Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa)/IV

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A continuar a marcha se dispunha
O Herói, que um vivo zelo testemunha
Em todos que os seguem; repartidos
Aqueles a quem são mais conhecidos
Os Sertões, pela margem se espalhavam
À direita do Rio e se empregavam

Em socavar a terra, em diligência
Do metal de que têm verde experiência.

Tinha Pegado adiantado o passo
Algum tanto dos mais, e o corpo lasso
Junto a um lago, que sobre uma campina
Se espraia e quebra as ondas, brando inclina,
Procurando em um tronco em parte encosto
Ao ombro, e alívio à cabeça, e rosto.
Estende-se na areia e reclinado
Se vê apenas, quando (oh! inesperado
Prodígio, que o surprende!) eis que mover-se
Pouco a pouco se admira, ora estender-se,
Ora encurvar-se o formidável tronco.
Levanta-se assustado e logo um ronco
Ouve medonho, que de todo o rende;
A causa do prodígio não entende,
Não pensa, não discorre o bom Pegado;
Grita aos índios atônito, pasmado,
E o tronco então com rapto mais furioso
Se arroja desde a praia e busca ansioso
Sepultar-se no lago, o seio abrindo
Das águas, que co'a cauda vai ferindo.
Não de outra sorte sobre os grossos mares,
Que do Antártico Céu cobrem os ares,
De mergulho se vê buscar a areia
O pardo e negro monstro da baleia,
Quando do arpão do pescador ferida
Tinge as ondas de sangue e, submergida,
Ao fundo leva a barbatana dura.

Vêm os índios chegando, e entre a escura
Sombra do lago inda estão vendo o rasto
Da fera, que conhecem; tanto ao pasto
Da presa que avistou Leão não corre,

Como um e outro Tape se socorre
Dos pés nadantes, e nas mãos levando
O pronto ferro, o tronco vão rasgando
Co'as cortadoras facas; já de todo
Boiando o fazem vir; por arte e modo
Não pensado o arrojam sobre a praia.
De curioso ardor cada um se ensaia
Em arrancar-lhe das entranhas tudo
Quanto a fome tragara; absorto e mudo,
Pegado está notando a maravilha.
Três veados comera, enquanto trilha
A margem da lagoa; estão inteiros
No ventre e ainda em pêlo os dous primeiros.
Riem-se os índios de Pegado, e o riso
Tem ao Mancebo então mais indeciso,
Vendo que novo ali não conhecera
Que é o Sucuriú aquela fera,
De quem ouvido aos nacionais havia
Que um tronco na grandeza parecia.

Mas não foi tão debalde este portento,
Que olhando para o sítio, aonde assento
Fizera o monstro, o chão não descobrisse
Inda mal apagado, e não se visse
Um vestígio de humana sepultura.
Manda cavar Pegado a terra dura,
E dentro (oh! pasmo!) os ossos encontrava
De um cadáver, a quem assinalava
A cruz que tem de Cristo e lhe servira
De hábito, ou mortalha; então se admira
Mais cada um; e aviso ao Herói dando,
Todos ao mesmo passo vão cercando
Em roda a sepultura: Borba chega,
Afirma que é Rodrigo e logo alega

Como dos índios seus à pressa fora
Sepultado, fugindo os mais; e agora
Reconhece o sinal na Cruz bendita,
O autêntico padrão mais acredita
Vizinho um tronco, à mão cortado, aonde
De ordem do mesmo Borba corresponde
Outra Cruz à memória deste oficio.
Celebrou-se o devoto sacríficio
Junto ao sepulcro; e as últimas piedades,
Pela mão de Faria, as saudades
Temperaram do Morto, consoladas
As memórias de sangue inda banhadas.
Urnas fastosas, que cobris no Egito
Heróis famosos, sobre vós escrito
Viva embora o epitáfio, que em memória
Dos Ptolomeus inda respira a glória!
Sobra ao bom General, sobra a Rodrigo
Da nua areia o mísero jazigo;
A vida pelo Rei sacrificada
Basta a deixar a sepultura honrada!

Magoado deste objeto se cansava
O Herói, e já partir dali pensava,
Mas o deteve e lhe cortou o passo,
Convalescido da ferida, Argasso
(Este era o nome do índio); em companhia
Vinha da sentinela, a quem pedia
Que à presença do Herói o conduzisse;
Como acaso a seu lado então não visse
A Garcia, falou mais animado:
De traidor e aleivoso sou culpado,
Magnânimo Albuquerque; ouve-me, atende,
Saberás que o meu braço não te ofende,
Nem se conspira contra os teus; a dura

Condição de uma bárbara, que jura
Não ser minha, apesar dos meus desvelos,
Meu coração encheu tanto de zelos,
Que imaginei na morte de Garcia
Vingar o meu desprezo, e a tirania
Castigar do meu bem: fui desgraçado,
Inda não me arrependo do passado.

Albuquerque lhe diz que exponha a história
De seu furioso amor e que em memória
Traga todo o sucesso; ele, mordendo
Raivoso os beiços e mil ais vertendo,
Não posso, diz, não posso em tudo ou parte
Dizer-te o que padeço; o esforço, a arte
Vos sobra a vós; em mim obra a rudeza,
Que mais desculpa a natural fraqueza.

Amo a bela Indiana, a linda Aurora,
Que não daqui muito distante mora:
Prisioneira em meu braço a vim trazendo
Lá desde o Paraíba, e discorrendo
Que entre os meus Monaxós se renderia,
Só o nome lhe lembra de Garcia.
Neágua, a Mãe, desde o Pori roubada,
Conheceu-me e me informa da chegada
Deste bom Cavalheiro; não sabia
Que o meu curioso ardor se dirigia
A mais árduo projeto; tento a morte,
E em despojo cuidei do braço forte
Por triunfo levar à minha amada
A cabeça do tronco separada.

Assim fala arrogante; o Herói piedoso
Quer dar provas do peito generoso:
Chama a Garcia; informa-se do resto,

E por voz de Neágua é manifesto
O vário giro da amorosa história.
Argasso (diz), da portuguesa glória
Tu não sabes o timbre; a Indiana bela
Não disputa Garcia, e a tua estrela
Não queiras contrastar por modo estranho;
Ele ta cede, eu próprio te acompanho,
E contigo pertendo ver a Aldeia,
Onde ela vive e o teu amor te enleia.

Que vós partais, Senhor, eu não consinto,
Disse Garcia; ao meu valor distinto,
Ao meu zelo católico era injúria
Saber-se que a conter a minha fúria
Necessária se fez vossa presença;
A Argasso desde já perdôo a ofensa,
E quero que conheça aos Portugueses;
Com ele partirei, e as suas vezes
Sustentando ao favor da bela Indiana,
Farei que ele ditoso, e mais humana
Ela, se abrasem no gostoso alento
De um santo, de um perpétuo sacramento.

Fia de mim (ao índio se tornava),
Que a mesma que já viste minha escrava,
Há de ver-me a seus pés por ti rogando;
Nem de ti outro prêmio então demando
Mais que em uso melhor convertas logo
Esse tão louco, como ilustre fogo,
Que alimentas no peito; serás nosso
Amigo e não escravo, e quanto eu posso,
Nobre rival, te digo desde esta hora,
Neágua é tua, é tua a minha Aurora.

Ó tu, Ciro famoso, se pudeste
Eternizar teu nome, quando deste

A formosa Pantéia ao nobre Araspe;
Se na dádiva bela de Campaspe
Ao namorado Apeles, glória tanta
Te adquire, ó Macedônio, a voz que canta
Teu nome inda por toda a redondeza,
Vê quanto mais se avança esta grandeza,
Com que de uma paixão a rebeldia
Doma, e castiga o esplêndido Garcia.

Convém o Herói e espera que domado
O Monaxós, e à Religião chamado
Se veja por tal modo; do projeto
Se faz parcial Faria; turvo o aspecto
O Índio tem a tanta ação, nem sabe
Como no coração de um homem cabe
Subjugar tão valente a paixão dura,
Que inspira amor. Neágua se procura
Unir à companhia; as outras ficam
Entregues ao favor dos que se aplicam
A povoar entanto aquela margem.
Despedem-se; e Albuquerque, pela vargem
Que ali se estende, a marcha ao centro guia;
De Borba tendo pronta a companhia,
E dos mais, parte em tropas do Gentio,
E das Velhas o nome impõe ao Rio.