As Mulheres de Mantilha/XXXV

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XXXIV

A tarde e noule da terça-feira, o ultimo dia do entrudo, forão de alegria, de delirio, de phrenesi, e de innocente loucura na cidade do Rio de Janeiro.

O jogo do entrudo prohibido nos seus dous primeiros dias, e autorisado na tarde e noute do terceiro foi como o impeto da inundação que vence e destroe o dique que se lhe oppunha.

O fervoroso exaltamento da população na costumada festa de tres dias reduzida a ametade do terceiro e ultimo dia, vingou-se da prohibiçâo, ostentando desenfreado furor do entrudo, e gozo pacifico, jubiloso, enthusiastico do jogo tantas vezes provocador de richas e desordens, e então somente excitador de ruido festivo, e de risadas expansivas e amigas.

A industria annual e ephemera dos limões de cheiro era exclusivamente explorada por senhoras de familias pobres e como em prova de gratidão ao despacho que o Vice-Rei dera ao requerimento, dezenas de mulheres de mantilha seguidas de multidão de ambos os sexos, rodearão á tarde da terça-feira o palacio, dando vivas ao Vice-Rei conde da Cunha que pela primeira vez os recebia expontaneos.

Feito esse passeio de ostensivo reconhecimento, os acclamadores do conde da Cunha espalharão-se pela cidade, onde em quasi todas as casas as familias, e em todas as ruas paisanos de mistura com soldados, estudantes, operarios, mulheres e meninos se entrudavão phreneticamente.

O velho Clelio Irias foi talvez o unico habitante da cidade que maldisse da contra ordem do Vice-Rei, porque menos commodamente, e sem duvida expondo-se a algum banho, tinha de ir á casa de Alexandre Cardoso; mandou porém pedir de emprestimo a cadeirinha de um seu compadre, e mettendo-se nella, fez-se conduzir, levando as cortinas fechadas, e á caminhar adiante um escravo, que bradava aos grupos de jogadores de entrudo: « é doente que vai para a Santa Casa! » e com effeito a cadeirinha levava a direcção da rua da Misericordia, onde morava o ajudante official da sala.

A multidão respeitou a cadeirinha que emfim parou á porta da casa de Alexandre Cardoso.

Clelio Irias subio a escada e foi recebido pelo futuro socio que se achava só.

Sentarão-se os dous em frente um do outro.

— Trazes o dinheiro ? perguntou Alexandre Cardoso.

— Certamente e tambem a claresa da divida antiga.

— Bem: eu te garanto ampla e constante protecção em materia de administração de obras do rei, e de fornecimentos que forem necessarios para as tropas: prescindo da parte que me offereceste nos lucros e...

— Mas eu não prescindo: quero-o por socio, senhor ajudante official da sala; é essa uma honra de que faço questão.

— Sociedade sob palavra.

— Lá isso como lhe parecer?

— Sugeito-me, Clelio Irias: é negocio concluido.

— E as tres folhas de papel?...

— Dar-te-ei trezentas.

Bastão-me as tres que contem a denuncia e os dous officios.

Alexandre Cardoso resistio e durante uma hora empregou debalde todos os argumentos e todo o empenho para fazer com que o velho uzurario não insistisse nessa condição cruel; este porém ria-se e dizia:

— Cada um sabe as linhas com que se cose.

Porfim o ajudante official da sala sacou do bolso as tres folhas de papel exigidas, e atirou-as a Clelio Irias, dizendo:

— Toma-as pois, velho do diabo!

Clelio Irias examinava com o maior cuidado o papel e a letra e linha por linha, e palavra por palavra os tres escriptos, e rindo-se outra vez com o seu riso repugnante, observou:

— Não ha que notar... são os mesmos...

— Ouzavas pô-lo em duvida, malvado uzurario?...

— Cada um sabe as linhas, com que se cose.

Alexandre Cardoso em outro qualquer dia houvera castigado a insolencia de Clelio Irias; nesse porém, tanto o aviltava a necessidade de dinheiro, ou nelle podia alguma consideração, que em vez de repellir o insulto, disse:

— Dei-te os papeis que por mim e por ti deves encerrar para sempre no fundo da tua burra de ferro: da-me agora a clareza e os cinco mil cruzados

Clelio Irias desabotoou o jaleco, e logo em seguida um bolso de couro preso á face interna do mesmo jaleco, e fechado com botões de metal na parte superior: tirou um pequeno sacco, e delle a claresa passada e assignada desde dous annos por Alexandre Cardoso de Menezes, e peças de ouro no valor de cinco mil cruzados.

O ajudante official da sala recebeu e guardou a claresa e o dinheiro, e Clelio Irias fechou no bolso de couro as tres folhas de papel e disse:

— Agora, sim, está o negocio concluido.

— Retira-te pois, velho maldito: por hoje basta de aturar-te,

— Mas prepare-se para aturar-me depois de amanhã.

— Tão depressa!

— Trar-lhe-ei o plano das primeiras operações da nossa sociedade.

O ajudante official da sala sorriu-se, e Clelio Irias tomou o chapéo, e fez sua reverencia de despedida.

Alexandre Cardoso acompanhou o velho até a porta que trancou sobre elle, e dirigiu-se com precipitação para o interior da casa.

Clelio Irias accommodou-se na cadeirinha, cerrou as cortinas e mandando que o levassem de volta por outras ruas, incumbido o escravo que caminhava na frente de annunciar aos jogadores de entrudo: « é uma senhora que cahiu na rua com um ataque de cabeça! »

A cadeirinha seguiu pela rua da Misericordia, Praça do Carmo, (hoje Praça de D. Pedro II) rua Direita, rua do Ouvidor, aproveitando-lhe quatro vezes o triste annuncio da senhora com ataque de cabeça; tomou depois pela rua dos Ourives; mas no ponto em que esta rua corta em angulos rectos a da Cadeia (actualmente da Assembléa) um grupo numeroso de entrudadores com limões de cheiro, seringas, e baldes d'agua avançou, galhofando, para a cadeirinha. .

— E' uma senhora que cahiu na rua com um ataque de cabeça! bradou o escravo.

Os brincadores hesitavão.

— Que graça! exclamou um homem alto, corpulento e que pelo trajar indicava ser official ou mestre de officio: que graça ! este mesmo pregoeiro annunciou, ha duas horas, nesta mesma cadeirinha um doente levado para Santa Casa!....

— E' pulha! é pulha! gritavão muitas vozes.

— Vejamos a doente!.... vejamos a senhora!...

E o homem alto e corpulento, lançando-se á diante de todos, abrio á força as cortinas da cadeirinha, e arrancou de dentro e mostrou suspenso em seus braços de ferro o velho Clelio Irias, cuja voz se perdeu no meio das gargalhadas e da algazarra da gente que formava o grupo e da que corria para applaudir o caso que tanta alegria excitava.

Preso pelas pernas e braços, empurrado para lodos os lados, já todo molhado dos pés á cabeça cego pelos esguichos das seringas, surdo pela tempestade de gritos, o velho usurario lutava e se estorcia em vão.

— Um banho! um banho! um banho!

Um enorme gamelão cheio d'agua estava perto no meio da rua para o serviço do entrudo: o homem alto e corpulento disputava á vinte outros a gloria de levar o velho ao banho, e na luta e no esforço rompião-se os vestidos da victima que pelo hercules que desde o principio o agarrara, foi conduzido e mergulhado no gamelão.

Com a força prodigiosa, suprema que em desespero ostentão os ameaçados de asphixia por submersão Glelio Irias poz a cabeça fóra d'agua e bramio furioso:

— Não me affoguem !

— Ninguem o quer affogar; mas aprecie ahi o seu banho! respondeu o hercules, comprimindo com as mãos o peito do velho que á reagir contra a força que o esmagava, estorcia-se nas mãos do homem terrivel, que escorregavão para um e outro lado, e cujos dedos no fervor da luta ainda mais lhe despedaçavão os vestidos.

— Basta! basta ! exclamarão finalmente muitas vozes.

— Pois basta; respondeu o hercules, e deixando livre das suas garras o velho, afastou-se e desappareceu no meio da multidão.

Clelio Irias sahio do gamelão do banho no meio de estrondosas risadas, e sem mais lhe importar a cadeirinha, dirigiu-se colerico e precepitado para a sua casa que bem perto ficava, pois era, como dissemos, na rua do Parto, e nella entrando, hia mudar de roupa, quando vio que o bolso de couro de seu jaleco estava despedaçado, e que havia perdido ou lhe tinhão roubado os tres documentos.

O velho soltou um rugido, e correu, como estava para o lugar, onde recebera o violento banho: ali chegando, exclamou:

— Perdi ou roubarão-me papeis preciosos! eu os quero, eu os peço! eu exijo os meus papeis!....

Algumas pessoas condoerão-se da afflicção do velho, e empenharão-se improficuamente em descobrir os objectos perdidos.

Clelio Irias fóra de si em phrenetico ardor marchou apressadamente para casa de Alexandre Cardoso, á cuja porta encontrou-se com um soldado:

— O senhor ajudante official da sala? perguntou o velho uzurario.

— Procure-o amanhã.

— Como? não está em casa?

— A' estas horas nunca.

— Sou excepção; para mim elle está sempre em casa.

— Faça pois o senhor um milagre: não ouve o galopar de um cavallo?

Clelio Irias attendeu ao ouvido, e respondeu logo:

— Ouço.

— E' o senhor tenente-coronel, que apressa o seu cavallo.

— Onde vae elle ?

O soldado rio-se, e tornou dizendo:

— Elle tem tanto onde ir!...

O velho usurario cahio sentado na soleira da porta, sobre os joelhos descansou os braços, sobre estes a cabeça, reflectio por alguns minutos, levantando-se de subito:

— Maria de.... é a sua amante: elle deve estar lá.... disse ao soldado.

E sem esperar pela resposta, caminhou com accelerados passos.