Viagens na Minha Terra (1846)/IV
CAPITULO IV.
De como o A. foi pensando e divagando, e em que pensava e divagava elle, no caminho da villa da Azambuja até o famoso pinhal do mesmo nome. — Do poeta grego e philosopho Démades, e do poeta e philosopho inglez Addison, da casaca de penneiros e do palio atheniense, e de outros importantes assumptos em que o A. quiz mostrar a sua profunda erudição. — Discute-se a materia gravissima se é necessario que um ministro d’estado seja ignorante e leigarraz. — Admiraveis reflexões de zigzag em que se tracta de re politica e de re amatoria. — Descobre-se porfim que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo, e pede-se ao leitor benevolo que volte a folha e passe ao seguinte.
Eu darei sempre o primeiro logar á modestia entre todas as bellas qualidades. — Ainda sôbre a innocencia? — Ainda sim. A innocencia basta uma falta para a perder, da modestia so culpas graves, so crimes verdadeiros podem privar. Um accidente, um acaso podem destruir aquella, a ésta so uma acção propria, determinada e voluntaria.
Bem me lembram ainda os dois versos do poeta Démades que são forte argumento de auctoridade contra a minha theoria; cuidei que tinha mais infeliz memoria. Heide pô-los aqui para que não falte a ésta grande obra das minhas viagens o merito da erudição, e lhe não chamem livrinho da moda: estou resolvido a fazer a minha reputação com este livro.
Aid
ôs te kalle ka
aretês polis,
Prôtoê
sgathis hamartia deuteron de ais
chunê
Da belleza e virtude é a cidadella
A innocencia primeiro — e depois ella.
Mas a auctoridade responde-se com auctoridade, e a texto com texto. E eu trago aqui na algibeira o meu Addison — um dos poucos livros que não largo nunca — e atiro com o philosopho inglez ao philosopho grego e fico triumphante: porque Addison não põe nada acima da modestia; e Addison, apezar da sua casaca de penneiros, é muito maior philosopho do que foi Démades com a sua tunica e o seu palio atheniense.
O erudito e amavel leitor escapará d’ésta vez a mais citações: compre um Spectator, que é livro sem que se não póde estar, e veja passim.
Eu gósto, bem se ve, de ir ao incôntro das objecções que me podem fazer; lembro-as eu mesmo paraque depois me não digam: — 'Ah, ah! vinha a ver se pegava!' — Não senhor, não é o meu genero esse.
Francamente pois... eis-ahi o que poderão dizer: — 'Addison foi secretario d'Estado, e então...’ — Então o quê? Não concebem um secretario d’Estado philosopho, um ministro poeta, escriptor elegante, cheio de graça e de talento? Não, bem vejo que não: teem a idea fixa de que um ministro d’Estado hade ser por fôrça algum semsaborão, malcriado e petulante. Mas isto é nos paizes adiantados em que ja é indifferente para a coisa-pública, em que povo nem principe lhes não importa ja, em que mãos se intregam, a que cabeças se confiam. Em Inglaterra não é assim, nem era assim no tempo de Addison. Fossem lá á rainha Anna que deixasse entrar no seu gabinete quatro calças de coiro sem criação nem instrucção, e não mais senão so porque este sabía jogar nos fundos, aquelle tinha boas tretas para o canvassing de umas eleições, o outro era figura importante no Freemasson’s-hall! Ja se ve que em nada d’isto ha a minima allusão ao feliz systema que nos rege: estou fallando de modestia, e nós vivemos em Portugal. A modestia comtudo quando é excessiva e se aproxima do acanhamento, do que no mundo se chama falta de uso — póde ser n’um homem quasi defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude, realce de belleza ás formosas, disfarce de fealdade ás que o não são. Por mim, não conheço objecto mais lindo em toda a natureza, mais feiticeiro, mais capaz de arrebatar o espirito e inflammar o coração do que é uma joven donzella quando a modestia lhe faz subir o rubor ás faces, e o pejo lhe carrega brandamente nas palpebras... Pouco lume que tenha nos olhos, pouco regular que seja o semblante, menos airosa que seja a figura, parecer-vos-ha n’esse momento um anjo. E anjo é a virgem modesta, que traz no rosto debuxado sempre um ceo de virtudes... — De alguma belleza sei eu cujos olhos côr da noite ou de saphyra (dialec. poet. vet.), cujas faces de leite e rosas, dentes de pérolas, collo de marfim, transas de ebano (a allusão é surtida, ha onde escolher) davam larga materia a boas grozas de sonetos — no antigo regimen dos sonetos, e hoje inspirariam myriadas de canções descabelladas e vaporosas, choradas na harpa ou gemidas no alahude. Comtanto que não seja lyra, que é classico, todo o instrumento, inclusivamente a bandurra, é egual deante da lei romantica.
Ora pois, mas a tal belleza, por certo ar ala-moda, certo não-sei-quê de atrevido nos olhos, de deslavado na cara, e de descomposto nos ademanes, perde toda a graça e quasi a propria formosura de que a dotára a natureza...
Vêde-me aquelles labios de carmim. Ha maio florido que tam lindo botão de rosa apresente ao alvorecer da madrugada?... Mas olhae agora como o riso da malicia lh’o desfolha tam feiamente n’uma desconcertada risada...
Desvaneceu-se o prestigio.
Não havia moço nem velho, homem do mundo ou sabio de gabinete que não désse metade dos seus prazeres, dos seus livros, da sua vida por um so beijo d’aquella bôcca... Agora talvez nem repetidos avances lhe façam obter um namorante de profissão e officio... E hade pagá-lo adeantado, e porque preço!...
Mas o que terá tudo isto com a jornada da Azambuja ao Cartaxo? A mais íntima e verdadeira relação que é possivel. É que a pensar ou a sonhar n’estas coisas fui eu todo o caminho, até me achar no meio do pinhal da Azambuja.
Ahi parámos, e acordei eu.
Sou sujeito a éstas distracções, a este sonhar acordado. Que lhe heide eu fazer? Andando, escrevendo, sonho e ando, sonho e fallo, sonho e escrevo. Francamente me confesso de somnambulo, de somniloquo, de... Não, fica melhor com seu ar de grego (tenho hoje a bossa hellenica n’um estado de tumescencia pasmosa!); digamos somnilogo, somnigrapho...
A minha opinião sincera e conscienciosa é que o leitor deve saltar éstas folhas, e passar ao capitulo seguinte, que é outra casta de capitulo.