Vidas seccas/O Menino Mais Velho
Deu-se aquillo porque sinha Victoria não conversou um instante com o menino mais velho. Elle nunca tinha ouvido falar em inferno. Extranhando a linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Victoria, distrahida, alludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descripção, encolheu os hombros.
O menino foi á sala interrogar o pae, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
— Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atraz do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a fórma do calçado e bateu palmas:
— Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou á cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe:
— Como é?
Sinha Victoria falou em espetos quentes e fogueiras.
— A senhora viu?
Ahi sinha Victoria se zangou, achou-o insolente e applicou-lhe um cocorote.
O menino sahiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, na beira da lagoa vazia.
A cachorra Baleia acompanhou-o naquella hora difficil. Repousava junto á trempe, cochilando no calor, á espera dum osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupillas negras onde a confiança brilhava. Admittia a existencia dum osso graudo na panella, e ninguem lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. Ás vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.
Naquelle dia a voz estridente de sinha Victoria e o cascudo na cabeça do menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detraz do pilão, fazendo-se miuda entre combucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpoz a janella baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou por baixo do pé de turco, topou o camarada chorando, muito infeliz, á sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não estava alegre, mas tambem não podia sentir uma dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, offegando, chamando a attenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento delle era inutil.
O pequeno sentou-se, accommodou nas pernas a cabeça da cachorra, poz-se a contar-lhe baixinho uma historia. Tinha um vocabulario quasi tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da secca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a lingua, com movimentos faceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadellinha era o unico vivente que lhe mostrava sympathia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contacto agradavel, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do borralho.
Continuou a acaricial-a, approximou do focinho della a cara enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranquillos.
Estivera mettido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de barro, lambusando-se. Deixara o brinquedo e fôra interrogar sinha Victoria. Um desastre. A culpada era sinha Terta, que na vespera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano, soltara uma palavra exquisita, chiando, o canudo do cachimbo preso nas gingivas banguelas. Elle tinha querido que a palavra virasse coisa e ficara desapontado quando a mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso resingara, esperando que ella fizesse o inferno transformar-se.
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pateo, o bebedouro — mundo onde existiam seres reaes, a familia do vaqueiro e os bichos da fazenda. Alem havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quasi imperceptiveis na catinga, moitas e capões de mato, impenetraveis bancos de macambira — e ahi fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, ás vezes desappareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem duvida em toda a parte forças maleficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protectora segurava-o na sella, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.
Nem sempre as relações entre as criaturas haviam sido amaveis. Antigamente os homens tinham fugido á toa, cançados e famintos. Sinha Victoria, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o bahu de folha na cabeça; Fabiano levava no hombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costellas atravez do pêlo escasso. Elle, o menino mais velho, cahira no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de repente, os chiquechiques e os mandacarus haviam desapparecido. Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.
Naquelle tempo o mundo era ruim. Mas depois se concertara, para bem dizer as coisas ruins não tinham existido. No girau da cozinha arrumavam-se mantas de carne secca e pedaços de toucinho. A sede não atormentava as pessoas, e á tarde, aberta a porteira, o gado miudo corria para o bebedouro. Ossos e seixos transformavam-se ás vezes nos entes que povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de macambira.
Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as syllabas, imitava os berros dos animaes, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéa de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decoral-a e transmittil-a ao irmão e á cachorra. Baleia permaneceria indifferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.
— Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com sinha Victoria. Se ella houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Victoria impunha-se, auctoridade visivel e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer auctoridade invisivel e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencel-o dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturaes quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga dellas era a causa unica dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os paes antes de se dirigir a elles. Animara-se a interrogar sinha Victoria porque ella estava bem disposta. Explicou isto á cachorrinha com abundancia de gritos e gestos.
Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ella os pontapés eram factos desagradaveis e necessarios. Só tinha um meio de evital-os, a fuga. Mas ás vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no trazeiro — sahia latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder cannelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se. Effectivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.
O menino beijou-lhe o focinho humido, embalou-a. A alma delle poz-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira. Fabiano dizia que na serra havia tocas de sussuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas.
Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou nas figurinhas abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe trouxe a lembrança da palavra infeliz. Diligenciou afastar do espirito aquella curiosidade funesta, imaginou que não fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo.
Levantou-se. Via a janella da cozinha, o cocó de sinha Victoria, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se debaixo de outra arvore, avistou a serra coberta de nuvens. Ao escurecer a serra misturava-se com o ceo e as estrellas andavam em cima della. Como era possivel haver estrellas na terra?
A cadellinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e accommodou-se.
Como era possivel haver estrellas na terra?
Entristeceu. Talvez sinha Victoria dissesse a verdade. O inferno devia estar cheio de jararacas e sussuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca.
Apesar de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da presença de sinha Victoria. Repetiu que não havia acontecido nada e tentou pensar nas estrellas que se accendiam na serra. Inutilmente. Áquella hora as estrellas estavam apagadas.
Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os dedos finos, poz-se a fazer no chão desenhos mysteriosos. Para que sinha Victoria tinha dito aquillo?
Abraçou a cachorrinha com uma violencia que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se no chão. Farejando a panella, franzia as ventas e reprovava os modos extranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a deixava.
O menino continuava a abraçal-a. E Baleia encolhia-se para não magual-o, soffria a caricia excessiva. O cheiro delle era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graudo, cheio de tutano e com alguma carne.