A Confederação dos Tamoyos/Canto I

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ARGUMENTO.




Invocação ao sol e aos Genios dos bosques do Brasil.— Primazia desta parte d’America.— O Amazonas e o Paraná.— Nada é comparavel ás bellezas desta natureza virgem.— Seus indigenas.— Perseguição contra elles.— Aimbire, o mais audaz dos chefes Tamoyos, confedera todas aquellas tribus contra os Portuguezes.— Para esse fim vai elle procurar Pindobuçú, e o acha dando sepultura a um filho.— Lança Aimbire uma pedra sobre essa sepultura, que encerra talvez o cadaver de um amigo; e recordando-se do tempo da sua infancia, saúda a terra em que nasceo, e a que volta depois de longa ausencia.— Pindobuçú o reconhece, e lhe diz que o morto é Comorim seu filho.— Lamenta Aimbire a perda do companheiro da sua infancia.— Conta-lhe Pindobuçú como fôra o filho mortalmente ferido defendendo sua irmã Iguassú, atacada por alguns Portuguezes, dos quaes tres ou quatro foram mortos na lucta.— Jura Aimbire vingar a morte do amigo; e aproveita a occasião para ligar aquella tribu contra os Portuguezes.

CANTO PRIMEIRO.

Oh sol, astro propicio que abrilhantas
Do creado universo altos prodigios;
Que aos bosques dás verdor, doçura aos fructos,
E os petalos das flores vario esmaltas!
Oh sol, vital principio, que na terra
O tenro germe da semente aqueces,
E o fecundas co’os teus benignos raios:
Luzeiro perennal, nume adorado

Dos innocentes filhos da Natura,
Que mal seu Creador, seu Deos conhecem!
Oh sol, hoje m’inflamma a mente ousada,
Que azas desprende p’ra mais altos vôos.

Vós, solitarios Genios dos desertos
Do meu patrio Brasil, nunca invocados
Té-qui por nenhum vale, a cujas vozes
Doçura deram do Carioca as aguas; 1
Genios, que outr’ora com choroso accento
Suspiros repetistes lamentosos
De tantas malfadadas tribus de Indios,
Que viram do Europêo n’ávida espada
O sangue gotejar dos caros filhos,
Das esposas, dos pais, e dos parentes;
Doces inspirações prestai-me, oh Genios!
Dos Tamoyos o intrepido ardimento,
Tão fatal á colonia portugueza,
Do olvido sorvedor hoje exhumemos:
Na mente bafejai-me imagens que ornem
Dos filhos dos sertões a sorte adversa.

Das Americas plagas venturosas,
Que ás mais plagas do mundo nada invejam,
Ufana-se o Brasil como a primeira.
Formosa é sempre ahi a Natureza,
Eterna a primavera, o outono eterno.
Em leitos diamantinos pura lympha
Rega seus campos em caudaes correntes.
Innumeras, pujantes catadupas,
Voz dando á solidão, em crystaes curvos
De rochedos alpestres precipitam-se;
E de horrendo estridor pejando os ermos,
De valle em valle, entre asperas fraguras,
Onde atroam tambem gritos das feras,
Das serpes os sibillos, e os trinados
Dos passaros, e a voz dos roucos ventos,
Viva orchestra parece a Natureza,
Que a grandeza de Deos, sublime, exalta.

Balisa natural ao Norte avulta
O das aguas gigante caudaloso,
Que pela terra alarga-se vastissimo;

Do Oceano rival, ou rei dos rios,
Si é que o nome de rei o não abate;
Pois mais que o rei supera em pompa e brilho
No solio á multidão em torno curva,
Supera o Amazonas na grandeza
A quantos rios ha grandes no mundo!
O Kiang, o Nilo, o Volga, o Mississípe,
Inda que as aguas suas reunissem,
Com elle competir não poderiam.
Ao lado seu direito, e ao esquerdo lado
Mil feudatarios rios vem pagar-lhe
Tributo perennal de suas aguas.
Resupino gigante se afigura,
Qual outro Briarêo, mas verdadeiro,
Que estende os braços p’ra abarcar a terra!
Pujante assim no Atlantico se entranha,
Ante sí repellindo o argenteo salso,
Como si elle na terra não coubera,
Ou como de inundal-a receioso
Si mais longo e mais lento a discorresse!
O Amazonas co’o Oceano furioso
Lucta renhida trava interminavel

Para roubar-lhe o leito; e ronca e espuma,
Qual no lago, enlaçada a cauda a um tronco,
Feroz sucuriúba horrida ronca 2
Quando sente mover-se á flôr das aguas
Lontra ligeira, ou anta descuidada,
E inchando as fauces, a cabeça eleva,
Os queixos escancára, a lingua sólta,
Para de uma só vez tragar o amphibio.
Tal no pleito co’o Oceano o Amazonas
Para sorvel-o a larga foz medonha
Legoas abre setenta! A ingente lingua
Estende de tres vezes trinta milhas,
Como uma longa espada, que se embebe
Ao travez do Atlantico iracundo,
Que gemendo recúa no arremesso,
E em montes alquebrado o dorso enruga.
Armas que joga ao mar são grossos troncos
Arrancados na furia, são pedaços
De esbroadas montanhas que elle mina:
Seus gritos são trovões tão horrorosos,
Que alli parece submergir-se o mundo
Quando se incha seu corpo desmedido:

Equorea, espessa nuvem se levanta
Como uma chuva contra o céo erguida,
Reflectindo do sol os sete raios.
Tal o conquistador, que co’os despojos
Dos reis desthronisados se opulenta,
Ou co’os tributos dos vencidos povos,
Em pé firme no carro do combate,
Envolto n’uma nuvem de poeira,
Na frente vai levando debandada
Ingente alluvião de imigas hostes,
E ante as portas de bronze do castello
Nova victoria alterca porfiosa.

Da opposta parte, não tão magestoso,
Mas grande em sí, o Paraná se alonga
Da serra Mantiqueira, e cava, e afunda
Largo sulco nas terras que devassa;
Como escorregadiça, argentea estrada,
Obra sem par das mãos da Natureza,
Em prol dos filhos seus circumvisinhos,
No trajecto veloz se assenhoreia

De pingues, numerosos affluentes,
Té no Prata perder-se, ou dar-lhe origem.

Nesta vasta extensão do Eden terrestre
Se ostenta o céo tão lindo e tão sereno
Como os olhos da virgem, cuja mente
Erma está de amorosos pensamentos:
Tão crystallino e azul como um zimborio
De inteiriça turqueza, ou de saphira.
O ar é tão nectareo como o aroma
Que no dia nupcial o ardente esposo
Nos puros labios frûe da virgem noiva
Co’as primicias de amor, beijo suave!
E tão leda e garbosa a Natureza
Como as faces de riso salpicadas
De uma mãi que se expande entre os filhinhos,
Que innocentes meiguices lhe tributam.
Oh vós da Grecia deleitosos campos,
Onde o Alphêo e o Eurotas serpenteam,
E em cujas margens Dryades habitam!
Montes, que dais abrigo em vossos topes,

De loureiros á sombra, ás castas Musas,
Vós não assoberbais a magestade
Destes montes brasilios, destes bosques!
Desdenha este sumptuoso Paraiso
As sonhadas ficções da mente humana;
Malignos Faunos, pudibundas Nymphas
Nestas virgens florestas não vagueam:
Grande como sahio das mãos do Eterno,
A Natureza é tudo, e excede ao homem,
Que hade bem cedo emparelhar com ella!
Oh placido remanso!.. Aqui a mente
Repousa, e se deleita em contemplal-o;
E no intimo d’alma, que se espraia,
Resôa de seu Deos a voz cadente,
Como resôa em bosques de palmeiras
Vago sopro das auras matutinas.

Raças mil de homens livres sem cultura,
Cuja origem té hoje ignora o mundo,
Estes sertões outr’ora povoaram,
Antes que a industria e as artes, transplantadas

Pelas mãos do Europêo, aqui mudassem
Brutas pedras e troncos em cidades.
Mas quanto, oh Parahyba, quanto sangue
De innocentes indigenas primeiro
Tuas aguas tingio, regou teus campos!

Tu só, Religião sublime e santa
Do Deos por nosso amor martyrisado,
Tu só consolador oleo verteste
Nos ulcerados corações dos Indios.
Tu só com mão piedosa as almas cordas
D’harpa mysteriosa revolvendo
Milagrosos accentos extrahiste,
Que os filhos dos desertos encantaram,
E á tua grei os foram attrahindo.
Si as maravilhas tuas cantar posso,
Meu estro fortifica, aquece-o, anima-o
Co’uma brasa do teu sacro thurib’lo.

Oh! e porque tão frio, tão amargo

Pranto verteis, meus olhos magoados?
Tanto dos Indios vos contrista a sorte,
Ou dos nossos maiores a dureza
Com que á escravidão os reduziram?
A escravidão!… oh céos! Quando do mundo
Tão grande crime fugirá p’ra sempre?
Máos, sim, nossos pais foram p’ra com elles.
Torpe ambição, infame crueldade
Os esforços mil vezes deslustraram
Dos primeiros colonos Lusitanos,
Que o amor do aureo metal e feios crimes
A estas virgens plagas conduziram.

Não, dos canhões não foi o echo estrondoso
Que ao Indio impoz terror; nem mesmo a morte;
Que mortes e trovões terror não causam
Aos filhos dos sertões á guerra affeitos,
Que livres deslisavam vida errante;
Foi sim o captiveiro, algemas foram,
Que alguns, ora colonos, de seus pulsos
Aos pulsos dos indígenas passaram;

Alguns, ora colonos, mas que outr’ora
Em Lisia réos infames se opprimiam
De empestadas prisões nos subterraneos.

Como preza a andorinha a liberdade,
E por instincto soe cantar errante,
Errante fabricar ligeiros ninhos;
E si no aereo carcere encerrada
Triste pende a cabeça, encolhe as azas,
Cala o trinado que soltava livre,
Rejeita tenue grão, suspira e morre:
Não menos estes filhos das florestas
Errante vida e liberdade estimam.
Ora aqui, ora alli erguem choupanas,
E onde frondosas arvores estendem
Pejados ramos de gostosos fructos,
Ahi é seu paiz, ahi se abrigam.

«Toda esta terra é nossa, e nunca falta
Terra para os mortaes. O passarinho

Que nos ares nasceo, nos ares vôa,
E nem n’um tronco só seu ninho tece;
Embora o tronco firme sobre a terra,
Supporte a chuva, e o sol, e o vento, e o raio;
Não tem membros o tronco que o transportem.
Mas nós homens, a quem Tupan deo tudo,
Nós, que livres nascemos nestes bosques,
Porque escravos agora nos faremos? »
Deste geito discorrem os selvagens.

Depois que as praias e os sertões brasilios,
Ribombando o trovão da artilharia
Repetiram taes sons — Tudo isto é nosso —
Viram-se os Indios sob o peso curvos
De asperrimos trabalhos, como brutos,
Que os Portuguezes brutos os julgavam,
Cantando ao som do látego incessante,
Mas cantico de dôr com voz de escravo.

Não mais, grotas, não mais em vós soára
O canto do homem livre! — A liberdade
Trocado havia em lucto as brancas vestes,

E só tristes gemidos exhalava;
Como o guará, que perde as alvas pennas 3
E novas porém negras só lhe crescem,
E de tão lindo que era e tão garboso,
Adejando ligeiro á flôr do lago,
Co’o rostro ora ferindo-o, e contemplando
Sua imagem no meio de mil orbes,
Que iam delineando as moveis aguas;
Ora curvando a aquatica vergontea
Co’o peso de seu corpo, qual esbelta
Virgem que em bamba corda se embalança;
Ora emfim alongando o airoso collo
Como uma flauta eburnea, a voz soltava;
De tão lindo qu’elle era, se transforma
Em passaro funéreo, e fugitivo
Geme, como carpindo a perda sua,
E nem ousa mostrar-se envergonhado,
Até que o lucto em purpura se muda
Co’as plumas novas, que lhe crescem rubras.

Assim fugiste, oh cara liberdade,

De lucto envolta; e só com sangue agora
Te é dado o triumphar! – Ai, pobres Indios !
Uns faziam gemer a virgem terra
Co’os repetidos golpes das enxadas;
Outros nos densos mattos mutilavam
Arabutans, jacarandás, graúnas
E os bosques rebramavam co’as pancadas
Resoantes dos machados: – parecia
Que de dôr se carpiam, por se verem
Roçados pelas mãos de homens escravos
Pela primeira vez; homens que outr’ora
Livres á sombra sua se acoutavam.
Outros emfim das abas das montanhas,
Sobre os despidos hombros já callosos,
Os lavrados esteios carregavam,
Que deviam erguer nascentes villas,
Para commodo só dos seus senhores.

Inda tudo não é; mesmo no centro
De incognitos sertões o Luso armado,
Como da destruição o infrene genio,

Levava o captiveiro, o horror, o estrago,
O incendio e a morte ás tabas indianas. 4
Homens justos, apostolos de Christo,
Anchieta e seus irmãos em vão bradavam
Contra tão fera usança e ruim costume:
Conselhos de dever, de honra, que valem
P’ra as almas encharcadas na cobiça?

Aimbire, o mais audaz entre os Tamoyos,
Meditava projectos de vingança
Contra a Lusa colonia Vicentina,
Donde p’ra seus irmãos o mal saía.
De sertão em sertão, de taba em taba
Andava elle incansavel incitando
As tribus dos Tamoyos á revolta.
Já tinha percorrido as ferteis plagas
Que banha o Pirahy, e o Parahybuna;
Tinha já costeado a dextra margem
Do longo, caudaloso Parahyba;
E atravessado os campos e as montanhas
Que entre o Guandú e o Macahé se estendem:

Por toda a parte amigos encontrára,
Promptos como elle, para a grande empreza,
E todos de vingança sequiosos;
Que o presente cruel se lhes mostrava,
E o futuro peior; terrivel tudo.
O Indio verboso, e de subtil engenho,
Por afanosos trances amestrado,
Inda mais inflammando-lhes o odio,
P’ra vingança commum os colligava.

Só faltava-lhe o braço e a experiencia
Do ancião Pindobuçú; a elle corre,
Sóbe ao alto da Gavia, onde elle habita,
E o acha, oh dôr, em funebre apparato
Dando o eterno repouso a um caro filho.

Já o cadaver dentro da igaçaba, 5
Com as guerreiras armas de que usára,
Tinha sido enterrado em funda cova.
De Comorim o irmão e os companheiros

Com lentos passos, e as cabeças curvas,
E os olhos para o chão, em pranto envoltos,
Já para a sepultura vão levando
Toscas pedras p’ra o tosco monumento.
O Cacique, sentado junto á cova,
Pousa a sinistra mão sobre a cabeça
Da filha, que soluça em seus joelhos,
E co’a dextra apertando a propria fronte,
P’ra o funereo moimento absorto attenta,
E como que sua alma além vagueia.

Aimbire chega, e pára; olha, examina;
Bate-lhe o coração; fallar não ousa.
Ao ver o velho assim, e ao lado a filha,
Parece adivinhar… Toma uma pedra
E a leva á sepultura: « Em paz descança,
(Diz) oh guerreiro, cujo nome ignoro;
Mas és Tamoyo, e amigos meus te choram.
Aqui teus ossos jazerão p’ra sempre
Sobre este monte, que me vio pequeno,
Após meu pai, andar sahís caçando,

Tão lindos qu’eu co’as pennas me enfeitava.
Lá diviso a Tijuca tão saudosa,
Cujas aguas bebi; nellas banhei-me.
Alli n’aquelle morro, onde se eleva
O Corcovado pincaro ventoso,
Doce e manso deslisa-se o Carioca,
A cujas margens minha mãi cantava
Tão mestos cantos, qu’eu chorando ouvia,
E ainda choro co’a lembrança delles.
Quantas vezes naquella escura varzea,
Onde o Catête saltitante corre,
Ouvindo o sabiá e o gaturamo,
Dormí, sonhei, aromas respirando
Co’aquelles ares puros que dão vida!
Aqui a baixo o Comorim se alarga, 6
Onde eu pescava tantas vezes, tantas.
Terras em qu’eu nascí, como sois bellas!
Como és formoso, oh céo do Guanabara!
Mais azul do que as pennas d'ararúna!
E a vós eu volto e vos saudo em frente
De uma recente, pranteada campa,
De quem, não sei; talvez de algum amigo! »

Mal a voz – Comorim – soou ao velho,
Subito elle estremece; olha, procura
Reconhecer o incognito guerreiro
Que tal nome soltou. A voz lhe escuta,
Mede-o todo; e depois qu’elle se cala:
– Aimbire! não és tu?
    – Sim sou Aimbire!
E o Cacique, lançando-se em seus braços,
O aperta contra o peito; encara-o e chora,
E de novo o aperta uma e mais vezes.

– Aimbire! tu aqui… Ah, quem te disse,
Como soubeste qu’eu perdi meu filho,
Teu amigo da infancia, o meu querido,
O meu bom Comorim?…
    « Que! pois é elle?
Elle?… o meu Comorim?… é elle o morto
Que alli jaz?… Comorim: como morreste?
Tu tão moço, tão bravo, e tão robusto?
Quem um putumujú te não julgára, 7
Em força, em duração, como em belleza?

Que raio te ferio antes de tempo?
Eu não sabia, ah, não… Quando cuidava
Poder hoje apertar-te nestes braços,
Contar-te minha vida, meus trabalhos,
Meus longos soffrimentos e desgraças,
Venho pôr um pedra em teu moimento!
Oh companheiro meu nos tenros jogos
Dessa idade feliz, que brilha e acaba,
Como a flôr da urumbeba, após deixando
Feio tronco, escabroso, e todo espinhos!
Quantas vezes amigos apostámos
Quem mais certeiro mandaria a flecha
O passaro ferir, alto pairando!
Quem mais veloz nadando, ou já correndo,
Primeiro chegaria ao dado termo.
Ou quem mais agil pendurado a um galho
Para o galho fronteiro se arrojára.
Como eu gostava de brincar comtigo !
E perdi-te! e não mais ver-te-hão meus olhos!
Como subindo alegre esta montanha,
Tão cheio de prazer e de esperanças,
Pensando tanto em ti, que vivo eu cria,

Não palpitou-me o coração presago;
Nem ouvi murmurar por entre o bosque
O echo de nenhum Maraguigana, 8
Que este golpe fatal me annunciasse!
Ai! quanto custa a perda de um amigo,
De um bravo como tu!… E eu inda vivo! »

O pai, o irmão, a irmã, os Indios todos
Enternecidos choram, vendo Aimbire,
E ouvindo-o deplorar do amigo a morte.
Queixas, lamentações longas soaram.
« Mas emfim, disse o velho, é tempo, oh filhos,
De deixar em repouso a quem não vive.
Pois que Aimbire aqui chega afadigado
De bem longe talvez, que se passaram
Tantos sóes sem noticias termos delle,
Vamos dar-lhe agasalho e algum repouso. »

« Não, disse Aimbire, não: quero primeiro
Que em torno destas pedras assentados

Me contes si em combate, ou de que modo
O bravo Comorim perdeo a vida. »

– Ai, exclama o Cacique, nenhum homem
Morreu ainda por mais nobre causa!
Era meu filho! E como morreria
Senão luctando tão audaz guerreiro!

« Apenas ha tres sóes que uns Emboabas, 9
Dos que talvez na Bertióga habitam,
N’aquella praia em baixo appareceram.
Comorim e Iguassú tambem andavam
Nesse dia fatal por lá caçando:
Quem podia prever um mal tão grande?
Em quanto n'um momento, não cuidoso,
Meu filho pelo bosque se entranhára
Após um caitutú que lhe fugia,
Sua irmã, que aqui vês, linda e garbosa,
Que vence o sahixé na gentileza,
E excede o sabiá no meigo canto,

Cantando andava só, toda entretida
A colher uns ingás pela restinga;
P’ra mim ella os colhia; é seu costume
Sempre que sahe trazer-me alguma cousa.
Aquelles máos a viram tão sósinha,
E assim que a viram, cobiçando-a logo,
Quizeram agarral-a: ella, gritando,
Coitada! como a rôla perseguida,
Para o matto correo. Correram elles
Após como as igáras esfaimadas;
Mas ella, pelo irmão chamando sempre,
Mais ligeira do qu’elles lhes fugia.
Um mais audaz já quasi a segurava,
Quando o meu Comorim apparecendo,
Já co’o arco esticado e a flecha no alvo,
Com prompta morte atravessou-lhe o peito.
Outro, que vinha após, co’o braço alçado
Para lhe disparar troante bala,
Varado o braço, alli cahio bramando.
Era a ultima flecha, e já meu filho
Daquelle inutil braço ía arrancal-a,
P’ra mandal-a de novo a outro ousado,

Que vira mais além por entre os ramos,
Quando dous por detraz o aferraram,
E seus punhaes nas costas lhe embeberam.
Comorim, mesmo assim preso e ferido,
Curva-se um pouco, e subito se erguendo,
O corpo sacudio e os fortes braços,
E por terra atirou os dous contrarios:
Como ligeiro e forte era meu filho!
E agarrando-os depois pelos cabellos,
Dêo co’a cabeça de um contra a do outro,
Que batendo quebraram-se estalando,
Como estalam batendo as sapucaias!
Nenhum mais se mostrou: os mais fugiram.
Entretanto Iguassú vinha gritando,
Até que ao longe vio alguns Tamoyos,
Que a seus gritos pungentes acudiram,
E sabendo do caso logo foram
O irmão soccorrer. Porém, oh magoa!
Já longe do logar da feroz lucta
O acharam quasi exangue e semimorto.
Assim o filho aos hombros me trouxeram:
Assim nos braços o tomei chorando.

Ah meu filho! parece que o estou vendo!
Que não fiz eu para estancar-lhe o sangue,
Que das largas feridas se escoava!
Elle sem exhalar um só suspiro,
A dôr vencendo, desdenhando a morte,
Com voz segura, posto que difficil,
Pôde contar-me o que narrado tenho.
Ninguem o vio gemer; senão que o digam?
Calou-se um pouco, e respirou com força;
Era a ultima vez que respirava,
E todo contrahindo-se: – Vingança! –
Disse, e morreo… E alli cahi sobre elle!
· · · · · · · · · · · ·
Creio que muitos os malvados eram,
Porque os mortos no bosque não se acharam;
E no mar vio-se ao longe uma canôa
Grande, cheia e veloz, que ía fugindo.
Em vão alguns dos nossos a acossaram;
Tarde foram, e a noite protegeo-a. »

Mal que o velho acabou, Aimbire exclama:

« E p’ra quando guardais essa vingança
Que Comorim pedio no extremo arranco?
Não ouvís sua voz surgir da cova,
E de novo bradar – Vingança – amigos?! »

« Sabes (Parabuçú pergunta irado),
Sabes tu onde estão os companheiros
Dos vis que meu irmão assassinaram?
Dize onde elles estão, onde se escondem,
Que a vingança pedida tirar quero. »

« Onde estão? Tu perguntas? Pois não sabes
Onde estão os feroces Portuguezes,
Que nos roubam os filhos e as mulheres,
E matam nossos pais, irmãos e amigos?
Não sabes onde estão esses ingratos,
Que tomam nossa terra e nos perseguem,
E nos caçam e a escravos nos reduzem?

Stão em Piratininga, em Bertióga,
Onde Tibiriçá, opprobrio nosso,
Os Carijós e os Guayanás os servem.
Lá stão elles tranquillos, meditando
Em roubos, guerras, mortes e exterminio;
Lá stão elles pensando de que modo
Hão de aqui vir bem cedo p’ra vingar-se,
E roubar Iguassú, que lhes fugira.
Pois bem, eu tambem penso em extinguil-os.
Serás vingado, Comorim, eu juro
Por teu sangue innocente derramado;
Por minha mãi, que os vís assassinaram;
Por meu pai, que morreo no captiveiro;
Pela linda Iguassú, que defendeste,
E qu’eu defenderei de hoje em diante
Como irmão si quizer, ou como esposo,
Si ella e Pindobuçú me não desprezam!
Juro por este céo, por estes ares,
Por tudo quanto vejo, e pela lua
Que tomo em testemunha, e que me escuta;
Juro qu’heide vingar a tua morte,
Até que a tua voz me grite: – basta!

« Tamoyos, que me ouvís, tudo está prompto;
Todos estes sertões estão armados,
E por vós só esperam. Eia, armai-vos
Para a grande vingança, de nós digna:
Não ha prazer que ao da vingança iguale.
Comorim não quer lagrimas, quer sangue!
Não quer tristeza, quer furor e guerra!
Preparai-vos p’ra a guerra sanguinosa,
Qu’eu aviso vou dar ás tabas todas
Que vós sereis comnosco. Prometteis-me?
Quereis ser livres de uma vez p’ra sempre? »

— Sim, promettemos. — N’uma voz bradaram:
« Vingança e liberdade só queremos. »

« Pois bem: que agora os mortos sós descancem
Nas suas igaçabas; qu’eu repouso
Não quero até o dia da vingança. »