Versos da mocidade (Vicente de Carvalho, 1912)/Explicação

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O titulo deste livro ezije esplicação que será dada em algumas linhas.

A vida literaria do autor teve até agora duas fazes distintas, separadas entre si por uma solução de continuidade que durou mais de cinco anos — mais de cinco anos de absoluta e intencional abstenção. Tendo começado muito cedo a rabiscar versos, aos dezoito anos publicou o autor o seu primeiro livro, com o titulo de Ardentias; e, tres anos depois, o segundo, a que chamou Relicario, e no qual foram reproduzidas algumas das poezias que figuravam naquele. Solicitado daí em diante pelos interesses da vida pratica, dominado por preocupações de jornalismo e de politica, nem porisso deixou de cultivar com fiel amor, si bem que com menos assiduidade, o verso; e dispunha, em 1894, de materia para um novo volume, quando sobreveiu á sua vida um acontecimento que o desgostou — para sempre, pensava ele, apenas por algum tempo, na realidade — da sua tal qual habilidade para metrificar frazes e ajustar rimas.

Convertido ao pozitivismo num brusco movimento de entuziasmo juvenil, pareceu-lhe que os seus versos, vulgares e insignificantes, profanavam o altar erguido por Augusto Comte á Poezia, quando a proclamou a mais nobre e a mais elevada manifestação do espirito humano. Chegou a ganhar-lhes aversão. Ao mesmo tempo que se penitenciava, em publico, de haver militado no jornalismo, a si mesmo se condenava no seu fôro intimo como autor de versos imperdoaveis. Todo voltado para a admiração intransijente e escluzivista dos Grandes Poetas, aferrolhou a sete chaves a sua lira, e procurou esquecer que perpetrara as Ardentias e o Relicario, afóra outros pecados, veniais ou de menos vulto, esses, porque tinham sido dispersados na publicidade efemera da imprensa periodica, ou se conservavam no estado inofensivo de manuscritos.

Durou mais de cinco anos essa situação de espirito. Passados eles, recaiu o autor no jornalismo e nos versos, dous vicios de que se julgára definitivamente corrijido. Em idade já proveta, quando já dobrava o cabo dos trinta anos, voltou a correr atraz das rimas — como se tivesse quinze e corresse atraz de borboletas... Em 1902 publicou o poemeto Rosa, rosa de amor... Em 1908, os Poemas e Canções. O acolhimento feito pelo publico e pela critica a esses dous livros, sobretudo ao ultimo, surprehendeu-o; e, com injenuidade o confessa, deu-lhe de seus proprios versos uma ideia muito mais alta do que nunca tivera.

A simpatia do publico é, de certo, mesmo para os artistas menos dotados de vaidade, o melhor dos estimulos, e o mais preciozo dos tezouros. Vendo-se acolhido com tanto favor, poz-se o autor a reler com outros olhos os versos da sua mocidade: sob o efeito de uma sujestão algum tanto similhante a uma suave embriaguez, pareceram-lhe tais versos melhores do que até então lhe tinham parecido. Acreditou, relendo-os, que não se distanciavam muito, sinão pela idade, daqueles que o publico recebêra com simpatia e a critica com aplauzo. E rezolveu-se a reunil-os em volume, com a esperança de que essa resurreição deles, do esquecimento em que jaziam para a publicidade em que hoje surjem, fosse, senão um titulo, uma nova ocazião pelo menos á simpatia benevola, mas tão desvanecedora sempre, dos leitores. Si isso é uma iluzão, será facilmente perdoada mais essa a um poeta, como tal acostumado por natureza e por oficio a entreter-se com quimeras.

O fato é que, dominado por tais sentimentos, dedicou o autor a organizar o presente volume os lazeres de uma viagem de descanço — rapido parenteze aberto numa vida trabalhada de obrigaçõis profissionais ezijentissimas. Aproveitou, para isso: parte, menos de metade, da materia contida nas Ardentias; muito do Relicario; e o que pôde encontrar de mais ou menos aprezentavel na sua produção dispersa, e em boa parte estraviada, de 1889 a 1894. E’ este, pois, um livro novo feito de versos velhos. As Ardentias, cuja pequena edição se esgotou logo, foram por assim dizer um livro que dezapareceu, e ficou pouco menos de ignorado. Do Relicario houve duas edições, uma em 1888, outra em 1890; ambas acabaram rapidamente, deixando quazi que só uma vaga lembrança na memoria dos que as conheceram. Quanto aos versos escritos de 1889 a 1894, são, pela maior parte, completamente ineditos.

A todos eles fez o autor, tanto quanto lhe foi possivel, as modificações precizas para os limpar dos defeitos de fórma que os desfeiavam. Os defeitos corrijidos entendiam particularmente com o respeito que se deve á lingua em que se escreve. Em materia de linguajem, e de regras em geral, o autor foi, na sua mocidade, um revolucionario entuziasta, como o comum dos moços — e até mais, talvez. Apezar de frequentar com gosto os chamados classicos da lingua, afigurava-se-lhe a gramatica portugueza, em muitos cazos, uma apertada tirania ezercida ilejitimamente sobre o falar brazileiro. Era muito da moda, por aquele tempo, esse jacobinismo literario, ou mais precizamente filolojico. Quanto á fatura material do verso, á precizão e sobriedade das espressões, á variedade dos sons, que tanto contribuem para a muzicalidade do ritmo, á propriedade da rima — pensava o autor que a fórma não passa de um pretesto á inspiração.

Era assim que escrevia, prefaciando em 1887 um livro alheio:

«Vê-se que a tua muza não procurou artificiozamente a fraze, e antes lhe saiu esta espontanea com o pensamento. Para muitos será isso um peccado; para mim, que prefiro o obscuro rouxinol maviozo da Menina e Moça aos pavões bizarros do parnazianismo, para mim essa simplicidade possue verdadeiro encanto... Já o nosso grande Musset, esse que os contemporaneos acuzavam de não saber fazer versos, dizia que:

...les oiseaux
«Qui sont les plus charmants sont ceux qui chantent faux.

«Não compreendo essa arte que faz da beleza da fraze o valor escluzivo do verso. A poezia moderna faz-me lembrar os manequins destinados á reclame dos alfaiates: por fóra, dezenham-se as formas corretas da roupa bem talhada; dentro, dorme um pedaço de pau toscamente ajeitado ao feitio do corpo humano. Entretanto, não defendo o desleixo da fórma. Penso que a fraze, como roupajem que é do pensamento, deve ajustar-se-lhe com elegancia e correção. Apenas não quero que por amor ao apuro casquilho se faça da poezia o manequim do verso...

«...Os teus versos não deslumbram a vista pelo rendilhado artistico da fraze, pela esquizita beleza de um estilo arquitetado pitorescamente; mas rouxinolam no ouvido e ecoam docemente na alma...»

Assim pensava o autor aos vinte anos, separando, na poezia, o fundo e a fórma, para atribuir áquele urna absoluta supremacia, e a esta uma função acessoria. E é natural que, pensando de tal modo, ezecutasse com a mais convencida sem-cerimonia esse pensamento, sempre que se achava em dificuldade, e precizava apoiar os arroubos da inspiração nas azas de pau de um adjetivo apanhado ao acazo, ou de uma rima que só rimava pela intenção...

Reduzido pelo tempo a idéas menos radicais, ou menos confuzas, pensa hoje o autor o que esprimiu nas seguintes linhas de outro prefacio, escrito vinte anos depois daquele:

«Dizia Goethe, com razão e graça, que um poeta, emquanto apenas dispõe de uma rica idéa, não possue ainda couza nenhuma.

«Em materia de poezia, a espressão é tudo; com a condição, está visto, de ser a espressão de alguma couza, que dentro dela viva e palpite...

«No verso, as idéas e a espressão fundem-se, e não ha meio de as separar. Não creio que haja poetas da fórma e poetas de outra especie. Não sei, de poeta digno desse titulo que valha por obra em estilo atamancado, e não esprima, na lingua de ouro dos versos que ficam, idéas e sensações ainda não ouvidas. Em todos os tempos e de todos os poetas, os versos que ficaram são aqueles que têm a eternidade da perfeição, porque evocam, em fraze per«feita, flagrantemente reprezentativa e modelarmente conciza, algum aspeto dessa maravilhoza, dessa variadissima, dessa inesgotavel paizagem que é a alma humana...»

Compreende-se que, convertido a essa concepção da poezia, certo de que na obra de arte, que é um luxo, a perfeição da fórma é uma necessidade, e a ambição de a realizar uma condição da capacidade criadora; compreende-se que, assim pensando e sentindo, não pudesse o autor rezistir á tentação de polir, tirando-lhes as arestas mais vivas, os versos que na mocidade escrevêra despreocupado de ezigencias que então lhe pareciam formalidades suscetiveis de serem transgredidas impuremente. Assim fez, tanto quanto julgou indispensavel, e lhe foi possivel. Poucas das poezias contidas no prezente volume foram reproduzidas como figuravam nas Ardentias e no Relicario, ou como se conservavam em manuscrito. São essas as que, por um acazo feliz, sairam de primeiro jato vazadas em forma aceitavel. Outras foram modificadas — algumas profundamente. As que o autor de todo não pôde corrijir dos grandes defeitos de fórma que anulavam algum merecimento que tivessem, preferiu, ás vezes com pezar, deixal-as abandonadas nas edições esquecidas onde jaziam e devem continuar a jazer como em tumulos ignorados.

Esta esplicação, aliás longa, era um dever de lealdade em que o autor se sentiu para com o publico. O titulo do prezente livro Versos da mocidade, não significa, nem pretende significar, que os versos reproduzidos o foram exatamente, na sua fórma primitiva. E’ o que devia ficar bem claro. O autor acredita ter tido mais de uma vez em seus verdes anos ocasião de fazer alguns versos tão felizes como os menos maus que na idade madura conseguiu rimar; mas escrevia então, pelo meio deles, outros que mais tarde não se atreveria a escrever, e menos ainda a conservar. Não faltará quem entenda, e, com varios argumentos, que era preferivel deixar intacta a obra juvenil, com todas as qualidades e defeitos proprios da idade em que foi produzida, com todos os carateristicos da arte rudimentar em cujos principios licenciozos se orientava. Não o entendeu assim o autor. Si ele se reconhecesse bastante rico para se dar a um tal luxo, desdenharia esses velhos versos que foram a tosca morada de sua alma de moço; e trataria de empregar em novas construções, mais homojeneas e mais sólidas, o tempo e o esforço de que dispunha. Mas sente-se demaziado pobre para isso: por pouco que valham, algumas concepções, algumas imajens, algumas estrofes destacadas, na confuzão da obra dezordenada e dezegual da mocidade, constituiam uma bôa parte do seu reduzido patrimonio. Preferiu o autor, como é natural, convervl-as e aproveital-as, mediante algum trabalho de reparo e reconstrução, a perdel-as, deixando-as ao abandono. Supõi ele que lhe assistia direito de assim proceder. Um artista, tanto quanto se sente com forças para o fazer, tem sempre o direito de corrijir e melhorar a sua obra, procurando dar-lhe a fórma definitiva, isto é, a fórma que mais se aproxime da relativa perfeição ao alcance dos seus meios: o ponto em que se reconhece afinal de todo incapaz de fazer melhor é o ultimo limite em que deve deter, dezanimado e vencido, o seu esforço. O autor, aliás, sempre assim entendeu e ajiu. Para terem entrada no Relicario, quazi todas as poezias que haviam figurado nas Ardentias sofreram retoques; e, desde que voltou á atividade literaria, de cada vez que uma produção antiga lhe parecia suscetivel de alguma melhora, nunca hezitou o autor em procurar melhoral-a. Foi sempre esse o seu sistema. Tais alteraçõis respeitaram sempre o pensamento e o sentimento dominante das poezias, bem assim a maior parte dos versos; em muitos cazos se limitaram a simples substituição de uma ou outra palavra. Para os que pensam que isso é um pecado, aí fica a confissão. O que ninguem, depois destas linhas poderá pensar, é que houve da parte do autor qualquer intenção de iludir o leitor desprevinido.

 
Paris, Julho de 1909.