Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)/III
III
Emblemas publicos
— A nossa insufficiencia nas artes do der senho é manifesta. Não peccará tanto quanto á execução, mas no que toca á imaginação: creadora é cousa que não se discute. As armas dos nossos estados, das nossas cidades, o cunho das nossas moedas, são uma prova disso.
Não posso abrir o Almanaque Garnier e ver-lhe os mappas das nossas provincias, com os respectivos emblemas heraldicos, que não fique horripilado com aquelles bonecos que ladeam uns escudos estramboticos, cheios de montanhas e letreiros, além de arvoredos e papagaios — tudo o que pode vir de mais estravagante e hediondo á cabeça de um sujeito doido e menos artista deste mundo.
As armas da Republica então! — são de uma inépcia estonteadora. Aquele espadagão! Aquele fitão! Que coisas, meu Deus!
A não ser o brasão de armas da cidade do Rio de Janeiro, que é de fato elegante, bem proporcionado, heráldico, significando a cidade, poucos dos nossos emblemas públicos se podem salvar de um inteiro naufrágio na fealdade e na mais completa cretinice.
Como são diferentes dos coloniais! Basta a esfera armilar, atravessada pela cruz de Malta — símbolo do Reino do Brasil — outorgado não sei por que rei de Portugal, para mostrar como naqueles tempos havia mais gosto do que hoje nas altas regiões.
Gonzaga de Sá disse-me isto certa vez, no largo do Paço, olhando o chafariz do mestre Valentim. Depois continuou:
— Este chafariz é feio, é massudo; mas a esfera armilar que o encima dá-lhe certa grandeza, certa majestade... Mas já foi bonito...
— Quando?
— Quando o mar chegava-lhe aos pés. Ele tinha essa moldura, ou melhor: esse repoussoir, e possuía certa beleza. Eu ainda o conheci assim...
Vinha a noite e ela caiu toda negra sobre nós.
Nós, então, sentimos as nossas almas inteiramente mergulhadas na sombra e os nossos corpos a pedir amor. Calamo-nos e olhamos um pouco as estrelas no céu escuro.
O jardim ia-se povoando de marítimos cansados, e as mulheres, raparigas de condição modesta e ínfima passavam apressadas e desconfiadas.
— Por que razão, Machado, todas as mulheres nesta terra têm medo dos homens, perguntou-me Gonzaga.
— É porque os homens não são bons.
— Eu creio que sim. Aqui, não é a mulher que quer enganar o homem; é este que quer enganar a mulher.
— Penso como o senhor, e a prova está no noticiário dos jornais. São os amantes que roubam das amantes; são os maridos que fazem passar para as suas algibeiras os dotes das mulheres; são os pais que fraudam as legítimas das filhas; são os irmãos que furtam as joias das irmãs; e é o que vem à tona!
— À vista disto, o adultério não vale nada. Vamo-nos.
Saímos do jardim e tratei de ir para a casa escrever umas cartas aos parentes em Minas; e, quando, ao dia seguinte, para enviá-las, entrei no Correio, precisando endireitar um endereço, fui a uma das mesinhas onde se encontram grossas penas e tinta rala. Todas estavam tomadas; fiquei então à espera junto a uma delas. Reparando melhor, verifiquei que o ocupante era Gonzaga de Sá. Não escrevia, olhava alguns selos espalhados sobre a mesa.
— Oh! Senhor Gonzaga de Sá, ande!
— Tu!
— À sua espera.
— Já viste os novos selos? Não te falei ontem em emblemas? Viste?
— Alguns.
— É bom ver. Tenho aqui de 10 réis, 20, 50, 100, 200 e 400.
— O senhor faz coleção?
— Não. Amo os homens ilustres e os selos trazem as efígies de alguns deles. Temos aqui: Aristides Lobo, Benjamin Constant, Pedr’Álvares, Wandenkolk, Deodoro e Prudente.
— Ideia feliz!
— Pena é que, ao lado, não tragam alguns dados biográficos para que os pósteros saibam quem foram; e boas sentenças morais, para edificação dos contemporâneos e dos pósteros.
— A ideia é excelente.
— Teríamos, assim, o Plutarco Brasileiro em franquias postais. Embora, sem isso, provocam reflexões estes selos. Quando olhares em Aristides Lobo, 10 rs., dirás lá contigo: está aí um homem que nasceu para dez réis — o que não aconteceu com o Benjamin que chegou a vintém. Felizardo!
Vá que recebes uma carta urbana. Lá vem Wandenkolk, cor de telha, cem réis. Pensarás de ti para ti — como foi longe!
E não é tudo... Se ao mesmo tempo tivermos um Deodoro, verdoengo, 200 rs., um Prudente, acinzentado, 400 rs., e um Pedr’Álvares, só 50 rs.; e os outros?
Eis aí como estava a pensar sobre os selos, e pensar sobre selos é dos mais modestos propósitos intelectuais. Não te parece!
— De fato.
— Bem! Escreve a tua carta.