Viagens na Minha Terra (1846)/XXII

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CAPITULO XXII.

 

Bilhete de manhan da prima ao primo. Inganam a pobre da velha. — Noite mal dormida. — Da conversa que teve Carlos com os seus botões. — A Joanninha que elle deixára e a Joanninha que achou. — Obrigações d’amor, triste palavra. — A mulher que elle amava, e se elle a amava ainda. — Quesitos do A. aos seus benevolos leitores. Declara que com os hypocritas não falla. — Quem hade levantar a primeira pedra? — Dous modos differentes de accudir uma coisa ao pensamento.

 

No dia seguinte, mal rompia a manhan, um paizano que dizia trazer communicações importantes para o commandante do pôsto avançado, foi conduzido á presença de Carlos e lhe intregou uma carta: era de Joanninha.

Fiel á sua promessa, ella não tinha ditto nada do incôntro da véspera: dizia a carta. E que a avó estava doente e afflicta; que para a animar e consolar, lhe dera notícias do primo, como vindas por pessoa que o víra e estivera com elle. Que ficava mais contente e socegada: mas que aquelle estado de anciedade não podia prolongar-se. Que a saude da pobre velha declinava de dia a dia; que se lhe ia a vida, que era matá-la não lhe dizer a verdade... Joanninha concluia com mil affectos e saudades; e aprazava por fim o mesmo sítio da véspera para se tornarem a ver, e para concertarem o que havia de fazer. Todas as precauções estavam tomadas, e o consentimento dado pelo commandante do pôsto contrário para haver toda a segurança n’aquella entrevista.

Carlos tinha velado toda a noite; uma excitação extraordinaria lhe amotinára o sangue, lhe desaffinára os nervos. Bem tinha desejado vir para aquelle pôsto, bem contava, bem esperava elle, estando alli, saber de mais perto da sua familia, vê-los talvez, mais dia menos dia, incontrar-se com alguns d’elles... e de todos elles, a innocente e graciosa criança com quem vivêra como irmão desde os seus primeiros annos, era quem elle mais esperava, mais desejava ver decerto.

Mas uma criança era a que elle tinha deixado, uma criança a brincar, a colhêr as boninas, a correr atraz das borboletas do valle... uma criança que sim o amava ternamente, cuja suave imagem o não tinha deixado nunca em sua longa peregrinação, cuja saudade o accompanhára sempre, de quem se não esquecêra um momento, nem nos mais alegres nem nos mais occupados, nem nos mais difficeis nem nos mais perigosos da sua vida...

Mas era uma criança!.. era a imagem d’uma criança.

É certo, sim: e nas batalhas, em presença da morte... no longo cêrco do Porto entre os flagellos da cholera e da fome, nas horas de mais viva esperança, no descoroçoamento dos mais tristes dias, a doce imagem de Joanninha, d’aquella Joanninha com quem elle andava ao colo, que levantava em seus hombros para ella chegar aos ninhos dos passaros no verão, aos medronhos maduros no outomno, que elle suspendia nos braços para passar no hynverno os alagadiços do valle, — essa querida imagem não o abandonára nunca.

Nunca!.. nem quando as pennas d’amor, nem quando as suas glórias — mais esquecidiças ainda! — pareciam absorver-lhe todos os sentidos, e todo o sentimento de seu coração.

A saudade, a memoria de Joanninha, suavemente impressa no mais puro e no mais sancto de sua alma, resplandecia no meio de todas as sombras que lh’a obscurecessem, sobreluzia no meio de qualquer fogo que lh’a allumiasse.

Uma luz quieta, limpida, serena como a tocha na mão do anjo que ajoelha em innocencia e piedade deante do throno do Eterno!

Mas, no mesmo dia em que chegou ao valle, quasi na mesma hora, cheio d’aquella luz, mais viva e animada agora pela proximidade do foco d’onde sahia... n’essa mesma hora, ir incontrar alli, n’aquella solidão, entre aquellas árvores, á tibia e seductora claridade do crepusculo... a quem, sancto Deus! Não ja a mesma Joanninha de ha tres annos, não a mesma imagem que elle trazia, como a levára, no coração; mas uma gentil e airosa donzella, uma mulher feita e perfeita, e que nada perdêra, comtudo, da graça, do incanto, do suave e delicioso perfume da innocencia infantil em que a deixára!

Não esperava, não estava preparado para a impressão que recebeu, foi uma surpreza, um choque, um reviramento confuso de todas as suas ideas e sentimentos.

Qual fosse porêm a precisa e verdadeira impressão que recebeu, nem elle a si proprio o podéra explicar: era de um genero novo, unico na historia de suas sensações: não a conhecia, extranhava-a, e quasi que tinha medo de a analysar.

Sería annúncio d’amor?

Mas elle tinha amado, amado muito e devéras... e cuidava amar ainda, e devia amar; por quanto ha sagrado e sancto nos deveres do coração, era obrigado a amar ainda.

Oh obrigações d’amor, obrigações d’amor! se vós não sois, se vós ja não sois senão obrigações!..

Não o pensava Carlos, não o cria elle assim: leal e sincero tinha intregue o seu coração á mulher que o amava, que tantas próvas lhe dera d’amor e devoção; que descançava em sua fé, que não existia senão para elle: mulher môça, bella, cheia de prendas e de incantos, mulher de um espirito, de uma educação superior, que atravessára, desprezando-as, turbas de adoradores nobres, riccos, poderosos, para descer até elle, para se intregar ao foragido, pobre, extrangeiro, desprezado.

Quem era essa mulher?

Aonde, como obtivera elle a posse d’essa joia, d’esse talisman com o qual se tinha por tam seguro para não ver na graciosa prima senão?..

Senão o quê?

A innocente criança que alli deixára?

Mas não é verdade isso: outra era a impressão que Joanninha lhe fizera, fosse ella qual fosse.

O que era então?

E sôbre tudo, quem era ess’outra mulher que elle amava?

E amava-a elle ainda?

Amava.

E Joanninha?

Joanninha era... nem eu sei o que lhe era Joanninha... o que lhe estava sendo n’aquelle momento.

O que lhe ella fôra, assas t’o tenho explicado, leitor amigo e benevolo: o que lhe ella será... Pódes tu, leitor candido e sincero, — aos hypocritas não fallo eu — pódes tu dizer-me o que hade ser ámanhan no teu coração a mulher que hoje somente achas bella, ou gentil, ou interessante?

Pódes responder-me da parte que tomará ámanhan na tua existencia a imagem da donzella que hoje contemplas apenas com olhos de artista, e lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos contornos; a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada?

E quando vier, se vier, esse fatal dia de ámanhan, responder-me-has tambem da parte que ficará tendo em tua alma ess’outra imagem que lá estava d’antes e que, ao reflexo d’esta agora, d’aqui observo que vai impallidecendo, descórando... ja lhe não vejo senão os lineamentos vagos... ja é uma sombra do que foi... Ai! o que será ella ámanhan?

Leitor amigo e benevolo, caro leitor meu indulgente, não accuses, não julgues á pressa o meu pobre Carlos; e lembra-te d’aquella pedra que o Filho da Deus mandou levantar á primeira mão que se achasse innocente... A adultera foi-se em paz, e ninguem a apedrejou.

Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado muito, e amava ainda a mulher a quem promettêra, a quem estava resolvido a guardar fé. E essa mulher era bella, nobre, ricca, admirada, — Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado muito, e amava ainda a mulher a quem promettêra, a quem estava resolvido a guardar fé. E essa mulher era bella, nobre, ricca, admirada, occupava uma alta posição no mundo... e tudo lhe sacrificára a elle exilado, desconhecido.

E Carlos estava seguro que nenhuma mulher o havia de amar como ella; que os longos e ondados anneis de loiro cendrado, que os languidos olhos de gazella, que o ar majestoso e altivo, que a tez d’uma alvura celeste, que o espirito, o talento, a delicadeza de Georgina... Chamava-se Georgina; e é tudo quanto por agora póde dizer-vos, ó curiosas leitoras, o discreto historiador d’este mui veridico successo: não lhe pergunteis mais, por quem sois. Carlos estava seguro, dizia eu, que todas essas perfeições, que o seu amor sem limites, que a sua confiança sem reserva, não podiam ter rival, nem a haviam de ter.

Mas aquelle beijo, aquelle abraço de Joanninha... oh! que lhe tinha elle feito? Como o sentíra elle? Como lhe guardára o seu talisman o coração e a alma?..

Não, Carlos estava certo de si, certo do seu antigo amor, lembrado de quanto lhe devia: e n’isso reflectiu toda aquella noite que se fôra em claro.

A imagem de Joanninha lá apparecia, de vez em quando, como um raio de luz transiente e magica, no meio d’ess’outras visões do passado que a reflexão lhe acordava. Ai! essas era a reflexão que as acordava... aquella vinha espontanea; era repellida, e tornava, e tornava...

Ha sua notavel differença n’estes dois modos de accudir ao pensamento.

A manhan veio em fim; Carlos respirou o ar puro e vivo da madrugada, sentiu-se outro.

Quando chegou a carta de Joanninha, leu-a e reflectiu n’ella sem sobresalto. Certo e seguro de si, resolveu ir ao prazo dado para a tarde.