Viagens na Minha Terra (1846)/VII
CAPITULO VII.
Voltar á meia-noite do Bois-de-Boulogne — o bosque por excellencia, descer, entre nuvens de poeira, o longo stadio dos Campos-Elysios, entrever, na rapida carreira, o obelisco de Luxor, as árvores das Tulherias, a columna da praça Vandomma, a magnificencia heteroclyta da ’Magdalena’, e emfim sentir parar, de uma soffreada magistral, os dois possantes inglezes que nos trouxeram quasi de um folego até ao ’boulevard de Gand’; ahi entreabrir mollemente os olhos, levantando meio corpo dos regallados cochins de seda, e dizer: ’Ah! estamos em Tortoni... que delicia um sorvete com este calor!’ — é seguramente, é dos prazeres maiores d’este mundo, sente-se a gente viver; é meia hora de existencia que vale dez annos de ser rei em qualquer outra parte do mundo.
Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores d’este mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o prazer de chegar por aquelle modo a Tortoni, o apear da elegante caleche balançada nas mais suaves mollas que fabricasse arte ingleza do puro aço de Suecia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação de alma e corpo que eu senti ao apear-me de minha choiteira mula á porta do grande café do Cartaxo.
Fazem idea do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, se não sahem, se não vêem mundo ésta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o theatro de San’Carlos, como hãode alargar a esphera de seus conhecimentos, desinvolver o espirito, chegar á altura do seculo?
Coroae-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos á dama nova, ide, que não prestais para mais nada, meus queridos Lisboetas; ou discuti os deslavados horrores de algum mellodrama velho que fugiu assoviado da ’Porte-Saint Martin’ e veio esconder-se na Rua-dos-Condes. Tambem podeis ir aos Toiros — estão imbolados, não ha perigo...
Viajar?.. qual viajar! até á Cova-da-Piedade, quando muito, em dia que lá haja cavallinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças d’este mundo são como a do Terreiro-do-Paço, todas as ruas como a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.
O café é uma das feições mais characteristicas de uma terra. O viajante experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido o paiz em que está, o seu govêrno, as suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quizerem, não me desvendem senão no café; e protesto-lhe que em menos de dez minutos lhe digo a terra em que estou se for paiz sublunar.
Nós entrámos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo; e nunca se incruzou turco em divan de seda do mais splendido harem de Constantinopla com tanto gôso de alma e satisfacção de corpo, como nós nos sentámos nas duras e asperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o magnífico estabelecimento bordalengo.
Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade classica: será um parallelogrammo pouco maior que a minha alcova; á esquerda duas mezas de pinho, á direita o mostrador invidraçado onde campeam as garrafas obrigadas de liquor de amendoa, de canella, de cravo. Pendem do tecto, laboriosamente arrendados por não vulgar tesoira, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admiravel n’aquelle recinto.
Sentámo-nos, respirámos largo, e entrámos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta annos, de physionomia experta e sympathica, e sem nada do repugnante villão-ruim que é tam usual de incontrar por similhantes logares da nossa terra.
— 'Então que novidades ha por ca pelo Cartaxo, patrão?'
— 'Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. — Ahi está a 'Revolução’ de hontem...’
— 'Jornaes, meu caro amigo! Vimos fartos d'isso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por ca o...’
— 'O mestre J. P., o ’Alfageme?’'
— 'Como assim o Alfageme?'
— 'Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.: pois então! Uns senhores de Lisboa que ahi estiveram em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora ja ninguem lhe chama senão o Alfageme. Mas quanto a mim, ou elle não é Alfageme, ou não o hade ser muito tempo. Não é aquelle, não. Eu bem me intendo.'
A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quizemos profundar o caso.
— 'Muito me conta, Sr. patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de?..
— 'Parece-me o que é, e o que hade parecer a todo o mundo. E alguma coisa sabemos, ca no Cartaxo, do que vai por elle. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarem; e que foi um homem capaz, e que tinha pelo povo, e que não queria saber de partidos, e que dizia elle: ’Rei que nos inforque, e papa que nos excommungue, nunca hade faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos a nossa vida.’ Mas que extrangeiros que não queria, que ésta terra que era nossa e co’a nossa gente se devia de governar. E mais coisas assim: e que porfim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. — Mas que lhe valeu o Condestavel e o não deixou arrazar, por que era homem de bem e fidalgo ás direitas. Pois não é assim que foi?’
— 'É, sim, meu amigo. Mas então d’ahi?'
— 'Então d'ahi o que se tira, é que quando havia fidalgos como o sancto Condestavel tambem havia Alfagemes como o de Santarem. E mais nada.’
— 'Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. o Alfageme do Cartaxo?'
— 'Eu lhe digo aos senhores: o homem nem era assim nem era assado. Fallava bem, tinha sua labia com o povo. D'ahi fez-se juiz, pôs por ahi suas coisas a direito — Deus sabe as que elle intortou tambem!.. ganhou nome no povo, e agora faz d’elle o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. — Os senhores não tomam nada?’
O bom do homem visivelmente não queria fallar mais: e não deviamos importuná-lo. Fizemos o sacrificio de bom número de limões que expremémos em profundas taças — vulgo, copos de canada — e com agua e assucar, offerecemos as devidas libações ao genio do logar.
Infelizmente o sacrificio não foi detodo incruento. Muitas hecatombes de myrmidões cahiram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei se agradou á divindade, mas que injoou terrivelmente aos sacerdotes.
Sahimos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e a alegria do Ribatejo. Ja elle sabía da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.
Fomos dar, junctos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, aceada, alegre; parece o bairro suburbano de uma cidade.
Não ha aqui monumentos, não ha historia antiga: a terra é nova, e a sua prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta annos, desde que o seu vinho começou a ter fama. Ja descahida do que foi, pela estagnação d’aquelle commercio, ainda é comtudo a melhor coisa da Borda-d’agua.
Não tem historia antiga, disse; mas tem-n’a moderna e importantissima.
Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular! Que espantosas borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generaes, os mais distinctos militares da nossa antiga e fiel alliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!.. hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordeos, e as acerbas limonadas de Borgonha. Quem tal diria da conservativa Albion! Como póde uma leal goella britannica, rascada pelos acidos anarchicos d’aquellas vinagretas francezas, intoar devidamente o God-save-the-King em um toast nacional! Como, sem Porto ou Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um subdito britannico erguer a voz, n’aquella harmoniosa desafinação insular que lhe é propria e que faz parte de seu respeitavel character nacional — faz; não se riam: o inglez não canta senão quando bebe... alias quando está bebido. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta: Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como hade elle assim bebido erguer a voz n’aquelle sublime e tremendo hymno popular Rulle-Britannia!
Bebei, bebei bem zurrapa franceza, meus amigos inglezes; bebei, bebei a pêso de oiro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha; chamae-lhe, para vos illudir, chamae-lhe hoc, chamae-lhe hic, chamae-lhe o hic haec hoc todo, se vos dá gôsto... que em poucos annos veremos o estado de acetato a que hade ficar reduzido o vosso character nacional.
Oh gente cega a quem Deus quer perder! pois não vêdes que não sois nada sem nós, que sem o nosso alchool, d’onde vos vinha espirito, sciencia, valor, ides cahir infallivelmente na antiga e priguiçosa rudeza saxonia!
D’essas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e da vossa fôrça, não tardará que tambem vos chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça arrepender, mas tarde, do criminoso êrro que hoje commetteis, ó insulares sem fe, em abandonar a nossa alliança. A nossa alliança sim, a nossa poderosa alliança, sem a qual não sois nada.
O que é um inglez sem Porto ou Madeira... sem Carcavellos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte, Milton com Chateaumargot — o chanceller Bacon que se dilluisse no melhor Borgonha... e veriamos os acidulos versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam.
Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg; Byron antes beberia gin, antes agua do Thamisa, ou do Pamiso, do que essas escorreduras das areias de Bordeos.
Tirae-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguem mais teme que torneis a ter outro Nelson. Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos beber da sua zurrapa: são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jôgo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com a sua alliança; e tambem perde o Cartaxo. Por isso eu ja não quero nada com os doutrinarios.
Ha dôze annos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente na historia de Portugal. Aqui, nas longas e terriveis luctas da última guerra de successão, esteve muito tempo o quartel-general do marquez de Saldanha.
Alguns dythirambos se fizeram; alguns echos das antigas canções bacchicas do tempo da guerra peninsular ainda acordaram ao som dos hymnos constitucionaes.
Mas o systema liberal, tirada a epocha das eleições, não é grande coisa para a indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio porém; e tenho minhas boas razões, que ficam para outra vez.