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Violeiros do norte (1925)/“De rebus pluribus...”

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“DE REBUS PLURIBUS ...”


Os versos de amor não são o forte dos cantadores. Quando dois cantadores se defrontam, o que é inevitável é o desafio bulhento e arrogante em que varonilmente põem ambos em prova os proprios dons de improvisação. Por isso foi que Ferino Jurema disse em carta a Francisco Romano:

Fui chegando em Agua Doce,
Encontrei Mané Fulô,
Coitadinho! só sabia
De cantiguinhas de amor...
Eu não aggravei a elle
E nem elle me aggravou...

E’ preciso que o cantador não tenha um rival com quem se bata, para que se entregue ao descante de romances amorosos ou de simples trovas, o que mormente acontece si no auditorio se acham mulheres. E’ o dengue das morenas, é a faceirice das caboclas que ameiga o estro masculo dos violeiros:

Eu canto, há dezoito annos,
Há vinte toco viola...
Si vejo mulher bonita,
Eu fico todo pachola:
Fico que nem passarinho
Que vê melão em gaiola...

Quando, curioso de conhecer o folklore parahybano, deliberei percorrer de leste a oeste a Parahyba, para o que entrei em Cabedello c sai em Cajazeiras, tive de me demorar alguns dias na capital do Estado. Vi-me, então, presenteado com uma collecção de quadrinhas populares pelo jovem jornalista Adhemar Vidal, redactor d’“A União”. Vezes sem conta, tive ensejo de verificar serem effectivamente populares todas as quadras prefaladas, muitas das quaes, entretanto, não eram ineditas e outras já eram de meu conhecimento. Pertenciam a essa collectanea as quadrinhas abaixo transcriptas:

Antão, meu querido Antão,
Me responde já e já:
Perdeste teu coração
No bairro de Tambiá?

Menina, quando eu te vi
Na rua, á primeira vez,
Botei joelhos em terra,
Bemdizendo a quem te fez.

Meu amor, na despedida.
Nenhuma palavra deu:
Botou joelhos em terra,
Ficou a chorar mais eu...

[1]

Descança teu coração,
Confia no meu amor:

Página:Violeiros do norte (1925).djvu/45 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/46 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/47 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/48 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/49 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/50 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/51 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/52 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/53 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/54 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/55 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/56 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/57 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/58 Página:Violeiros do norte (1925).djvu/59

Negra damnada,
Da cabeça de escapole,
Quero ver bolir no folle
P’r’o ferreiro trabalhar...

Peixe piaba,
Tubarão, baleia, serra,
Vou-me embora desta terra,
Vou tarrafiar no mar...

Papa-capim,
Guriatã, rola-gallega,
Eu pisei no pé da nêga,
Fiz a nêga se damnar...

E’ manga espada,
E’ manga rosa, é manga rôxa,
Nunca fiz a minha trouxa
Pra poeta desmanchar...

Lá vem o home
Do bahú das miudeza!
Quem quer comprar boniteza:
Carrité, linha e dedá?...


Na Parahyba existem varias emprezas editoras de fasciculos que contêm versos da musa sertaneja. Na “Livraria Editora”, de Pedro Baptista, localizada na capital do Estado, á rua Maciel Pinheiro, 160, fui encontrar enorme variedade desses folhetos. Muitos delles já os adquirira eu, mesmo no Ceará, pois que são distribuidos á larga pelos differentes Estados vizinhos.

Fiz, porém, uma acquisição valiosa que foi a desta historia, em versos, de Antonio Baptista Guedes: [2]

Me contava um sertanejo,
Morador em Cabrobó,

Na terra delle se deu
Um facto que causou dó:
Tres irmãs que pretenderam
Se casar com um moço só.

Eram filhas de um casal
De velhos “bem arrumado
(Como se diz no sertão)
De dinheiro, terra e gado”,
E cada qual que tivesse
Um nome mais delicado.

A mais velha pelo nome
De Rosa Dhalia accudia,
E pelo de Rosa Amelia
A segunda respondia,
A caçula e mais bonita
Chamava-se Flor do Dia.

As moças tinham um tio
Que era dellas vizinho
E tinha apenas um filho,
Conhecido por Nequinho,
Mas o diabo é que ellas tres
Gostavam desse priminho...

Um bello dia, ellas tres,
Conversando em casamento,
Na maior intimidade,
Como pedia o momento,
Cada uma, de per si,
Foi dizendo o seu intento.

Disse Rosa Dhalia: — “Eu
Só me caso com Nequinho,
Porque, desde pequenina,
Acho elle bonitinho...
Dos moços que tenho visto
Elle, pra mim, está sosinho!”

Rosa Amelia interrompeu-a,
Dizendo: — “Isto é um castigo!
Que pensamento infeliz,
Minha irmã, tú tens comtigo!
Pensa logo noutro moço,
Nequinho casa é commigo!”

Então, bradou Flor do Dia:
— “Isto não! Nequinho é meu,
Que elle, noite de S. João,
Em sonho me appareceu
E, depois disto, meu tio
A meu pae já prometteu...”

Falava tudo a um tempo,
Azedou-se a discussão,
Passaram a jogar murro,
Tapa, dentada, empurrão,
Até que chega a mãe dellas
Com uma peia na mão.

A velha, chegando, viu
As tres moças agarradas,
Falou, não foi attendida,
Inda deu umas peiadas
E gritou: — “Venha, meu velho,
As menina estão damnadas!”

Com a presença do velho
Ellas se apartaram, então,
E todas tres, a um tempo,
Disseram que a questão
Foi devido a casamento,
Cada qual tinha razão...

Disse o velho para a velha:
— “Não deixe isto vir a lume,
Castigue esta canalha,

Acabe este mau costume,
Pois, si uma quer se casar,
Briga o resto com ciume.”

Chama a velha á Rosa Dhalia,
Dizendo: — “Venha apanhar,
Que você inda não tem
Idade para casar
Nem casamento é “futuro”...
Apanhe e vá trabalhar.”

Rosa Dhalia disse á velha:
— “Seu pensamento é errado...
Si casar fosse ruim,
Mamãe não tinha casado
E nem queria me dar,
Sem se lembrar do passado...”

A velha disse: — “Atrevida,
Tú me falas deste geito?
Eu me casei, é verdade,
Porque era de direito,
Mas nunca tive ciume,
Não fiz o que tú tens feito!”

Rosa Dhalia, malcriada
Como era, respondeu:
— “Minha mãe pode me dar,
Mas a sua não lhe deu...
Talvez que a Senhora, em moça,
Fosse peior do que eu!”

Deixa a velha a Rosa Dhalia
E a Rosa Amelia pegou,
Esta disse: — “Minha mãe
Me dá, mas não apanhou...
Si casar era ruim,
Pra que é que Mamãe casou?”

Disse a velha: — “Eu me casei,
Mas nunca andei com namoro,
E você, não só namora,
Como me diz desaforo...
Cabrita, ou tú me respeita,
Ou vês eu tirar-te o couro!”

A moça disse: — “Mamãe,
Embora eu apanhe e chore,
Digo que não vejo moça
Que ame que não namore!
Talvez que só minha mãe
Seja quem isso iguinore... ”

Chama a velha a Flor do Dia,
Dizendo: — “Venha apanhar!”
Ella disse: — “Minha mãe
Não tem razão pra me dar:
Muito mais fez a Senhora,
Que até fugiu pra casar...”

A velha disse: — “Atrevida,
Tú larga de tanta affronta:
Eu fugi e me casei,
Mas não é de tua conta!
O damnado do namoro
Te faz malcriada e tonta.”

A moça disse: — “Mamãe,
Quem ama — ciume tem!
Querem tomar o meu noivo,
Mas isso não me convem:
Embora eu morra na peia,
Eu não dou elle a ninguem!”

A velha dava e dizia:
— “Deixa de me responder!
Eu não sou tua parceira,

Tú bem que deves saber...
Eu nunca tive ciume,
Como é que tú queres ter?”

A moça disjse: — “A Senhora
Me dá e me faz censura,
Mas eu bem sei que Mamãe
Tem ciume e é com fartura..
Ciume em moça se soffre,
Em velha ninguem atura!”

Emfim retirou-se a velha
Enraivecida e possessa,
E cada uma das moças
Fez, então, uma promessa
Aos santos para casar
Com Nequinho, a toda pressa.

Pediu a mais velha ás almas:
— “Si os merecimentos vossos
Quebrarem das minhas manas
Aquelles damnados róços
E si eu casar com Nequinho,
Vos rezo dez Padrenossos!”

A segunda, de joelhos,
Disse: — “São Sebastião,
Retirae de minhas manas
Tão infeliz pretenção,
Casae a mim com Nequinho
Que eu vos garanto um tostão!”

A mais moça e mais bonita
Fez sua prece tambem,
Prometteu a Santo Antonio
Que lhe daria um vintem
Para casar com Nequinho
E os Anjos dizer Amém...

Fizeram, á noite, as promessas...
No outro dia, cedinho,
Ouviram ladrar um cão,
Olharam para o caminho,
Avistaram uma pessoa:
Era o tal primo Nequinho.

Chegou Nequinho na casa,
Entrou, tomou a benção
E começou com os velhos
Bonita conversação,
Depois perguntou á velha:
— “Minhas prima onde é que estão?”

Entra a velha e diz ás filhas,
Já chaleirando um pouquinho:
“Meninas, vão para a sala
Cumprimentar o Nequinho
E conversem lá com elle
Que o meu velho está sosinho.”

Ahi as tres se enfeitaram
E vieram para fora
E na palestra como primo
Passaram mais de uma hora,
Cada uma em si dizia:
— “Eu serei tua Senhora...”

Rosa Dhalia conversava
E Rosa Amelia sorria,
O primo dava attenção
Mas porém não se esquecia
De olhar para a formosura
Da priminha Flor do Dia.

Quando Nequinho ficou
Só com o tio e a tia,
Aproveitou o ensejo

E disse que pretendia
Pedir-lhes em casamento
A mão da tal Flor do Dia.

O velho disse: — “Menino,
O teu pedido é acceito...
Por mim e por tua tia,
Que pensa do mesmo geito,
Por nós-dois, há muito tempo,
Isso já se tinha feito!”

Nequinho disse: “Meu tio,
Si eu não fiz isso mais cedo
Foi só para os faladores
Não andarem com enredo...
Eu quero que até p’r’as primas
Se guarde disso segredo!”

A velha, então, com cautela
Disse só á Flor Do Dia
As outras desconfiaram
Que fosse o que fosse havia,
E de casar com Nequinho.
Uma só não se esquecia.

Os velhos só convidaram
As pessoas mais amigas,
Dizendo: — “Na nossa casa,
Conforme praxes antigas,
Nosso compadre Vigario
Irá fazer desobrigas.”

Nas tres irmãs se notava
Perfeito contentamento
E, depois de confessadas,
Riam-se, a qualquer momento,
Porém só a Flor do Dia
Sabia do casamento.

Rosa Dhalia e Rosa Amelia,
Da sala se retirando
E, pouco tempo depois,
De novo á sala voltando,
Encontraram Flor do Dia
Com Nequinho se casando.

Alli, possessas de raiva,
Entraram p’r’a camarinha,
Dizendo a mais velha: — “Eu
Tive uma sorte mesquinha!”
Disse a outra: — “Só você?
Diabos leve a sorte minha!”

Rosa Dhalia, muito irada,
Pela promessa que fez,
Disse: — “ô almas do diabo,
Não rezo mais pra vocês,
Meu gosto é que para o Inferno
Vão-se todas duma vez!”

Rosa Amelia, blasphemando,
Dizia: — “E’ tôlo o christão
Que acredita e faz promessa
Ao tal de Sebastião...
O diabo é quem gasta mais
Com tal desgraça um tostão!”

Combinaram, então, as duas,
Já que eram desgraçadas,
De ambas num laço só
Irem morrer abraçadas:
Os Santos não as valiam,
Iam morrer enforcadas.

Como de facto, ellas duas
Em uma tira de couro
Puzeram termo á existencia,

Arrenegando o namoro...
A Flor do Dia casou,
Mas findou-se a festa em choro.

Contou-me um velho este caso
Que jurou ser verdadeiro,
O mesmo velho ensinava:
— “Quem quer se casar ligeiro
Faz promessa a Santo Antonio
Que um vintem não é dinheiro... ”

Essa poesia eu a ouvi, tempos depois, cantada no Recife pelo captador negro João Catingueira, por occasião de um serão de letras matutas na residência do Dr. Samuel Hardman, Secretario da Agricultura de Pernambuco. E apurei, ulteriormente, que é uma imitação de “A valentia e a paixão de quatro moças”, historia versificada pelo fallecido poeta popular Antonio da Cruz.


Utilissimas me foram as visitas á “Livraria Editora”, de Pedro Baptista. Tive, ali, a surpreza de verificar que a poesia “O Brasil em Guerra”, inserta no meu livro “Cantadores” e que João Mendes de Oliveira, o cantador de Juazeiro, me recitára como propria, figurava num folheto como sendo da lavra de João Martins de Athayde. Mais: o romancete “O Capitão do Navio”, cujo autor o velho Anselmo Vieira de Souza não me soubera dizer quem tinha sido, li-o tambem como sendo da autoria do mesmissimo João Martins de Athayde. O cego Symphronio Martins já me dissera, porém, que “O Capitão do Navio” era “coisa da cabeça” de Leandro Gomes de Barros e não de João Martins de Athayde...

Feitas estas necessarias declarações em honra do suum cuique tribuere, menciono, a seguir, duas glosas de João Martins de Athayde:

Poeta aqui perde a fama,
Dá-lhe gafeira que entreva

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Notas

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  1. Variantes portuguezas:

    Meu amor, na despedida,
    Nem um só ai poude dar:
    Apertou-me muito ao peito
    E depois poz-se a chorar.

    Meu amor, na despedida
    Nem uma fala me deu:
    Quiz chorar, ficou afflicto,
    Quiz falar, emmudeceu.

  2. O autor voltará a comentar sobre esta poesia no capítulo A religião na poesia do povo, p. 153. [Nota editorial da Wikisource]