Violões Que Choram...
VIOLÕES QUE CHORAM...
Ah! plangentes violões dormentes, mornos,
Soluços ao luar, choros ao vento...
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Boccas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azues da Phantasia bordo,
Vou constellando de visões ignotas.
Subtis palpitações á luz da lua,
Anceio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ageis que percorrem
Cordas e um mundo de dolencias geram,
Gemidos, prantos, que no espaço morrem...
E sons soturnos, suspiradas magoas,
Magoas amargas e melancolias,
No sussurro monotono das agoas,
Nocturnamente, entre ramagens frias.
Vozes velladas, velludosas vozes,
Volupias dos violões, vozes velladas,
Vagam nos velhos vortices velozes
Dos ventos, vivas, vans, vulcanisadas.
Tudo nas cordas dos violões echoa
E vibra e se contorce no ar, convulso...
Tudo na noite, ludo clama e vôa
Sob a febril agitação de um pulso.
Que esses violões nevocntos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funereo,
Para onde vão, fatigadas do sonho,
Almas que se abysmaram no mysterio.
Sons perdidos, nostalgicos, secretos,
Finas, diluidas, vaporosas brumas,
Longo desolamento dos inquietos
Navios a vagar á flor d’espumas.
Oh languidez, languidez infinita,
Nebulosas de sons e de queixumes,
Vibrado coração de ancia exquisita
E de gritos felinos de ciumes!
Que encantos acres nos vadios rotos
Quando em toscos violões, por lentas horas,
Vibram, com a graça virgem dos garotos,
Um concerto de lagrimas sonoras!
Quando uma voz, em tremolos, incerta,
Palpitando no espaço, ondula, ondeia,
E o canto sobe para a flor deserta,
Soturna e singular da lua cheia.
Quando as estrellas magicas florecem,
E no silencio astral da Immensidade
Por lagos encantados adormecem
As pallidas nymphéas da Saudade!
Como me embala toda essa pungencia,
Essas lacerações como me embalam,
Como abrem azas brancas de clemencia
As harmonias dos violões que falam!
Que graça ideal, amargamente triste,
Nos languidos bordões plangendo passa...
Quanta melancolia de anjo existe
Nas Visões melodiosas dessa graça...
Que céo, que inferno, que profundo inferno,
Que ouros, que azues, que lagrimas, que risos,
Quanto magoado sentimento eterno
Nesses rythmos tremulos e indecisos...
Que anhelos sexuaes de monjas bellas
Nas ciliciadas carnes tentadoras,
Vagando no recondito das cellas,
Por entre as ancias dilaceradoras...
Quanta plebéa castidade obscura
Vegetando e morrendo sobre a lama,
Proliferando sobre a lama impura,
Como em perpetuos turbilhões de chamma.
Que procissão sinistra de caveiras,
De espectros, pelas sombras mortas, mudas...
Que montanhas de dor, que cordilheiras
De agonias asperrimas e agudas.
Véos neblinosos, longos véos de viuvas
Enclausuradas os feraes desterros,
Errando aos sóes, aos vendavaes e ás chuvas,
Sob abobadas lugubres de enterros;
Velhinhas quêdas e velhinhos quedos,
Cegas, cegos, velhinhas e velhinhos,
Sepulchros vivos de senis segredos,
Eternamente a caminhar sosinhos;
E na expressão de quem se vai sorrindo,
Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntos
E um lenço preto o queixo comprimindo,
Passam todos os lividos defuntos...
E como que ha hystericos espasmos
Na mão que esses violões agita, largos...
E o som sombrio é feito de sarcasmos
E de somnambulismos e lethargos.
Phantasmas de galés de annos profundos
Na prisão cellular atormentados,
Sentindo nos violões os velhos mundos.
Da lembrança fiel de aureos passados;
Meigos perfis de tysicos dolentes
Que eu vi dentre os violões errar gemendo,
Prostituidos de outr’ora, nas serpentes
Dos vicios infernaes desfallecendo;
Typos intonsos, esgrouviados, tortos,
Das luas tardas sob o beijo niveo,
Para os enterros dos seus sonhos mortos
Nas queixas dos violões buscando allivio;
Corpos frageis, quebrados, doloridos,
Frouxos, dormentes, adormidos, langues,
Na degenerescencia dos vencidos
De toda a geração, todos os sangues;
Marinheiros que o mar tornou mais fortes,
Como que feitos de um poder extremo
Para vencer a convulsão das mortes,
Dos temporaes o temporal supremo;
Veteranos de todas as campanhas,
Enrugados por fundas cicatrizes,
Procuram nos violões horas estranhas,
Vagos aromas, candidos, felizes.
Ebríos antigos, vagabundos velhos,
Torvos despojos da miseria humana,
Tem nos violões secretos Evangelhos,
Toda a Biblia fatal da dor insana.
Enxovalhados, tabidos palhaços
De carapuças, mascaras e gestos
Lentos e lassos, lubricos, devassos,
Lembrando a florecencia dos incestos;
Todas as ironias suspirantes
Que ondulam no ridiculo das vidas,
Caricaturas tetricas e errantes
Dos malditos, dos réos, dos suicidas;
Toda essa labyrinthica nevrose
Das virgens nos romanticos enleios;
Os occasos do Amor, toda a chlorose
Que occultamente lhes lacera os seios;
Toda a morbida musica plebéa
De requebros de faunos e ondas lascivas;
A langue, molle e morna melopéa
Das valsas alanceadas, convulsivas;
Tudo isso, n’um grotesco desconforme,
Em ais de dor, em contorsões de açoites,
Revive nos violões, acorda e dorme
Através do luar das meias-noites!