A Arte Culinária na Bahia/Advertência preliminar

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Advertência preliminar

Ha dilatados annos, tive que viajar o norte e o sul do Brasil, desde o Piauhy ao Rio de Janeiro; e nessa demorada excursão interessaram-me os costumes, os habitos de cada região, em que o systema alimentar divergia fundamente do da minha terra, sem embargo de me proporcionarem refeições com a chancella, ou segundo a moda, da Bahia, desde que a mim se nomeava a naturalidade. Dessa época longínqua surgiu-me a idéa de esboçar o trabalho que ora emprehendo. A cozinha bahiana, como a formação ethnica do Brasil, também representa a fusão do português, do indígena e do africano. É fácil demonstrar. Embora a contribuição do selvicola fosse muito acanhada e rudimentar, todavia, deixou-a-s a pamonha e a cangica feitas de milho,[1] o beifá e o mingau preparados com farinha de mandioca[2] ou com a tapioca, gomma extrahida da raiz desse arbusto, a possóca ou passóca, um composto de farinha e carne assada pisada em pilão, o matte, o cururú ou carirá.

O indigena fabricava mais de uma espécie de farinha, tanto que ao peixe secco esfarelado, numa espécie de ralo, dava o nome de farinha de peixe.

A farinha de milho era o milho secco, retirada a pellicuia, e bem pisado, misturado com pouca agua e cozido em banho-maria,[3] como se pratica no sertão.

Do milho ou da raiz do aipim fermentados extrairiam os aborígenes uma bebida, extremamente acidulada que, com poucas libações, produzia a exaltação de animo, e, finalmente, a embriaguez.

Era o cauim preparado pelas donzellas mais formosas da aldeia. O fallecido e illustrado Barão de Guajará (Historia Colonial do Pará) tratando da fabricação do cauim e referindo-se, em seguida, á frugal alimentação indígena, informou:

"Era o sumo da macaxêra, aipim, ou milho, amassado e mastigado, fervido depois em agua e, por fim, lançado em pote até fermentar. A alimentação era farta e variada, em certas epocas do anno".

"Consistia em caças, peixes, mariscos, batatas, e cereaes naturaes do solo".

"Abundavam nos bosques as antas, os porcos, os veados, as capivaras, as pacas e tantos outros animaes conhecidos, além de innumeras aves e reptis, que habitavam nas praias, nas campinas e nas mattas".

Cingiu-se, pois, a contribuição do indígena em nos dar a conhecer os elementos, a matéria prima, por assim dizer, de que se serviam no preparo das refeições.

A classe pobre sertaneja faz, ainda hoje, largo uso alimentar de caça e aves, como porco do matto, caetitú, capivara, veado, paca, tatú verdadeiro, cangambá[4], jacú, nambú, zabelê, etc., em substituição da carne bovina e donde, talvez, provenha o vigor, a admiravel resistência physica dos homens do campo.

O português abastado destinava, de preferencia, os escravos, que adquiria, aos trabalhos agrícolas; mas o commerciante, o capitalista, mandava-lhes ensinar as artes mecanicas, reservando sempre um africano ou africana para o serviço culinario, e dahi as modificações modernas no arranjo das refeições á moda do Reino, com a carne, peixe, mariscos, aves e animaes domesticos.

A's iguarias em que o português fazia uso do azeite de oliveira; a africano addicionava, com efficacia, o azeite de dendê ou de cheiro.

A frigideira era preparada, de ordinario, com bacalhau pizado, azeite doce, banha de porco e ovos batidos; o africano melhorou-a consideravelmente, adicionando o leite de coco para tornar esse prato mais saboroso, o que é incontestável.

Não era tudo: substituia o bacalhau ou o peixe assado pela amêndoa da castanha verde do cajueiro ou pelo broto, donde partem as palmas mais tenras do dendezeiro ou da carnaúba.

É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excellencia, a primazia, na arte culinária do paiz, pois que o elemento africano, com a sua condi- mentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando dahi um producto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente, o que excelle a justificada fama que precede a cozinha bahiana.

Fôra o africano o introductor do azeite de cheiro, do camarão secco, da pimenta malagueta, do leite de coco e de outros elementos, no preparo das variadas refeições domesticas da Bahia.

Eminente medico paulistano, ha pouco extincto, traçou no seguinte passo, verdadeiro hymno de louvor á arte culinária bahiana:

"A nossa cozinha bahiana, especialmente, não tem no mundo rival para o preparo do peixe. Não é só o seu vatapá que se impõe á attenção universal; é com razão que os bahianos se orgulham da sua Moqueca de peixe, do seu Angú de quitandeira, do seu Carurú, do seu Efó e do seu Mocotó. O leite de coco e o oleo de Dendê são dois condimentos portanto (texto ilegível) na arte culinaria bahiana".

(DR. L. PEREIRA BARRETO — A hygieneda mesa - no Estado de S. Paulo, de 7 de Setembro de 1922).

Os senhorios de éras afastadas, muitas vezes, em momentos de regosijo, concediam cartas de liberdade aos escravizados que lhes saciavam a intemperança da gula com a diversidade de iguarias, cada, qual mais selecta, quando não preferiam, contemplal-os ou dar expansão aos seus sentimentos de philantropia em alguma das verbas do testamento.

Era vulgar, nos jantares da burguezia, uma saudação, acompanhada de cânticos, em honra da cozinheira, que era convidada a comparecer á sala do festim e assistir á homenagem dos convivas.

Até as moças de fámilía abastada se exercitavam nos trabalhos culinarios, afim de, mais tarde, dirigirem, sabiamente, o arranjamento das refeições quotidianas, ou o preparo dos finos manjares das mesas de banquete.

Na elaboração desta monographia tive que me referir a miudezas descriptivas, absolutamente dispensáveis aos meus conterraneos, mas de inteira necessidade aos que me lerem lá fora.

Cada terra com seu uso — é da sabedoria popular.


Bahia, - 1922.

M. Querino




  1. A cangica era o milho cozido.
  2. Como a mandioca é venenosa, o indígena pisava ou ralava-a e introduzia a massa no tapiti para extrahir a parte venenosa de acido prustico.
    Á mandioca e ao aipim chamavam oa indígenas índistinctamente — macaxêra.
  3. No sertão da Bahia, onde não existe o pão de trigo, os doentes se alimentam de cúscús ou farinha de milho, á moda indígena, apenas com a addição de diminuta quantidade de sal.
    A farinha de mandioca é, vantajosamente, substituída pela de milho, quando se trata de moléstias do figado, em que a mandioca é compromettedora da vitalidade de tão importante viscera.
  4. O cangambá é caça de muito apreço, desde que seja morta de susto, isto é, enquanto dorme. O fado ou a foice são os instrumentos preferidos. Em outra qualquer occasião, o cangambá perseguido desprende nauseabundo e entontecedor gaz intestinal, de que a própria carne fica impregnada.