Viagens na Minha Terra (1846)/XXVIII
CAPITULO XXVIII.
Depois de muito procurar entre pardeiros e intulhos, achámo-la emfim a egreja de Sancta Maria d’Alcaçova. Achámos, não é exacto: ao menos eu, por mim, nunca a achava, nem queria accreditar que fôsse ella quando m’a mostraram. A real collegiada de Affonso Henriques, a quasi-cathedral da primeira villa do reino, um dos principaes, dos mais antigos, dos mais historicos templos de Portugal, isto?.. esse egrejorio insignificante de capuchos? mesquinha e ridicula massa d’alvenaria, sem nenhuma architectura, sem nenhum gôsto! risco, execução e trabalho de um mestre pedreiro d’aldeia e do seu apprendiz! É impossivel.
Mas era, era essa. A antiga capella-real, a veneranda egreja da Alcaçova foi passando por successivos reparos e transformações, até que chegou a ésta miseria.
Perverteu-se por tal arte o gôsto entre nós desde o meio do seculo passado especialmente, os estragos do terremoto grande quebraram por tal modo o fio de todas as tradições da architectura nacional, que na Europa, no mundo todo talvez se não ache um paiz onde, a par de tam bellos monumentos antigos como os nossos, se incontrem tam villans, tam ridiculas e absurdas construcções públicas como essas quasi todas que ha um seculo se fazem em Portugal.
Nos reparos e reconstrucções dos templos antigos é que este pessimo stylo, ésta ausencia de todo stylo, de toda a arte mais offende e escandaliza.
Olhem aquella impena classica posta de remate ao frontispicio todo renascença da Conceição-velha em Lisboa. Vejam a implastagem de geço com que estão mascarados os elegantes feixes de columnas gothicas da nossa sé.
Não se póde cahir mais baixo em architectura do que nós cahimos quando, depois que o marquez de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os rococós de Luiz XV, que no original, pelo menos, eram florídos, recortados, caprichosos e galantes como um madrigal, esse stylo bastardo, hybrido, degenerando progressivamente e tomando presumpções de classico, chegou nos nossos dias até ao chafariz do passeio-público!
Mas deixar tudo isso, e deixar a egreja da Alcaçova tambem; entremos nos palacios de D. Affonso Henriques.
Aqui, pegado com o pardeiro rebocado da capella hãode ser. Por onde se entra?
Por ésta portinha estreita e baixa, rasgada, bem se ve que ha poucos annos, no que parece muro de um quintal ou de um páteo.
É comeffeito aqui; apeemo’-nos.
Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, actual possuidor e habitante do regio alcassar, o Sr. M. P.
Notavel combinação do acaso! Que o illustre e venerado chefe do partido progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras convicções democraticas, e que mais sinceramente as combina com o respeito e adhesão ás fórmas monarchicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dynastia e da nação, viesse fixar aqui a sua residencia no alcassar do nosso primeiro rei, conquistado pela sua espada n’um dos feitos mais insignes d’aquella era de prodigios!
Entrámos na pequena horta em fórma de claustro que une a antiga casa dos reis com a sua capella. Assim foi sem dùvida n’outro tempo: a parede oriental da egreja é o muro do quintal de um lado, mas as communicações foram vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palacio e o separou assim perpetuamente do templo.
Plantado de larangeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras, aquella pequena cêrca, apezar dos muitos canteiros e alegretes de alvenaria com que está moirescamente intulhada, é amena e graciosa á vista.
Appresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave; beijámos seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensaveis depois de tal jornada para nos podermos sentar á mesa.
O palacio de Affonso Henriques está como a sua capella: nem o mais leve, nem o mais apagado vestigio da antiga origem. Sabe-se que é alli pela bem confrontada e inquestionavel topographia dos logares, por mais nada...
E que me importam a mim agora as antiguidades, as ruinas e as demolições, quando eu sinto demolir-me ca por dentro por uma fome exasperada e destruidora, uma fome vandalica insaciavel!
Vamos a jantar.
Comêmos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, fallou-se politica, fallou-se litteratura, fallou-se de Santarem sôbretudo, das suas ruinas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Emfim, fomo’-nos deitar.
Nunca dormi tam regalado somno em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e appresurado dos sinos da Alcaçova. Saltei da cama, fui á janella, e dei com o mais bello, o mais grandioso, e ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda puz os meus olhos.
No fundo de um largo valle aprazivel e sereno, está o socegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre d’agua juncto ás margens, d’onde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. D’alêm do rio, com os pés no pingue nateiro d’aquellas terras alluviaes, os riccos olivedos d’Alpiarça e Almeirim; depois a villa de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. D’aquem a immensa planicie ditta do Rocio, semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores sylvestres, de pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o picturesco bairro da Ribeira com as suas casas e as suas egrejas, tam graciosas vistas d’aqui, a sua cruz de Sancta Iria e as memorias romanescas do seu alfageme.
Com os olhos vagando por este quadro immenso e formosissimo, a imaginação tomava-me azas e fugia pelo vago infinito das regiões ideaes. Recordações de todos os tempos, pensamentos de todo o genero me affluiam ao espirito, e me tinham como n’um sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas se succedem umas ás outras.
Mas eram todas melancholicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!..
Lembraram-me aquelles versos de Goethe, aquelles sublimes e inimitaveis versos da introducção do Fausto:
Resurgis outra vez, vagas figuras,Vacillantes imagens que á turbadaVista accudieis d’antes. E heide agoraRetter-vos firme? Sinto eu aindaO coração propenso a illusões d’essas?E appertais tanto!... Pois embora! seja:Dominae, ja que em nevoa e vapor leveEmtôrno a mim surgis. Sinto o meu seioJuvenilmente trépido agitar-seCo’a maga exhalação que vos circunda.Trazeis-me a imagem de ditosos dias,E d’ahi se ergue muita sombra amada:Como um velho cantar meio-esquecido,Véem os primeiros simplices amoresE a amizade com elles. ReverdeceA mágoa, lamentando o errado cursoDos labyrintos da perdida vida;E me está nomeando os que trahidosEm horas bellas por fallaz venturaAntes de mim na estrada se sumiram.........................................................................................................
Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha infeliz traducção: fiel é ella, mas não tem outro merito. Quem póde traduzir taes versos, quem de uma lingua tam vasta e livre hade passá-los para os nossos appertados e severos dialectos romano para os nossos appertados e severos dialectos romanos?