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O precursor do abolicionismo no Brasil/1.3

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LUIZA MAHIN

Gama deu-nos dois retratos de sua mãi, um que podemos considerar autêntico, porque se destina á história: é o da Carta. Outro, literário e patético, cái no domínio da fantasia: é o da poesia “Minha mãi”, que não figurava na primeira edição das “Trovas Burlescas” e que veiu na segunda.

○ baíano teve sempre extremos de carinho pela memória da valorosa quitandeira, mas o vício da justiça, que era intrínseco nele, leva-o á atitude de imparcialidade quando a recorda nos seus dados biográficos. Denuncia-lhe as qualidades, a altivez, a beleza física, a operosidade em que havia o espírito de iniciativa. Tambem não lhe oculta os defeitos mais salientes: “geniosa, insofrida, vingativa”.

Geniosa demonstrou-o que o era e opiniática ao extremo, pois numa sociedade como a baiâna daquele tempo, visceralmente católica, não concordou em que o filho fosse batizado. Ela era pagã. O filho tambem devia sê-lo, pelo menos enquanto vivesse sob seus cuidados. E foi-o.

Insofrida, sem duvida. O filho revela-lhe a feição e o temperamento inquieto, envolvendo-se na política do tempo, quando o amante tomou parte na revolução do dr. Sabino.

Vingativa... Não ha conhecimento de ato seu, nesse particular, mas o depoimento do filho teria suas razões para afirmar a qualidade materna.

Gama sentiu-lhe a saudade a vida inteira. Relembrando-a, nessa carta de 1880, conta que por bem quatro vezes, em epocas diferentes, tentou rehavê-la. Era, naturalmente, a secreta ânsia de trazê-la para junto de si. E só se rendeu á evidência quando lhe provaram que a pobre mulher desaparecera sem deixar rastro.

Brotou-lhe daí a poesia “Minha Mãi”, escrita em Caçapava, neste Estado, em 1861,[1] composição em que Gama, abusando do direito que lhe concedia a licença poética, fantasiou a progenitora em desacordo com o que escreveria em 1880. Disse, para começar:

«Era mui bela e formosa,
era a mais linda pretinha,
da adusta Libia rainha,
E no Brasil, pobre escrava!»

Escritores nossos, baseados nessa quadra, afirmam que Luiza Mahin fôra “princesa” na Africa. Não era muito dificil ocupar esse posto, entre as tribus negras que formavam reinos efêmeros ás duzias. Mas não creio que Gama quizesse realmente aludir a essa qualidade materna, nos seus versos. Parece-me que foi um recurso poético, apenas, para mostrar a diferença fundamental entre a antiga posição de livre e a de agora, reduzida a cativeiro.

O vate continua:

«O’ que saudades que eu tenho
dos seus mimosos carinhos,
quando co'os tenros filhinhos
ela sorrindo brincava.

Eramos dois — seus cuidados,
sonhos de sua alma bela;
ela a palmeira singela,
na fulva areia nascida.
Nos roliços braços de ébano
de amor o fruto apertava,
e á nossa boca juntava
um beijo seu, que era vida.»

Gama parece ter-se divertido a criar problemas, em sua vida. Nesta poesia, aparece-lhe um irmão, de que nunca mais se falou. Os versos, porém, interpretados literalmente, não deixam margem a dúvida: brincava com os filhinhos, que eram dois”. E em todo o resto da poesia, que tem oito estrofes, a alusão aos filhos se revela na aplicação do possessivo nosso. Teria existido mesmo esse irmão de Luiz Gama ou, fez, tambem aqui, emprego abusivo da licença poetica?

Esta ainda se revela em outras passagens da composição, sempre a recordar a progenitora:

«Tão terna como a saudade
no frio chão das campinas,
tão meiga como as boninas
aos raios do sol de abril.»

«Suave o genio, qual rosa
ao despontar da alvorada,
quando treme enamorada
ao sopro d’aura fagueira.»

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«Tinha o coração de santa,
era seu peito de arcanjo,
mais pura nalma que um anjo,
aos pés de seu Criador.»

Tudo em flagrante desacordo com a Carta. Mas onde a licença ultrapassa os limites, é na quadra final:

«Se junto á cruz penitente
a Deus orava contrita,
tinha uma prece infinita
como o dobrar do sineiro;
as lagrimas que brotavam
eram perolas sentidas,
dos lindos olhos vertidas
na terra do cativeiro.»

Uma pagā renitente aos pés da cruz, orando a Deus, que só podia ser o cristão, foge a tudo quanto se permite em matéria de fantasia literária.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Veja pag. 7.