utilidade para o senhor, meu primo? Na sua opinião é uma terra excelente. ERNESTO – Diga um paraíso, um céu na terra! (JÚLIA dá uma gargalhada.) De que ri-se, Júlia? JÚLIA (rindo-se) – Muito bem! Eis onde eu queria chegar. Há três meses, no primeiro dia em que veio morar conosco, tivemos uma conversa perfeitamente igual a esta; com a diferença que então os papéis estavam trocados; o senhor achava que o Rio de Janeiro era um inferno. ERNESTO – Não me fale desse tempo! Não me lembro dele! Estava cego! JÚLIA – Bem; o que eu desejava era vingar a minha terra. Estou satisfeita: esqueço tudo o que houve entre nós. ERNESTO – Como! Que diz, Júlia? Não, é impossível! Esses três meses que se passaram, esses três meses de felicidade, foi apenas uma vingança de sua parte? JÚLIA – Apenas. ERNESTO (despeitado) – Oh! Obrigado, prima. JÚLIA – Não tem de que, meu primo; jogamos as mesmas armas; o senhor ganhou a primeira partida, eu tomei a minha desforra. ERNESTO – Eu ganhei a primeira partida! De que maneira? Acreditando na senhora. JÚLIA – Fazendo que eu chegasse a aborrecer o meu belo Rio de Janeiro, tão cheio de encantos; que achasse feio tudo quanto me agradava; que desprezasse os meus teatros, as minhas modas, os meus enfeites, tudo para. ERNESTO – Para... Diga, diga, Júlia! JÚLIA – Tudo para satisfazer um capricho do senhor; tudo por sua causa! (Foge.) ERNESTO – Ah! perdão... A vingança foi doce ainda; mas agora vou sofrer uma mais cruel. Oito meses de saudade e ausência! JÚLIA – Para quem tem uma memória tão fraca. .. Adeus! (Vai sair) Adeus! ERNESTO – Ainda uma acusação. JÚLIA – E se fosse um receio! (Sai de repente.) ERNESTO (seguindo-a) – Júlia! Escute, prima! (Sai.)

CENA X

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AUGUSTO, D. LUÍSA

AUGUSTO (na porta, a TEIXEIRA) – Sim, senhor; pode contar que hoje mesmo fica o negócio concluído! Vou hoje à praça. Quinze e quinhentos, o último. (Dirige-se à porta e encontra-se com D. LUÍSA que entra.) D. LUÍSA – O senhor faz obséquio de ver este papel? AUGUSTO – Ações?... De que companhia? Estrada de ferro? Quantas? A como? Hoje baixaram. (Abre o papel.) D. LUÍSA – Qualquer coisa me serve! Pouco mesmo! Oito filhinhos... AUGUSTO – Uma subscrição!... (Entregando) Não tem cotação na praça. D. LUÍSA – Uma pobre viúva... AUGUSTO – É firma que não se desconta. Com licença! D. LUÍSA – Para fazer o enterro de meu marido! A empresa funerária... AUGUSTO – Não tenho ações desta empresa; creio mesmo que ainda não foi aprovada. Naturalmente alguma especulação... Passe bem! (Sai.)

CENA XI

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D. LUÍSA, TEIXEIRA

TEIXEIRA (atravessando a sala) – Hoje não nos querem dar almoço. D. LUÍSA – Sr. Teixeira! TEIXEIRA (voltando-se) – Viva, senhora. D. LUÍSA – Vinha ver se me podia dar alguma coisa! TEIXEIRA – Já? Pois acabou-se o dinheiro que lhe dei? D. LUÍSA – O pecurrucho faz muita despesa! É verdade que o Sr. não tem obrigação de carregar com elas! Mas seu amigo, o pai da criança não se importa. TEIXEIRA – Quem lhe diz que não se importa? Tem família, deve respeitar as leis da sociedade; demais, sabe que eu tomei isto a mim. D. LUÍSA – Sim, Senhor. TEIXEIRA – Espere; vou dar-lhe dinheiro.

CENA XII

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ERNESTO, D. LUÍSA

ERNESTO (entra sem ver D. LUÍSA) – Oito meses sem vê-la! D. LUÍSA (adianta-se) – V.S.a. ainda não leu este papel. ERNESTO (voltando-se) – Já vi a senhora... Sim e por sinal que... Pode guardar o seu papel; sei o que ele contém; uma história de oito filhinhos. D. LUÍSA – Nus os pobrezinhos, sem ter o que comer. ERNESTO – Não me logra segunda vez. D. LUÍSA – Mas V.S.a. talvez precise de uma pessoa... ERNESTO – Onde mora a senhora? D. LUÍSA – Rua da Guarda Velha, n.0 175; se o senhor deseja alguma comissão, algum recado... estou pronta. ERNESTO – Diga-me; se eu lhe mandasse de São Paulo por todos os vapores uma carta para entregar a uma moça, dentro de uma sua, a senhora entregava? D. LUÍSA – Ora, na carreira; contanto que a carta de dentro viesse com o porte pago. ERNESTO – Há de vir; um bilhete de 5$OOO. D. LUÍSA – Serve; pode mandar. ERNESTO – Pois então está dito; deixe-me tomar a sua morada. D. LUÍSA – Não precisa; leve esse papel. ERNESTO – E a senhora fica sem ele? D. LUÍSA – Tenho outro. (Tira do bolso rindo) Essa história de viúva já está muito velha, agora sou mulher de um entrevado ERNESTO – Que mulher impagável! Isto só se encontra aqui no Rio de Janeiro. Oh! agora! Posso escrever-lhe a Júlia. (Entra JÚLIA).

CENA XIII

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Os mesmos, JÚLIA, depois TEIXEIRA

ERNESTO (a JÚLIA) – Sabe? Estou alegre. JÚLIA – Por quê? ERNESTO – Achei uma maneira de escrever-lhe de São Paulo sem que meu tio saiba. JÚLIA – Oh! não, meu primo! Não posso receber!... ERNESTO – Mas então quer que passemos oito meses sem ao menos trocar uma palavra. JÚLIA – Se houvesse outro meio... ERNESTO – Que melhor do que uma carta inocente?... JÚLIA – Sem consentimento de meu pai?... Não! ERNESTO – Então eu falo a meu tio logo de uma vez, e está acabado. Quer? JÚLIA – Não sei. Faça o que entender. ERNESTO – Espere! Mas não sei como hei de dizer-lhe isto. (Entra TEIXEIRA e dá dinheiro a LUÍSA.) TEIXEIRA – Aqui tem, creio que isto é suficiente para um mês; portanto não me apareça antes. D. LUÍSA – Sim, senhor, obrigada. (A JÚLIA) Minha senhora! (Baixo, a ERNESTO [cumprimentando]) O dito, dito. ERNESTO – Sim. (Sai LUÍSA.)

CENA XIV

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TEIXEIRA, ERNESTO, JÚLIA

JÚLIA – Não sei, papai, por que ainda dá dinheiro a esta velha. É uma vadia! TEIXEIRA – Uma pobre mulher! Para que Deus deu aos abastados senão para esperdiçar como os que não têm? ERNESTO – Se o Sr. compromete-se a fazer aceitar esta teoria, meu tio, declaro que me inscrevo no número dos pobretões. TEIXEIRA – Já mandaste deitar o almoço, Júlia? JÚLIA – Já dei ordem, papai. TEIXEIRA – Ernesto precisa almoçar quanto antes, pois não lhe resta muito tempo para embarcar. JÚLIA – Não é às onze horas? TEIXEIRA – Sim, e já são dez. (Sobe.) ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Não a deixo senão no último momento; hei de aproveitar um minuto. JÚLIA (baixo, a ERNESTO) – Um minuto nessas ocasiões vale uma hora. TEIXEIRA (descendo) – Agora, Ernesto, tão cedo não te veremos por cá! ERNESTO – Daqui a oito meses estou de volta, meu tio. TEIXEIRA – Pois não! Teu pai, na última carta que me escreveu, disse que estava arrependido depois que consentira em que viesses ao Rio, e que pelo gosto dele não voltarás tão cedo. Queixa-se porque tens gasto muito! JÚLIA – Ah! ERNESTO – Meu pai disse isto? TEIXEIRA – Posso mostrar-te a carta. ERNESTO – Paciência. Ele está no seu direito. TEIXEIRA – Agora é tratares de te formar, e ganhar uma posição; poderás fazer o que te aprouver. (Sobe) Nada de almoço. JÚLIA (baixo) – Quando nos veremos! ERNESTO – Quem sabe! Talvez meu pai... ERNESTO (com ironia) – É muito para esperar, não é, prima? JÚLIA (sentida) – Não, Ernesto; mas é muito para sofrer!

CENA XV

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Os mesmos, FILIPE

FILIPE (entra na carreira e faz um grande barulho) – Alvíssaras! Alvíssaras! Número 1221! Sorte grande! Premiado! Alvíssaras! Número 1221! TEIXEIRA – Que louco é este? ERNESTO – Está danado! FILIPE – Enganado, não! Número 1221! Sorte grande! TEIXEIRA – O que quer o Sr.? FILIPE – As minhas alvíssaras! TEIXEIRA – Mas pelo quê? Explique-se. FILIPE – Pelo bilhete que vendi ao Sr. (aponta para ERNESTO) e que saiu premiado. ERNESTO – A mim? É engano. FILIPE – Engano! Não é possível! Ontem, na Rua do Ouvidor, em casa do Wallerstein; por sinal que o Sr. estava comprando uns corais, justamente aqueles! (Aponta para o colo de JULIA, a qual volta-se confusa.) ERNESTO – Tem razão, nem me lembrava; deve estar na carteira. Ei-lo! Número mil duzentos.. FILIPE – E vinte e um! Não tem que ver!, é o mesmo. Não me engano nunca! ERNESTO – Assim, este papel... eu tirei?... FILIPE – A sorte grande... É meio bilhete! Pertencem-lhe nove contos e duzentos! ERNESTO – Nove contos! Sou rico! Tenho dinheiro para vir ao Rio de Janeiro, ainda que meu pai não consinta. TEIXEIRA – Agora vai gastá-los em extravagâncias! ERNESTO – Pois não! Servirão para me estabelecer aqui; montar minha casa. Quero uma linda casinha como esta, um retiro encantador, onde a vida seja um sonho eterno! (A JÚLIA, baixo) Onde recordaremos os nossos três meses de felicidade! TEIXEIRA – Vamos; despacha este homem. ERNESTO – Tome, meu tio; tome o bilhete e arranje isto como entender. V.M.cê. me guardará o dinheiro. (TEIXEIRA e FILIPE saem; TEIXEIRA examina o bilhete). JÚLIA (a ERNESTO) – Como a felicidade vem quando menos se espera! Há pouco tão tristes! ERNESTO – É verdade! E se soubesse como isto me caiu do céu! Nem me passava pela ideia semelhante coisa, quando este homem começou a importunar-me de tal maneira, que tomei-lhe o bilhete para ver-me livre da maçada. É só a ele que devo a fortuna. JÚLIA (sorrindo) – Eis então mais uma vantagem do Rio de Janeiro. ERNESTO (sorrindo) – Tem razão! TEIXEIRA (a FILIPE, dando-lhe dinheiro) – Tome; como alvíssaras, basta. FILIPE – Obrigado! (Desce a cena, a ERNESTO) Então, um meio, um inteiro, um quarto? Enquanto venta, molha-se a vela. ERNESTO – Agradeço; não sou ambicioso. Quero deixar a sorte grande também para os outros. FILIPE – E a senhora? E a Sra. e o Sr.?... Um meio?... Tenho justamente o número premiado. TEIXEIRA – Nada, nada; já compramos! FILIPE – As suas ordens. (Sai.)

CENA XVI

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TEIXEIRA, ERNESTO, JÚLIA

TEIXEIRA – Ora, enfim, vamos almoçar. ERNESTO – Espere, meu tio, tenho urna palavra a dar-lhe. TEIXEIRA – Pois então já; uma palavra custa pouco a dizer. ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Sim! Porém, a mim custa mais do que um discurso! JÚLIA (baixo a ERNESTO) – Que vai fazer? Ao menos deixe-me retirar. ERNESTO (baixo, a JÚLIA) – Para quê? JÚLIA (baixo, a ERNESTO) – Morro de vergonha. TEIXEIRA – Então? a tal palavra? Estão combinados? Tu sabes o que é, Júlia? JÚLIA (vexada) – Eu, papai!... Não, Sr. TEIXEIRA – Ora, tu sabes! Ficaste corada. JÚLIA – Foi porque Ernesto riu-se. TEIXEIRA (a ERNESTO) – Falas ou não? ERNESTO – Tenho a palavra aqui atravessada na garganta! Lá vai! TEIXEIRA – Ainda bem! O que é? ERNESTO – Escute, meu tio. Eéééé... TEIXEIRA – É... ERNESTO – Queêêêê.... TEIXEIRA – Já vejo que é preciso ajudar-te! É que... ERNESTO – Euuu... (Júlia faz sinal que não...) Quero... TEIXEIRA – Ah! Queres brincar? Pois não estou para te aturar. (Sobe.)

CENA XVII

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Os mesmos, D. MARIANA, depois PEREIRA

D. MARIANA (entrando) – Então, por quem se espera? São quase dez horas. TEIXEIRA – Vamos, D. Mariana. ERNESTO (a JÚLIA, baixo) – Está tudo perdido. PEREIRA – Permitam o ingresso. O Sr. Teixeira? TEIXEIRA – Um seu criado. O que pretende o Sr.? PEREIRA – Tomei a liberdade de oferecer a V.Ex.a esta minha produção poética por ocasião do fausto motivo que enche hoje esta casa de júbilo. TEIXEIRA – Não tenho excelência; nem o compreendo. Queira explicar-se. PEREIRA – Com muito gosto. A minha veia poética inspirou-me este epitalâmio que ofereço ao doce himeneu, às núpcias venturosas, ao feliz consórcio da senhora sua filha com o senhor seu sobrinho. (Espanto geral.) JÚLIA (escondendo o rosto) – Ah!... ERNESTO – Bravo! D. MARIANA – Calúnias, Sr. Teixeira! TEIXEIRA – O consórcio de minha filha com meu sobrinho!... O senhor está louco! PEREIRA (a TEIXEIRA) – É verdade que alguns espíritos mesquinhos chamam os poetas de loucos, porque não os compreendem; mas V.Ex.a não está neste número. TEIXEIRA – Entretanto, o senhor vem com um despropósito! Onde ouviu falar de casamento de minha filha? PEREIRA – Há muito tempo sabia que o senhor seu sobrinho e a senhora sua filha se amam ternamente... TEIXEIRA (olhando JÚLIA e ERNESTO, cabisbaixos) – Se amam ternamente!... (A PEREIRA) E que tem isto? Quando mesmo fosse verdade, é natural; são moços, são primos... PEREIRA – Por isso, sendo hoje um sábado, e não tendo V.Ex.a ido à Praça, conjeturei que as bodas, a feliz união dos dois corações... TEIXEIRA conjeturou mal; e para outra vez seja mais discreto em não intrometer-se nos negócios de família. PEREIRA – E a poesia? V.Ex.a não a recebe? TEIXEIRA – Leve a quem a encomendou; ele que lhe pague! (Voltando-lhe as costas.) ERNESTO (baixo, a PEREIRA) – É justo que seja eu que aproveitei. O senhor não sabe o serviço que me prestou. (Dando-lhe um bilhete) Tome e safe-se quanto antes. PEREIRA – Entendo! ERNESTO (a JÚLIA e D. MARIANA) – Sublime raça que é esta dos poetas! Sem o tal Sr. Pereira ainda estava engasgado com a palavra, e ele achou uma porção de sinônimos: consórcio, feliz união, bodas, núpcias, himeneu e não sei que mais... PEREIRA (a TEIXEIRA) – Peço a V.Ex.a queira desculpar. TEIXEIRA – Está bom, Sr., não falemos mais nisto. PEREIRA – Passar bem. (Sai.)

CENA XVIII

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TEIXEIRA, ERNESTO, JÚLIA, MARIANA, depois CUSTÓDIO

(TEIXEIRA acompanha PEREIRA que sai pelo fundo.)

JÚLIA (a D. MARIANA) – Não tenho ânimo de olhar para meu pai! D. MARIANA – Ele não foi moço? Não amou? (TEIXEIRA desce.) ERNESTO – Aí vem o temporal desfeito. TEIXEIRA – Com que então ama-se nesta casa; a gente de fora sabe; e eu sou o último a quem se diz... ERNESTO – Perdão, meu tio, não tive ânimo de confessar-lhe. TEIXEIRA – E tu, Júlia, que dizes a isto? D. MARIANA (a JÚLIA, baixo) – Fale! Não tenha medo! JÚLIA – Papai!... TEIXEIRA – Percebo... Queres casar com teu primo, não é? Pois está feito! JÚLIA – Ah! D. MARIANA – Muito bem! TEIXEIRA (a ERNESTO) – Com uma condição, porém; não admito epitalâmios, nem versos de qualidade alguma. ERNESTO – Sim, meu tio; tudo quanto o Sr. quiser! Hoje mesmo podia ser... É sábado... TEIXEIRA – Alto lá, Sr. estudante! Vá se formar primeiro e volte. (D. MARIANA sobe e encontra-se com CUSTÓDIO.) ERNESTO – Oito meses!... D. MARIANA (a CUSTÓDIO) – Voltou? CUSTÓDIO – Perdi o ônibus! O recebedor roeu-me a corda! ERNESTO (a JÚLIA) – Esperar tanto tempo! JÚLIA – Mas assim é doce esperar. ERNESTO – Oito meses longe do Rio de Janeiro! Que martírio, meu Deus! TEIXEIRA (levantando-se) – Vamos! O café já deve estar frio. (Sobe e vê CUSTÓDIO) Oh! compadre! CUSTÓDIO – Perdi o ônibus. Que há de novo? TEIXEIRA – Que vamos almoçar.

FIM