Auto da Lusitânia
Aspeto
Entra Todo o Mundo, homem rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que se lhe perdeu; e algo após ele um homem, vestido como pobre, este se chama Ninguém, e diz:
Ning.:
- Que andas tu aí buscando
T. Mund.:
- Mil cousas ando a buscar:
- delas não posso achar,
- porém ando porfiando.
- por quão bom é porfiar.
Ning.:
- como hás o nome, cavaleiro?
T. Mund.:
- Eu hei nome Todo o Mundo,
- e meu tempo todo inteiro
- sempre é buscar dinheiro,
- e sempre nisto me fundo.
Ning.:
- Eu hei Ninguém,
- e busco a consciência.
Belzebu:
- Esta é boa experiência:
- Dinato, escreve isto bem.
Dinato:
- Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
- Que Ninguém busca consciência,
- e Todo o Mundo dinheiro.
Ning.:
- E agora que buscas lá?
T. Mund.:
- Busco honra muito grande.
Ning.:
- E eu virtude, que Deus mande
- que tope com ele já.
Belzebu:
- Outra adição nos acude:
- escreve logo aí, a fundo,
- que busca honra Todo o Mundo,
- e Ninguém busca virtude.
Ning.:
- Buscas outro mor bem qu'esse?
T. Mund.:
- Busco mais quem me louvasse
- tudo quanto eu fizesse.
Ning.:
- E eu quem me reprendesse
- em cada cousa que errasse.
Belzebu:
- Escreve mais.
Dinato:
- Que tens sabido?
Belzebu:
- Que quer um extremo grado
- Todo o Mundo ser louvado,
- e Ninguém ser reprendido.
Ning.:
- Buscas mais, amigo meu?
T. Mund.:
- Busco a vida e quem me dê
Ning.:
- A vida não sei que é,
- a morte conheço eu.
Belzebu:
- Escreve lá outra sorte.
Dinato:
- Que sorte?
Belzebu
- Muito garrida
- Todo o Mundo busca vida,
- e Ninguém conhece a morte.
T. Mund.:
- E mais queria o paraiso,
- sem mo ninguém estovar.
Ning.:
- E eu ponho-me a pagar
- quanto devo para isso.
Belzebu:
- Escreve com muito aviso.
Dinato:
- Que escreverei?
Belzebu:
- Escreve
- Que todo mundo quer paraíso,
- e Ninguém paga o que deve.
T. Mund.
- Folgo muito d'enganar,
- e mentir nasceu comigo.
Ning.:
- Eu sempre verdade digo,
- sem nunca me desviar.
Belzebu:
- Ora escreve lá, compadre,
- não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
- Quê?
Belzebu:
- Que Todo o Mundo é mentiroso,
- e Ninguém diz a verdade.
Ning.:
- Que mais buscas?
T. Mund.:
- Lisonjear.
Ning.:
- Eu estou todo desengano.
Belzebu:
- Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
- Que me mandas assentar?
Belzebu:
- Põe ai mui declarado,
- não te fique no tinteiro:
- Todo o Mundo é lisonjeiro,
- e Ninguém desenganado.