Vidas seccas/Soldado Amarello
Fabiano metteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa secca, torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado, o aiol cheio a tiracollo, uma porção de lategos e chocalhos pendurados num braço. O facão batia nos tocos.
Espiava o chão como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da egua russa e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A egua russa, com certeza. Deixara pêlos brancos num tronco de angico. Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não aconteceria se se tratasse dum cavallo.
Fabiano ia desprecatado, observando esses signaes e outros que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia farejar o solo — e a catinga deserta animava-se, os bichos que ali tinham passado voltavam, appareciam-lhe diante dos olhos miudos.
Seguiu a direcção que a egua havia tomado. Andara cerca de cem braças quando o cabresto de cabello que trazia no hombro se enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, poz-se a cortar os quipás e as palmatorias que interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se percebendo um rumor de garranchos, voltou-se e deu de cara com o soldado amarello que, um anno antes, o levara á cadeia, onde elle aguentara uma surra e passara a noite. Sem reconhecel-o, baixou a arma. Aquillo durou um segundo. Menos: durou uma fracção de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarello teria cahido esperneando na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que elle fez teria sido bastante para um homicidio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrario. A lamina parou de chofre, junto á cabeça do intruso, bem em cima do bonnet vermelho. A princípio o vaqueiro não comprehendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquillo era um homem e, coisa mais grave, uma auctoridade. Sentiu um choque violento, deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se para um lado e para outro.
O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os musculos afrouxavam. Realmente não quizera matar um christão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sella. Alguma coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa coisa que ia partindo a cabeça do amarello. Se ella tivesse demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não demorara. A certeza do perigo surgira — e elle estava indeciso, de olho arregalado, respirando com difficuldade, um espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo do facão mal seguro entre os dedos humidos.
Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se poz a rir. Medo daquillo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Elle não era dunga na cidade? não pisava os pés dos matutos, na feira? não botava gente na cadeia? Semvergonha, mofino.
Irritou-se. Porque seria que aquelle safado batia os dentes como um caitetu? Não via que elle era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A idéa do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquillo nem precisava facão, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os lategos, chegou a mão esquerda, grossa e cabelluda, á cara do policia, que recuou e se encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o infeliz teria cahido.
Fabiano pregou nelle os olhos ensanguentados, metteu o facão na bainha. Podia matal-o com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquillo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inoffensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contrahia-se, medonho, mais feio que um focinho. Hein? estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguem. Porque? Suffocava-se, as rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azues abriam-se demais, numa interrogação dolorosa.
O soldado encolhia-se, escondia-se por detraz da arvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas callosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossivel readquirir aquelle instante de inconsciencia. Repetia que a arma era desnecessaria, mas tinha a certeza de que não conseguiria utilizal-a — e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a colera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.
A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se — e Fabiano estacou desageitado, como um pato, o corpo amollecido.
Grudando-se á catingueira, o soldado apresentava apenas um braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar a idéa absurda:
— Como a gente pensa coisas bestas!
Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava frio e tinha lembranças insupportaveis. Era um sujeito violento, de coração perto da guela. Não, era um cabra que se arreliava algumas vezes — e quando isto acontecia, sempre se dava mal. Naquella tarde, por exemplo, se não tivesse perdido a paciencia e xingado a mãe da auctoridade, não teria dormido na cadeia depois de aguentar zinco no lombo. Dois excommungados tinham-lhe cahido em cima, um ferro batera-lhe no peito, outro nas costas, e elle se arrastara tiritando como um frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa? O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os feirantes que se apertavam em redor: “Toca pra frente”. Depois surra e cadeia, por causa duma tolice. Elle, Fabiano, tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reuna em cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão. Natural, xingar a mãe duma pessoa não vale nada, porque todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de maltratar ninguem. Um dicterio sem importancia. O amarello devia saber isso. Não sabia. Sahira-se com quatro pedras na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. “Desafasta”.
Deu um passo para a catingueira. Se elle gritasse agora “Desafasta”, que faria o policia? Não se afastaria, ficaria collado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe delle. Mas então... Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquella coisa arreada e achacada mettia as pessoas na cadeia, dava-lhes pancada. Não entendia. Se fosse uma criatura de saude e muque, estava certo. Emfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquillo... Soltou uns grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se elle tinha receio de empregar typos direitos. Aquella cambada só servia para morder as as pessoas inoffensivas. Elle, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada nelles? Não iria.
Approximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do policia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o punhal inuteis. Esperou que elle se mexesse. Era uma lazeira, certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantar-lhe o salto da reuna em cima da alpercata. Desejava que elle fizesse isso. A idéa de ter sido insultado, preso, moido por uma criatura mofina era insupportavel. Mirava-se naquella covardia, via-se mais lastimoso e miseravel que o outro.
Baixou a cabeça, coçou os pêlos ruivos do queixo. Se o soldado não puxasse o facão, não gritasse, elle Fabiano seria um vivente muito desgraçado.
Devia sujeitar-se aquella tremura, áquella amarellidão? Era um bicho resistente, callejado. Tinha nervo, queria brigar, mettera-se em espalhafatos e sahira de crista levantada. Recordou-se de luctas antigas, em danças com femea e cachaça. Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Ahi sinha Victoria começara a gostar delle. Sempre fôra reimoso. Iria esfriando com a idade? Quantos annos teria? Ignorava, mas certamente envelhecia e fraquejava. Se possuisse espelhos, veria rugas e cabellos brancos. Arruinado, um caco. Não sentira a transformação, mas estava-se acabando.
O suor humedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo duma peste que se escondia tremendo? Não era uma infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim molle e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro individuo, muito differente do Fabiano que levantava poeira nas salas de dança. Um Fabiano bom para aguentar facão no lombo e dormir na cadeia.
Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquillo nem era facão, não servia para nada.
Ora não servia!
— Quem disse que não servia?
Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o quengo dum semvergonha. Agora dormia na bainha rota, era um troço inutil, mas tinha sido uma arma. Se aquella coisa tivesse durado mais um segundo, o policia estaria morto. Imaginou-o assim, cahido, as pernas abertas, os bugalhos apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabellos, formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia arrastal-o para dentro da catinga, entregal-o aos urubus. E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, socegado, na cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam criação. Era um homem, evidentemente.
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do policia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que supprimir aquelle doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa duma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacillou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapeo de couro.
— Governo é governo.
Tirou o chapeo de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarello.