A Confederação dos Tamoyos/Canto X

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ARGUMENTO.




Grandeza d’alma de Anchieta.— Suas diversas occupações entre os Tamoyos: cura, catechiza, e compõe um poema latino em louvor da Santa Virgem.— Impacientam-se os Tamoyos com a tardança da resposta de Nobrega.— Annuncia-lhes Anchieta que em tres dias receberão noticias de paz.— Chega com effeito Cunhambeba no dia prefixo, trazendo cartas de Nobrega, os prisioneiros e presentes.— Regressa Anchieta para São-Vicente.— Pouco dura a paz.— Chega o Capitão-mór Estacio de Sá ao Rio de Janeiro, e começa a fundar a fortaleza da Praia Vermelha e a Cidade velha.— Vai Aimbire atacar os Portuguezes.— Prolonga-se a guerra.— Estacio de Sá manda Anchieta á Bahia pedir soccorro a seu tio Mem de Sá.— Vem este, trazendo a seu bordo o Bispo D. Pedro Leitão, e Anchieta já com ordens sacras.— Em dia de São Sebastião atacam os Portuguezes as trincheiras de Uruçú-merim e de Parnapicuhy, onde Estacio de Sá é mortalmente ferido.— Morte de Iguassú e de Aimbire.— Fundação da cidade do Rio de Janeiro.— Anchieta dá sepultura em suas praias aos cadaveres dos dous esposos.

CANTO DECIMO.

Quanto me apraz a egregia heroicidade
Do illustrado varão, que não movido
De affecto vil, mas só de amor guiado,
Mil perigos e a morte assoberbando,
Todo se sacrifica a bem dos homens!
Que outra virtude a tanto amor iguala?
Nesta mansão de cardos e de espinhos,
O vero heroismo, que o dever só segue,

Floridas c’roas p’ra exultar não busca,
Nem os applausos e o pregão da fama:
Mas nem por isso o merecido encomio
Lhe negue a Musa da virtude amiga;
Antes mais sonorosa a voz erguendo,
Faça o mundo entoar do justo o nome.
Anchieta, de ti fallo! e o céo conceda
Que eterno o nome teu sõe em meus versos.

Interprete sincero da lei santa,
Que o Cordeiro de Deos legou aos homens,
Anchieta, igual no amor, no zelo ardente
Aos que da morte o Vencedor ouviram,
Todo se consagrava a bem dos Indios,
Praticando as virtudes que ensinava
No meio desta gente inculta e fera.

Sua alma pela fé purificada
Era como um altar da caridade,
Que em todos os seus gestos transluzia,

E sublime expressão lhe dava ao rosto.
Seu descarnado corpo, enfermo e fraco,
Só por essa virtude roborado,
A todos os trabalhos se amoldava.

Inda dormia a virgem Natureza,
E os alados cantores somnolentos
O hymno matinal não gorgeavam,
E já essa alma activa, que a seu corpo
Poucas horas só dava de repouso,
Anticipando o albor da rosea aurora,
Alerta erguia a Deos seu primo arroubo;
E do dia afanoso que o esperava,
Distribuindo as horas e os trabalhos,
Forças pedia ao céo p’ra tanta lida.

Com todos repartindo os seus cuidados,
la pela manhã colher nos bosques
Plantas medicinaes, qu’elle levava
Aos que enfermos jaziam, já deixados

Dos seus rudes, ineptos mezinheiros,
Que si algum tanto o mal lhes resistia,
Depressa desistiam de cural-o;
E elle mesmo, o remedio preparando,
Lhes dava carinhoso, e os animava
Com palavras de affecto e de conforto,
Que a esperança e o vigor infundem n’alma.
E a não poucos roubando á morte certa,
P’ra o rebanho de Christo os conquistava.
No clinico exercicio muito assiduo
O seguia Coaquira, ora aprendendo,
Ora a practica sua revelando.

Nessas horas do dia em que os Tamoyos,
Depois da caça, juntos repousavam
Sobre a fresca verdura, á sombra amiga
Do bosque protector vizinho á taba;
E sorvendo e soltando o fumo odoro
Dos tubos de taquara, que embocavam,
Cheios de seccas folhas de pituma, 1
Se aprazem a ouvir estranhos casos,

E a memorar seus feitos e combates;
Anchieta, sempre assiduo em doutrinal-os,
Alli se apresentava e lhes fallava
D’alma, da vida eterna, do futuro,
Do premio e do castigo além da morte,
Da gloria perennal, pura, celeste
Aos justos reservada, e dos horrores
Desse Inferno em que os máos vão abysmar-se.
Contava-lhes de Christo a santa vida,
Seu infinito amor aos homens todos,
E o tremendo, sublime sacrificio
Do seu sangue vertido p’ra salvar-nos.
E jamais dessa morte elle fallava
Sem que os olhos de lagrimas se enchessem.

Como de Antão, nos ermos, a virtude
Os corações das feras abrandava,
Assim de Anchieta as vozes commoviam
Os peitos desses homens da Natura,
Que p’ra melhor ouvil-o, pouco a pouco
Erguendo-se da terra, se formavam

Em torno delle em circulo compacto.
E quando o eremita, respirando,
Seu vehemente discurso suspendia,
Questões sobre questões lhe dirigiam,
Ora Pindobuçú, ora Coaquira,
Sobre os pontos sublimes que os tocavam.
E Iguassú, que aprendêra em São-Vicente
A doutrina de Christo, a vida e as obras,
Do seu saber ufana, ora chamava
A attenção das mulheres que o escutavam,
Ora lhes repetia o que ia ouvindo,
Como p’ra mais gravar-lhes na memoria
As cousas que mais gratas lhe soavam.

Só Aimbire em silencio tudo ouvia,
E no fim perguntava ao Missionario:
– Acaso os Portuguezes não conhecem
Essa santa doutrina que nos pregas?
Como pois contra nós em guerra assidua,
Sem medo de seu Deos, crueis se mostram?
Ou porque elles de Deos ao Filho adoram,

Lhes é dado o poder de perseguir-nos?
Si elles do céo ás leis desobedecem,
Que Deos é esse então que os deixa impunes,
E vem por tua bocca ameaçar-nos? –

« Livres os homens são, lhe respondia
O illustrado varão; de livre impulso
Quer Deos que os homens seus preceitos cumpram,
Sem o que nenhum merito teriam.
Nem todas essas arvores regadas
Pelas aguas do céo dão fructos doces;
Mas vós que os bons colheis p’ra alimentar-vos,
Não destruís os troncos dos acerbos.
A grandeza de Deos dá vida a tudo,
E tudo serve a Deos por modos varios.
Elle tudo conhece, e a nenhum deixa
Sem premio ou sem castigo na outra vida. »

Com estas e outras practicas continuas
Anchieta os dias seus santificava.

No meio dessa virgem Natureza,
Onde pouco o recato occulta aos olhos
O aguilhão de paixões concupiscentes,
Elle moço e severo, p’ra furtar-se
A pensamentos vis e ao ocio indigno
Que embala os corações em devaneios,
Votos fez de cantar na Lacia lingua
A pureza da Virgem Soberana,
Que os castos pensamentos apadrinha
D’alma que ao throno seu a fé sublima.

Quando entre o céo e o mar o sol no occaso
Seus ultimos fulgores dardejava,
Tingindo o berço seu de um mesto roxo;
Nessas placidas horas em que os bosques
Se cobrem de sombria magestade,
Ia o vate christão meditabundo
Vagar sósinho na deserta praia,
Co’a mente cheia do celeste assumpto
Que em versos de seus labios derramava.
Como p’ra vel-o, e alumiar-lhe os passos,

Entre os cirios do céo se erguia a lua,
Longa zona argentina reflectindo
Sobre o mar salpicado de ardentia:
Disseras ser um rio de luz pura,
Que de vulcão celeste á flux surgindo,
Em campo diamantino deslizava.

Ao fulgor dessa luz tão cara aos vates,
Elle co’o seu bordão ia escrevendo
Seus espontaneos versos sobre a areia,
Que das vagas os beijos alizaram;
E na firme memoria recolhendo
Essa correcta pagina, deixava
Que o mar na enchente lhe varresse os traços.

Quantas vezes Aimbire receioso
Desse nocturno vaguear na praia,
Se escondia co’os seus, e o surprendia
No poetico arroubo murmurando;
Ora os olhos p’ra o céo erguendo e os braços,

Ora co’a dextra compassando a ideia.
E certos qu’elle só com Deos fallava,
Para a cabana após o acompanhavam.

Uma voz se espalhou que alli notou-se
Branca pomba adejar em torno ao vate.

Oh mil vezes feliz a alma sublime
Que abrazada no fogo da poesia,
Tudo que a toca de harmonia envolve,
Como a flor embalsama o ar que a beija!
Oh certo, quando Deos mandou que o homem
Fallasse, e elle fallou cheio de assombro,
Foi n’um hymno de amor que a alma em seus labios
Espontanea expressou seu pensamento.

Cantava Anchieta: e que ai fazer podia
Que mais grato ao céo fosse em tal soidade,
Em horas taes que o vulgo ao ocio entrega?

Mas quem alli seus cantos entendia?
O céo, o puro céo, p’ra quem cantava;
Esse céo que o inspirava; e após, mais tarde
Biblicos hymnos inspirou a Caldas,
E a São Carlos os cantos numerosos
Da siderea Assumpção da Santa Virgem.
Esse céo, onde os Anjos já sabiam
Os nomes de Durão, dos Alvarengas,
De Bazilio e de Claudio, e de outros vates,
Que em seculos futuros assomando,
A terra do Cruzeiro honrar deviam.
Inspire-me esse céo, que vio-me infante
Nos braços maternaes beber co’a vida
Esse amor da harmonia que afagou-me;
E possa ouvir meu canto derradeiro,
E o meu suspiro extremo, nessas terras
Do saudoso Carióca, onde descançam
Os ossos de meus pais. E Deos conceda
Que junto aos ossos seus meus ossos jazam.

Nessas lucubrações que a mente apuram,

Nesses santos trabalhos que edificam,
Via o servo de Deos tranquillamente
Dias, semanas, mezes ir passando,
Sem o peso sentir do sacrificio.

Cinco signos o sol passado tinha,
Do Gemini á Libra percorrendo,
Desde que alli vivia o anachoreta;
E já o ardente chefe dos Tamoyos
Longo achava o armisticio, e demorada
De Nobrega a resposta promettida,
Que os ajustes de paz ratificasse.
Os Francezes, instructos nas fallacias
Com que em casos taes a gente culta
P’ra illudir o inimigo temporisa,
A não mais esperar os incitavam.
Além disso temiam que os Tamoyos,
Os conselhos seguindo de Anchieta,
Por esperanças vãs, e iguaes promessas,
Desistissem da guerra e se espalhassem.

E elles sós nestes bosques contra os Lusos
Nem as vidas se quer salvar podiam.

Mas o chefe selvagem, cujo peito
Nem medo, nem vilezas abrigava,
Calmo lhes respondia: « Nada temo.
Tarda a resposta, é certo; e já me cança
Este longo esperar: porém Anchieta
Foi quem nos procurou co’o seu amigo,
E ambos por esta paz muito se empenham.
Elle não mente, nem fugir procura,
E confiado em nós tranquillo vive.
De que pois receiar? Que nos illudam?
Bem caro pagarão si a tal ousarem.
Não temos nós Anchieta em poder nosso? »

Já contrarias razões os indispunham,
E a zizania no campo apparecia,
Quando o santo ermitão veio dizer-lhes,

Que uma celeste voz lhe annunciára
Que como o sol tres vezes se mostrasse,
Antes de transmontar a vez terceira
Novas de paz ao campo chegariam.

Entre a duvida e a crença vacillantes,
Mas curiosos todos, acudiram
Quaes desde o amanhecer, quaes desde a sesta,
E a praia encheram na aprazada tarde.

Com espanto e prazer tumultuario,
De uma ponta de terra surgir viram
Esquipada canôa, já vizinha,
Demandando a enseada. Indio galhardo
Na prôa vinha em pé, fazendo acenos
Em signal de amizade.
    – Donde vindes?
Toda a chusma bradou.
    « De São-Vicente.
E de paz boas novas vos trazemos. »

Quem tal resposta deo foi Cunhambeba,
Que mal saltando em terra, co’os Tamoyos
Á liberdade e aos seus restituidos,
Genuflexo beijou a mão de Anchieta,
E uma carta de Nobrega entregou-lhe.
E sem mais esperar indo á canôa,
Dalli voltou com todos os remeiros
Carregados de agrarios instrumentos,
Panos de vivas córes e avellorios,
Que aos pés do padre em montes depozeram.

Lida a carta e exultando, assim se explica
O servo do Senhor: « Foi Deos servido
Minhas preces ouvir, e dar-me annuncio
Desta paz que ora vejo confirmada!
Infinita de Deos é a bondade!
Altos, inexcrutaveis seus mysterios!
Graças demos ao Céo. Não mais da guerra
Nos divida o furor. Cessem os odios,
Apaguem-se as lembranças do passado,
E vivamos em paz, oh caros filhos,

Como Deos quer que irmãos entre si vivam.
Recebei, reparti estes presentes,
Penhores d’amizade que nos une;
Instrumentos de paz, deixai por elles
Essas armas crueis tintas de sangue.
A terra cultivai, luctai com ella,
Que assim domam-se os barbaros instinctos.
Eu vos devo deixar; e assaz me custa
Separar-me de vós: porém minha alma
Lembrados vos trará. Em toda parte
Em mim tereis um defensor e amigo,
Testemunha de vossa lealdade. »

« Só por amor de ti, voltou-lhe Aimbire,
Acceitamos a paz que, não pedida,
Nos vieste propor co’o teu amigo.
Vê bem que a tua gente a não quebrante,
Que entre nós ninguem falta ao promettido. »

Inda essa noite alli juntos passaram,

Mas a crastina aurora separou-os.
Cada qual nesse ensejo ao peregrino
Trouxe por despedida alguma offrenda
De pelles de animaes, aves e fructas,
Parcos dons, que o amor encarecia.

Jamais com tanta dôr, com tanto choro
Ternos filhos o pai viram saudoso
Partir dos braços seus p’ra longes terras;
Nem do amor filial mais convencido
Mesto pai de seus filhos separou-se.
Pindobuçú, a filha e o ancião Coaquira,
Cujos peitos a fé mais penetrára,
Com vehementes instancias lhe rogavam
Que depressa voltasse áquellas plagas,
Onde por elle a suspirar ficavam.
Anchieta o prometteo; e da canôa,
Que de um tiro amarou-se, abençoou-os.

Quão pouco os embalou a doce crença

Dessa paz mal firmada. – Ai! pobres Indios!
A paz que vos outorgam taes senhores,
Que de tudo que é vosso se crêm donos,
É a vida de escravo, e o dever cego
De ceder-lhes a terra, e obedecer-lhes.
Tal é a paz que ao fraco outorga o forte,
Que a despeito da voz da consciencia
Tem convertido a força em jus sagrado,
E em suprema razão o vil egoismo.

Grosso enxame de profugos Tamoyos
Alli chegou, com Guaxará seu chefe,
Dando a nova fatal que a Lusa frota,
Com grande estrondo o Guanabara entrando,
Gente sem conta despejára em terra.

Era Estacio de Sá, que obedecendo
Da Augusta Catharina ao regio mando,
Com duas náos deixára a foz do Tejo,
E alli era chegado co’o reforço

De mais dous galeões, que na Bahia
Lhe dera Mem de Sá, seu nobre tio,
Governador geral destes Estados;
E outros navios, barcos e canôas,
Com que se reforçára em São-Vicente,
Dalli trazendo grande copia de Indios,
E os Missionarios Oliveira e Anchieta.
Ordens trazia de expulsar os Francos
De todo o Nitheroy, e em suas margens
Do Janeiro á cidade dar começo,
Como já Mem de Sá proposto tinha.

Junto do alto penedo Pão d'Assucar,
Balisa natural do immenso golpbo,
Já o Capitão-Mór entrincheirado,
De forte praça os bastiões erguia
Na praia que Vermelha hoje chamamos.

Como ao som de um trovão inesperado
Mudas e quedas por um pouco ficam

As aves que chilravam saltitantes;
Mas passado o momento da surpreza
Em confusas bandadas vão gritando:
Assim por breve espaço estatelados
Alli ficaram todos com tal nova,
E suspensos se olhavam; mas ao pasmo
Succedeo o furor; e pelo campo
Correndo em confusão, iam bradando:
« Guerra! guerra! Corramos! temos guerra! »
E sem mais esperar de Aimbire as ordens,
Armados p’ra marchar se apresentaram.

« Bem eu vos amoestei, dizia Ernesto,
Genro de Aimbire, que esta gente iniqua
Nos queria trahir com vãs promessas!
Bem eu vos amoestei que repellisseis
A proposta de paz, infame engodo
Com que temporisar só procuravam.
Vêde si eu me enganei! Eil-os agora
Que reforçados vem, jactanciosos,
Da vossa boa fé dar-vos a paga. »

No furibundo olhar do irado Aimbire
Despeito, odio, vingança flammejavam.
Do Francez as palavras como espinhos
Mais o picavam que a fatal noticia;
E o silencio da colera rompendo:
« Antes assim! bradou. Agora ao menos
Melhor conhecem todos o inimigo.
Acabou-se a piedade; e dura guerra,
Guerra de morte aos perfidos faremos.
Ronque da marcha a inubia; á guerra vamos,
E por terra e por mar, eia, partamos. »

Todos da guerra o brado repetiram,
Menos os dous anciãos, que se lembravam
Das prégações de Anchieta, e já temiam
O castigo do Céo, e o fogo eterno.

« Que ides fazer? Pindobuçú bradava:
Sabeis vós que intenção traz essa gente!
Si ella vem contra nós, ou contra os Francos,

Que inimigos são seus? Deixai, oh filhos,
Qu’elles lá entre si sem nós se matem. »

Do outro lado Coaquira ia dizendo:
« Não quebremos a paz que promettemos
Ao amigo de Deos, que p’ra salvar-nos
Nos veio procurar. Os Portuguezes
Mais fortes do que nós a paz pediram,
É que comnosco em paz viver desejam.
Porque iremos sem causa provocal-os? »

Estas e outras razões iam soltando
Os dous prudentes velhos convertidos:
Mas todos vozeando caminhavam,
Sem prestar-lhes ouvido. Só Aimbire
Indignado bradou: – Velhos, calai-vos:
Si isso é medo, ficai-vos; quem vos chama?

« Como posso ficar? volta-lhe o sogro.

Não levas tu meus filhos? E sem elles
De que me serve a vida, que me pesa?
Irei morrer com elles a teu lado;
Que si hoje algum temor me esfria os membros,
Não é da morte, ah não! é do castigo
Qu’esse terrivel Deos reserva áquelles
Que desprezam as leis dos seus ministros. »

« Quem vai crer no que diz gente tão falsa?
Replicou-lhe o guerreiro destemido.
Quão diverso te vejo do que foste!
Pensa em teu Comorim qu’elles mataram:
E despreza de Anchieta as ameaças,
E os contos vãos com que turbou-te o siso. »

Nada mais disse o velho. O extincto filho
N’alma vagou-lhe; e um ai roçou-lhe os labios.

Eil-os em fim a Nitheroy chegados;

E á vista das muralhas mal erguidas
Da nova fortaleza, onde tremúla
Das Quinas o estandarte, enfurecidos
Investem os Tamoyos, disparando
Settas e settas, que lhe chovem dentro.
Das trincheiras bramando os arcabuzes,
Entre raios e fumo a morte espargem.
Redobra-se o furor de dia em dia;
Repetem-se os ataques; dura a guerra;
Succedem-se as ciladas. Longos mezes
Se devolvem na lucta porfiosa.
Aimbire não repousa; a sua gente,
Ceifada pelas flechas e pellouros,
Com reforços continuos se renova.

Duas vezes a terra completára
Sua orbita annual do sol em torno,
E a lucta pertinaz sem fim renasce.
Cançada anda de Estacio a forte gente,
Falta de munições e de soccorro;

E o sabio capitão, que a tudo attende,
Sobre a sorte dos seus dubio e cuidoso,
Manda Anchieta á Bahia, encarregado
De expôr á Mem de Sá suas fadigas,
E pedir-lhe efficaz, prompto soccorro,
Com que possa pôr termo ao longo pleito.

Cumpre Anchieta a missão; e ao mesmo tempo
O ensejo aproveitando, alli recebe
Do seu noviciado o augusto premio,
Que os deveres lhe impõe do sacerdocio.

Mem de Sá, cujo peito ama as fadigas
E os perigos da guerra, aprestar manda
A armada, e prompto vem, trazendo Anchieta,
Dar a Estacio soccorro decisivo.

No Aquorio signo, em meio, o sol gyrava,
Quando de Nitheroy no immenso golpho

Entrou soberba a protectora armada,
Saudando a terra e a nova fortaleza
Co’os trovões das flammigeras bombardas,
Que respondidos foram das ameias.

Ao prolongado, horrisono ribombo,
Que no vasto reconcavo resôa,
Surgem dos bosques, accorrendo ás praias,
Grandes cardumes de emplumados Indios,
Qual espessa floresta movediça,
Que do mar de improviso assombra as margens.

Vê-se entre elles Aimbire, olhando attento
Para a armada fatal. Na capitanea
Fitos os olhos tem; e a reconhece:
– É Mem de Sá! – murmura. E do passado
Cruel recordação lhe aviva n’alma
Do forte Coligny o atroz combate,
E põe-lhe o vencedor alli presente!
Essa náo, essa náo morte lhe augura!

Passa a dextra na fronte anuviada;

Mesto os olhos do mar ergue ás montanhas,
Que sublimam do golpho a magestade;
E as vai como saudando. Após os volve
De um lado e d’outro aos seus, á filha, á esposa,
Que alli com elle estão. Adeos saudoso,
O ultimo adeos, dizer parece a tudo.
De novo involuntario a náo attenta;
E a lagrima, que a dôr lhe nega aos olhos,
Lhe cahe no coração petrificada!

– Ficaremos aqui? – Bradou-lhe Ernesto.
– Que nos cumpre fazer? –
    Como acordando:
« Combater e morrer! – voltou-lhe Aimbire.
Não podemos no mar ir atacal-os;
Mas vamos esperal-os nas trincheiras
De Parnapicuhy. Da nossa gente
Em Uruçú-merim metade fique,
P’ra que melhor possamos defender-nos,
Sem tudo aventurar n'um só combate. »
Disse, e a um aceno as turmas o seguiram,
Deixando as praias que branquejam nuas.

Entretanto em concilio se reunem
Estacio e Mem de Sá, e os mais illustres
Da companha dos dous. Conformes todos
Sobre o plano de ataque discutido,
Commette Mem de Sá a grande empreza
A seu nobre sobrinho; decidindo
Que no crastino dia, consagrado
Ao Santo Padroeiro da cidade,
Rompa a batalha ao resurgir da aurora.

Ao alvorar da fausta madrugada
P’ra a morte a brava gente se apparelha,
Com grande devoção ouvindo a missa
Que Dom Pedro Leitão na náo celebra;
E a benção do prelado recebendo,
Em rapidos bateis demanda a terra.

Já de Uruçú-merim os defensores,
Que Ernesto e Araray capitaneam,
Francezes e Tamoyos, nas trincheiras
Com pellouros e settas os recebem.
Já em terra os do mar saltando avançam

Por São Sebastião chamando todos.
Estacio os guia, ninguem teme a morte!
N’ala direita vai Gaspar Barboza,
Illustre capitão de mar e guerra;
E na sinistra Salvador Corrêa,
De Estacio e Mem de Sá primo e sobrinho,
Que por morte d’aquelle tomar deve
Bem cedo do Janeiro a governança.

Trava-se horrenda e se encarniça a lucta;
Roncam bombardas, arcabuzes troam,
Balas e frechas pelos ares zunem.
Ninguem cede em valor ao seu contrario;
E no ardor de matar ninguem se guarda.
Já nos fossos espuma o sangue em lagos,
Em que rolam cadav’res mutilados,
E sobre elles os vivos ás trincheiras,
Leões ferozes, rabidos investem.
– Victoria! – brada Estacio; e o furor cresce
De um lado e d’outro ao grito de victoria.
Inutil resistencia!… Indios, Francezes,
E os seus chefes na atroz carnificina

Mortos todos em montes cahem por terra!
Tambem alli da vida despedio-se
O bravo capitão Gaspar Barboza,
E outros muitos varões e gente ignota,
De grandes feitos instrumento inglorio.

Á Parnapicuhy os vencedores
D’alli vão gloriosos e açodados.
Lá os espera Aimbire. Eil-o! seus olhos
Parecem fuzilar vendo o inimigo.
Ao crebro trovejar da artilharia
Sua alma irada como o mar se espraia.
Não repousa seu braço; a morte o impelle,
E em cada frecha ervada um raio vibra.
Em torno delle em vão seus companheiros
Feridos cahem bramando, ou mortos rolam
Salpicando-o de sangue: elle os conculca,
E a toda parte vôa. Em vão lhe zunem
Os pellouros em torno: elle os affronta!
Das trincheiras pedaços arrancados
Curvos lhe passam sobre a hirsuta fronte.
Sobre combros de mortos e ruinas

Desafiar parece a terra e o inferno,
Que ante elle em fumo, em fogo se desfazem.
Abobadas de fumo, em que lampejam
Mil vermelhos fuzis, o azul encobrem
Do céo de Nitheroy. É noite horrenda,
Medonho meteóro onde combatem
Demonios infernaes… Aimbire! Aimbire!
Vê quão poucos dos teus já se defendem!
Em vão luctas, oh Indio! O sol que desce,
Occulto aos olhos teus por tanto fumo,
Ha de ver amanhã a cruz alçada
Nas praias do Janeiro, e della em torno,
Á voz de Mem de Sá victorioso,
Erguer-se uma cidade, a quem destina
Grande futuro o Céo…
    Inda um momento
O Indio seguirei. Victima illustre
De amor do patrio ninho e liberdade,
Elle que aqui nasceo nos lega o exemplo
De como esses dous bens amar devemos.

Poucos lhe restam da guerreira tribu,

Que livre aqui nasceo e morreo livre.
Iguassú, sua esposa, que o não deixa,
Varado o peito, aos pés lhe cabe e expira,
Sem exhalar um ai! Pára instantaneo
O indomito Tamoyo. Ante o inimigo,
Que victoria já brada, Estacio avulta,
E uma setta de Aimbire a esposa vinga,
Ferindo o Capitão, que da victoria
Por poucos dias gozará dos louros.
Rapido após como um possesso toma
O cadaver da esposa, ao hombro o lança,
Empunha a herculea maça e feroz brada:
« Tamoyo sou, Tamoyo morrer quero,
E livre morrerei. Comigo morra
O ultimo Tamoyo; e nenhum fique
Para escravo do Luso: a nenhum delles
Darei a gloria de tirar-me a vida. »

Rabido e cego, meneando a maça,
Foi abrindo uma estrada de cadav’res
Por entre o inimigo, e ao mar lançou-se.

Quando no dia crastino os valentes
Companheiros dos Sás já destas plagas,
Que Anchieta abençoára, se apossavam,
Traçando do Janeiro os fundamentos,
E a São Sebastião um templo erguendo,
Viram nas ondas fluctuar dous corpos,
Que o mar na enchente arremessára ás praias.
De Aimbire e de Iguassú os corpos eram!
Vio-os Anchieta com chorosos olhos:
Para a terra os tirou; e nessa praia,
Que inda depois de mortos abraçavam,
Sepultura lhes deo, p’ra sempre unidos.

Excelso Imperador, que justo empunhas
O Sceptro do Brasil, onde Teu berço
Por seu ardente amor foi embalado;
Onde um só coração não ha que um throno
De amor Te não consagre; onde espontaneas
De livres cidadãos as gratas vozes
Tuas grandes virtudes apregoam:

Tu, cuja vida vivifica os germens
Da gloria nacional, que Te circunda;
Defensor do Brasil, Tu que, instruido
Dos deveres de Rei, sabes que o throno,
Barreira de paixões desordenadas,
O apoio deve ser da liberdade,
Da justiça e da paz, e o altar sagrado,
Cujo fogo perenne animar deve
Sciencias, lettras, artes, e virtudes;
Monarcha Brasileiro, acceita o canto
Que Te dedica o vate agradecido;
E faze que outros muitos mais ditosos,
Porém não mais da nossa terra amigos,
Eterna gloria dêm a Ti e á Patria.

FIM.