Viagens na Minha Terra (1846)/XVIII

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CAPITULO XVIII.

 

Descobre-se que ha grandes e espantosos segredos entre o frade e a velha. — Piedosa fraude de Joanninha. — Lucta entre o hábito e o monge.

 

O frade intregou a carta a Joanninha, que, lançando os olhos ao sobrescripto, ficou indecisa e inquieta como quem receia e deseja e teme de saber alguma coisa. Elle com voz trémula e sobresaltada accrescentou:

— 'Adeus, que são horas!.. Leiam, e sexta-feira que vem... me dirão...'

— 'Poisquê’ disse timidamente a velha 'não quer ouvir o que elle nos escreve?’

— 'Sexta-feira que vem' continuou Fr. Diniz, sem ouvir ou sem attender a pergunta ’sexta-feira que vem eu tomarei conta da resposta, e lh’a farei chegar pela mesma via... So uma coisa! nem palavra a meu respeito: eu para Carlos... morri.’

— 'Diniz!’ exclamou a velha fóra de si ’Diniz!..'

O frade tornou derepente ao seu tom austero, e respondeu gravemente: ’O quê, minha irman?’

— 'Era' disse ella timida e submissa outra vez ’era se, era que... Pois não hade ouvir ler a carta d’elle?’

Fr. Diniz não respondeu, mas ficou sentado: descahiu-lhe a cabeça sôbre o peito, e abraçando-se com o bordão, não deu mais signal de si.

A velha escutou em silencio alguns segundos, e com aquelle ouvido agudissimo — penetrante vista dos cegos — percebeu sem dúvida o que se passava, e com mais confôrto e serenidade na voz disse:

— 'Abre, Joanna, lê, minha filha.'

Joanninha abriu a carta, e percorreu com avidez as poucas linhas que ella incerrava.

— 'Não les?' acudiu a avó com impaciencia: ’Lê, lê alto, Joanna.’

— 'É para mim so a carta' disse ella friamente.

— 'Para ti so, como?' tornou a outra.

— 'É para mim so ésta carta... não diz nada que...'

— 'Não diz nada!’ replicou a avó 'Pois!... Lê, lê alto; seja como for, lê, e oiçamos.’

Joanninha parecia hesitar ainda; lançou os olhos ao frade, achou-o na mesma attitude impassivel; voltou-se para a avó, viu-a anciada e anxiosa... leu.

A carta era com effeito para ella so, e carta bem singela, não continha senão as ingenuas expressões de um amor fraterno nunca esquecido, longas saudades do passado, poucas esperanças no futuro, quasi nenhumas de se tornarem a ver tam cedo. Tudo isto porém era com a prima: para a desconsolada avó, para ninguem mais... nem uma palavra.

Joanninha ia lendo, lendo... e a voz a descahir-lhe: no fim ajunctou uns abraços, umas saudosas lembranças, e não sei que phrase incompleta e mal articulada em que se pedia a bençam da avó.

A velha abanou a cabeça tristemente e disse: ’Ora pois... bemditto seja Deus!’

Joanninha córou até o branco dos olhos... Inda bem que a não podia ver a avó! Mas viu-a Fr. Diniz, e com a mão trémula e os olhos arrazados d’agua lhe fez um mudo e expressivo signal de approvação e agradecimento. Joanninha córou outra vez, e logo se fez pallida como a morte: era a primeira vez que mentia... e Fr. Diniz, o austéro Fr. Diniz apprová-la!

O frade levantou-se, e sem dizer palavra, tomou o caminho de Santarem.

Ouvia-se ao longe o arquejar de uns soluços suffocados... Seriam d’elle?

A avó e a neta abraçaram-se e choraram.

Nenhuma d’ellas disse palavra sôbre a carta: a velha tinha percebido a piedosa fraude de Joanninha...

Oh! que existencias que eram aquellas quatro! Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E a maior parte da gente que é gente, vive assim... E querem, querem-n’a assim mesmo, a vida, teem-lhe appêgo! Oh que enigma é o homem!

Tornou a passar outra semana, e o frade tornou a vir no praso costumado, e levou a resposta da Tornou a passar outra semana, e o frade tornou a vir no praso costumado, e levou a resposta da carta — resposta que Joanninha so escreveu e so viu — e dirigiu-a em Lisboa pela via segura que indicára.

Soube-se que fôra intregue; mas semanas e semanas decorreram, os meses passaram de anno... e outra carta não veio.

No entretanto a guerra civil progredia; e depois de suas tremendas peripecias, o grande drama da Restauração chegava rapidamente ao fim. Eram meiados do anno de 33, a operação do Algarve succedêra milagrosamente aos constitucionaes, a esquadra de D. Miguel fôra tomada, Lisboa estava em podêr d’elles. Os tardios e inuteis esforços dos realistas para retomar a capital tinham occupado o resto do verão. Ja outubro se descoroava de seus ultimos fructos, e as folhas começavam a impallidecer e a cahir, quando uma sexta-feira, ao pôr do sol, Fr. Diniz apparecia no valle mais curvado e mais trémulo que nunca. Vinha do exército realista que então cercava Lisboa.

Joanninha não era alli, a velha estava so.

— 'Que nos traz, padre?' clamou ella mal que o sentiu: ’Soube d’elle? Tem escapado a éstas desgraças, a esses combates mortaes?’

— 'Não sei nada, minha irman: ha tres dias que de Lisboa se não póde obter a menor informação. As linhas estão fechadas e guarnecidas como nunca: tudo indíca havermos de ter cedo algum combate decisivo.'

— 'Deus seja com!..'

— 'Com quem, minha irman?'

— 'Com quem tiver justiça.'

— 'Nenhum a tem. De um lado e de outro está a ambição e a cubiça, de um lado e de outro a immoralidade, a perdição e o desprêzo da palavra de Deus. Por isso, vença quem vencer, nenhum hade triumphar.'

— 'Ai, o meu pobre filho, o meu Carlos!'

— 'Isso, irman Francisca, isso! Peça a Deus que dê a victoria a seu neto, e á impiedade por que elle combate. Peça a Deus que vençam os inimigos declarados do seu nome, os destruidores de seus altares, os profanadores de seus templos... Oh! que dia bello e grande não hade ser esse, quando Carlos... o seu Carlos, vier expulsar, ás baionetadas, do pobre convento de San'Francisco, o velho guardião — que lhe não hade fugir, minha irman!.. d’elle menos que de nenhum outro... que ajoelhado deante do altar inclinará a cabeça como os antigos martyres para cahir na presença do seu Deus ás mãos do seu...’

— 'Diniz!.. Padre!.. Padre Frei Diniz, que horrorosas palavras sahem da sua bôcca!.. Meu neto, o meu Carlos não é capaz... oh meu Deus!..'

— 'Seu neto detesta-me... e tem... tem razão.'

— 'Não sabe a verdade elle... Carlos está inganado, cuida... não sabe senão meia verdade: e eu, eu heide — custe o que me custar — eu heide...'

— 'Hade o quê?'

— 'Heide desinganá-lo, heide-lhe dizer a verdade toda. Heide prostrar-me na sua presença, heide humilhar-me deante do filho de minha filha, heide arrastar na poeira de seus pés éstas cans e éstas rugas... morrerei de vergonha e de remorsos deante do meu filho, mas elle hade saber a verdade.'

Sahiam com tal impeto e com tam desacostumada energia éstas mysteriosas e tremendas palavras da bôcca da velha, que Fr. Diniz não ousou contê-la; ouviu até ao fim, deixou quebrar o impeto da torrente, e erguendo então a sua voz austera mas pousada, disse n’aquelle tom friamente decisivo que tanto impõe aos animos apaixonados:

— 'Se tal fizesse, mulher, a minha maldicção, a maldicção eterna de Deus sôbre a sua cabeça para sempre!... Oh mulher, pois não lhe basta que elle me abhorreça — não lhe basta que seu neto lhe perdesse o amor... quer... quer tambem que nos despreze?'

A velha gemeu profundamente, e, por um geito de antiga reminiscencia, levou as mãos aos olhos como se os tapasse para não ver. Então disse com desconsoladas lagrymas na voz:

— 'A vontade de Deus seja feita!'