Ídolo mau

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...voici que, tout à coup, ces élus de l'Esprit sentent effluer d'eux-mêmes où leur provenir, de toutes parts, dans Ia vastitude, mille et mille invisibles fies vibrants en lesquels court leur Volonté sur les événements du monde, sur les phases des destins, des empires, sur !'influente lueur des astres, sur les forces déchainées des éléments.

VILLIERS DE L'ISLE ADAM, Axël

De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.

Estás agora preso à calceta de sentimentos negros e, obscenamente, te arrastas, lesmado e vil, preso à calceta de sentimentos negros.

Na tua alma iníqua, pestilenta e vencida, nada mais arde, nada mais flameja, nada mais canta.

Como a ave noturna e luciferina do — Nunca mais! — desse peregrino e arcangélico Poe — como essa ave noturna, pairou sobre ti a desilusão de todas as cousas.

E tu, agora, só ouves os misteriosos carrilhões da noite, da grande noite do Nada, convulsamente soluçarem e só vês errar os espectros lívidos da Saudade arrastando as longas túnicas inconsúteis e brancas.

De descaro em descaro, de deboche em deboche, as tuas paixões, os teus vícios, monstros leviatânicos, empolgaram-te.

De tal sorte te afundaste, te abismaste no caos infernal da malignidade, de tal sorte o crime absurdo, feio, torto, de avassalou supremamente, que a própria origem de lama, de onde surgiste, nega-te, rejeita-te, repele-te.

Tu não morrerás mais!

Ficarás na terra — imenso Purgatório — regenerando, purificando, cristalizando a tu'alma dessa mancha sinistra e lutulenta, que a envolve toda.

Não morrerás mais! Te perpetuarás, para te remires do teu enorme Pecado, cuja sombra orbicular põe nódoas fundas no sol, doentias penumbras no luar, turva, entenebrece a fina pedraria branca das estrelas.

Entretanto, legiões e legiões de homens deixam-se fascinar por ti; tu os atrais insensivelmente ou calculadamente, os sugestionas, os arrastas, e, fetichistas tristes, bufos lúgubres, eles vivem de sugar o veneno hediondo das tuas palavras e das tuas obras, com a alma e a consciência de rastos a teus pés, na covardia langue, lassa, dos que dão toda a veneração vilã aos ídolos malignos.

Nem o retalhante knut siberiano, nem os suplícios fabulosos do Tântalo, nem os horríveis martírios de Ugolino são suficientes cilícios para remir e imacular o teu ser da mácula de lodo e sangue que tanto o está manchando cada vez mais intensamente.

Tal é a malignidade, o descarnado cinismo em que reinas, bandido e bonzo, que pareces o porta-bandeira funesto das fantásticas legiões armadas do Aniquilamento supremo, trazendo como divisa fatal esta inscrição formidável: — Fome! Peste! Guerra!

És, pois, o proclamador da Fome, da Peste, da Guerra. Vieste sob a claridade assinaladora de um íris prenuncial, sob os eclipses pressagos, sob os sóis reveladores, sangrando em chaga, dentre círculos de fogo, sob as luas augurais, mórbidas e sonolentas, de amarelidão defunta.

Entretanto, se não fora a preguiça mental, um verdadeiro servilismo, uma covardia crassa que tolhe-te completamente os nervos do Pensamento, poderias salvar-te ainda.

Porque tudo está na espiritualidade, na alma. Tudo está em fazer da rima nova hóstia, um sol incomparável, a quint'essência do Sentimento, para que a alma seja mais eterna que a luz, mais forte que os bronzes, mais etereal do que os astros.

Alma, alma, mais alma, mais alma, muita alma, muita alma, toda, toda a alma, toda a infinita alma!

É mister que pouco a pouco te devore uma doce ansiedade secreta e nobre; que uma suavidade celestial desça por sobre ti; que um encanto maravilhoso te engrandeça, te levante e faça sonhar; que aspires às sublimes purificações, às emocionais magnitudes, às surpreendentes transformações, às grandes eloqüências da Sensação que perpetuamente constelam as naturezas assinaladas.

É mister que a serena e imaculada Sideralidade dê-te o poder das Reivindicações; que de ignóbil e rojado aos mais terrestres vilipêndios, surjas, como de um Batismo novo e original, Arcanjo das Transfigurações, alto e calmo dominando, vencendo os Vândalos em torno.

E que uma rara fé, mais forte que toda a fé cristã, mais ardente, mais viva, te inflame e ilumine com as suas chamas prodigiosas.

É de lágrimas, é de desejos, é de gemidos, é de aspirações e agonias que se fecunda a imortalidade.

Se tu tornares bem intensos os teus pensamentos, bem chamejantes, bem profundos, arrancados do mais íntimo do teu ser com todas as estranhas raízes da tua sensação, tu te salvarás ainda, te remirás do teu crime nefando, do teu cinismo bandido, do teu escarnecedor deboche de celerado.

Se souberes manifestar toda a expansão do temperamento, com os segredos da Intuição; se desabrochares como força própria, entranhadamente própria e poderosa, sem veres apenas o que te for tangível aos olhos, sem imaginares o que já foi imaginado, sem sentires o que já foi sentido, sem te nivelares com a materialidade da massa humana, serás uma afirmação, um estado de existir, de impressionar. E, enfim, se ficares livre, inteiramente livre de todas as peias obscenas da miséria coletiva e da convenção dourada, serás verdadeiramente um espírito, originalmente um homem, matrimoniando-te com o sentimento, como o sol nos frementes e lúbricos esponsais com a terra.

Basta, apenas, para te purificares de todo e com solenidade desse descaro e desse deboche, que te possuas de ti próprio, que comungues os Sacramentos abstratos, que te unjas de dons incomparavelmente preciosos e belos, despindo-te primeiro de todas as necessidades, de todas as vanglórias, para que, enfim, vivas, excepcionalmente vivas; para que sintas, intuitiva, eloqüente, a póstuma volúpia espiritual de te perpetuar, de te difundir no Azul, de ainda, através dos tempos, viver...

Basta, para isso, que renasças de ti mesmo, com entusiasmos bizarros, revitalizados pelo fluido de ouro, rico e fecundo, dos Idealismos, olhando as cousas com olhos sonoros, harmoniosos; que ascendas à Perfectibilidade e surjas, simples e sereno, da lama esverdeada onde coaxas de descaro em descaro, de deboche em deboche, — sapo asqueroso de sensualidades tristes — Astro imortal do Sonho, assim singularmente, curiosamente remido e perdoado para sempre de tudo, na palpitação extática das Luzes, das Formas, das Transcendências!...