Vidas seccas/Fabiano
Fabiano curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aiol um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinario. Não o encontrou, mas suppoz distinguir as pisadas delle na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a oração era forte.
Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciencia tranquilla e marchou para casa. Chegou-se á beira do rio. A areia fofa cançava-o, mas ali, na lama secca, as alpercatas delle faziam chapchap, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no hombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inuteis, mas o vaqueiro, o pae do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.
Chapchap. Os tres pares de alpercatas batiam na lama rachada, secca e branca por cima, preta e molle por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado, procurando na catinga a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquelle estado, com a familia morrendo de fome, comendo raizes. Cahira no fim do pateo, debaixo dum joazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Elle, a mulher e os filhos tinham-se habituado á camarinha escura, pareciam ratos — e a lembrança dos soffrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aiol um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, accendeu-o ao binga, poz-se a fumar regalado.
— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, elle não era um homem: era apenas um cabra occupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azues, a barba e os cabellos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animaes alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fóra os meninos, alguem tivesse percebido a phrase imprudente. Corrigiu-a, murmurando :
— Você é um bicho, Fabiano.
Isto para elle era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer difficuldades.
Chegara naquella situação medonha — e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
— Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cahir morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ella, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e offerecera os seus prestimos, resmungando, coçando os cotovellos, sorrindo afflicto. O geito que tinha era ficar. E o patrão acceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguem o tiraria d’ali. Apparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raizes, estava plantado. Olhou os quipás, os mandacarus e os chiquechiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as barahunas. Elle, sinha Victoria, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados na terra.
Chapchap. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina delle era correr mundo, andar para cima e para baixo, á toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela secca. Achava-se ali de passagem, era hospede. Sim senhor, hospede que se demorava demais, tornava amizade á casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao joazeiro que os tinha abrigado uma noite.
Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabelludas. Fabiano recebeu a caricia, enterneceu-se:
— Você é um bicho. Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animaes. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavallo, grudava-se a elle. E falava uma linguagem cantada, monosyllabica e guttural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Ás vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma lingua com que se dirigia aos brutos — exclamações, onomatopéas. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difficeis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que ellas eram inuteis e talvez perigosas.
Uma das crianças approximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho desejava, reprehendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito inxerido. Se continuasse assim, mettido com o que nao era da conta delle, como iria acabar? Repelliu-o, vexado:
— Esses capetas têm idéas...
Não completou o pensamento, mas achou que aquillo estava errado. Tentou recordar o seu tempo de infancia, viu-se miudo, enfezado, a camisinha encardida e rota, acompanhando o pae no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os filhos, falou de coisas immediatas, procurou interessal-os. Bateu palmas:
— Ecô! ecô!
A cachorra Baleia sahiu correndo entre os alastrados e quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom elles saberem que deviam proceder assim.
Alargou o passo, deixou a lama secca da beira do rio, chegou á ladeira que levava ao pateo. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse apparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquella perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, não seria por culpa delle.
— Ecô! ecô!
Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As crianças divertiram-se, animaram-se, e o espirito de Fabiano se destoldou. Aquillo é que estava certo. Baleia não podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercicio facil — bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a lingua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a licção, pensando na egua que ia montar, uma egua que não fôra ferrada nem levara sella. Havería na catinga um barulho medonho.
Agora queria entender-se com sinha Victoria a respeito da educação dos pequenos. Certamente ella não era culpada. Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panellas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E elles estavam perguntadores, insupportaveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
— Está ahi.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Thomaz da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Thomaz da bolandeira. Porque? Só se era porque lia demais. Elle, Fabiano, muitas vezes dissera: “Seu Thomaz, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Thomaz se estrepa, igualzinho aos outros”. Pois viera a secca, e o pobre do velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por ahi, molle. Talvez já tivesse dado o couro ás varas, que pessoa como elle não podia aguentar um verão puxado.
Certamente aquella sabedoria inspirava respeito. Quando seu Thomaz da bolandeira passava, amarello, sisudo, corcunda, montado num cavallo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Thomaz respondia tocando na beira do chapeo de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com remendos vermelhos.
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imital-o: dizia palavras difficeis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como elle não tinha nascido para falar certo.
Seu Thomaz da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornaes e livros, mas não sabia mandar: pedia. Exquisitice um homem remediado ser cortez. Até o povo censurava aquellas maneiras. Mas todos obedeciam a elle. Ahn! Quem disse que não obedeciam?
Os outros brancos eram differentes. O patrão actual, por exemplo, berrava sem precisão. Quasi nunca vinha á fazenda, só botava os pés nella para achar tudo ruim. O gado augmentava, o serviço ia bem, mas o proprietario descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, e Fabiano ouvia as descomposturas com o chapeo de couro debaixo do braço, desculpava-se e promettia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar auctoridade, gritar que era dono. Quem tinha duvida?
Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contractado, recebera o cavallo de fabrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sahir largaria tudo ao vaqueiro que o substituisse.
Sinha Victoria desejava possuir uma cama igual á de seu Thomaz da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrarial-a, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fóra, e elles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo dum pau.
Olhou a catinga amarella, que o poente avermelhava. Se a secca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que elle se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, succedera o mesmo — annos bons misturados com annos ruins. A desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Elle marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas — ella se avizinhando a galope, com vontade de matial-o.
Virou o rosto para fugir á curiosidade dos filhos, benzeu-se. Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Thomaz da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ella, sentir-se com força para brigar com ella e vencel-a. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sahiria da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem.
— Um homem, Fabiano.
Coçou o queixo cabelludo, parou, reaccendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem: seria aquillo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quasi uma rez na fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estomago. Viveria muitos annos, viveria um seculo. Mas se morresse de fome ou nas pontas dum touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo secco em redor. E o patrão era secco tambem, arreliado, exigente e ladrão, espinhos como um pé de mandacaru.
Indispensavel os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para gado, concertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não callejassem, teriam o fim de seu Thomaz da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estomago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as seccas desapparecessem e tudo andasse direito... Seria que as seccas iriam desapparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Thomaz da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquelle perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia delles.
Alcançou o pateo, enxergou a casa baixa e escura de telhas pretas, deixou atraz os joazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e lizo. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta.
Áquella hora sinha Victoria devia estar na cozinha, acocorada junto á trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com sinha Victoria a respeito da educação dos meninos.