Contos Populares Portuguezes/A herança paterna

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XVII


A HERANÇA PATERNA

Era d’uma vez um pae que tinha dois filhos, dos quaes o mais novo lhe disse um dia: — «Meu pae, dê-me a minha tença, que eu quero ir correr terras a ver se junto fortuna.» Então o pae deu-lhe o que lhe pertencia da parte da mãe e elle partiu-se para longes terras.[1]

Passaram-se alguns tempos e o rapaz vendo que não juntava fortuna, antes ia gastando a sua tença, resolveu-se a voltar á casa paterna. Chegado á sua terra natal soube logo que seu pae havia fallecido e que seu irmão transformara a casa em um palacio onde vivia regaladamente. Então o rapaz foi ter com o irmão, contou-lhe a sua vida e o irmão respondeu-lhe: — «Eu nada te posso fazer, pois o nosso pae nada me deixou, e a ti deixou-te essa caixa velha, recommendando-me que não a abrisse.»

Recebeu o rapaz a herança paterna e partiu para outras terras; no caminho desejou ver o que continha a caixa e abriu-a; eis que lhe sae de dentro um pretinho, muito pequenino, que lhe diz: — «Mande, senhor.» — «Mando que me apresentes um palacio com tudo quanto lhe é dado, carruagens e lacaios para me servirem.»

Dito e feito; tudo appareceu como elle desejava. Vivia o rapaz muito feliz no seu palacio, que era muito mais bello que o do rei, quando um dia recebeu a noticia de que seu irmão o ia visitar. Foi o irmão recebido ali com grandes festas e elle então perguntou-lhe como é que em tão pouco tempo tinha arranjado tanta coisa. — «Foi a herança que me deixou o nosso pae.» — «Mas, retrocou o irmão, a tua herança foi uma caixa velha.» — «Foi o que tu dizes, na verdade; mas dentro d’essa caixa é que está o segredo.»

Então o irmão tractou de lhe roubar a caixa e, sem que elle désse por isso, saiu do palacio. Chegado á sua, terra abriu a caixa e logo o pretinho disse: — «Mande, senhor.» — «Mando que meu irmão fique sem o seu palacio e appareça mettido n’uma prisão e que o meu palacio se transforme n’um mil vezes melhor do que era o d’elle.»

Tudo assim se fez e elle disse mais ao pretinho: — «Ordeno que faças com que a filha do conde de tal case commigo e que eu fique com o titulo de conde.»

Cumpriu-se tudo como elle desejava e para não lhe roubarem a caixa trazia-a sempre comsigo e dormia com ella debaixo da cabeça.

Ora o irmão que estava preso tinha um cão e um gato que logo que souberam que o seu dono estava preso tractaram de ir ter com elle á prisão. Chegados lá souberam que o conde irmão do seu dono lhe tinha roubado a caixa e cuidaram ambos de ir ao palacio d’elle para trazerem a caixa. Para esse fim fizeram um batel de casca de abobora, pois tinham de atravessar o mar.

Chegados ao palacio do conde souberam logo que elle dormia com a caixa debaixo da cabeça e então o cão disse ao gato: — «Eu metto-me debaixo da cama e tu vaes á cozinha molhar o rabo no vinagre e chegas com elle ao nariz do conde e, emquanto elle espirra, eu tiro a caixa e depois fugimos com ella.»

Assim fizeram, e logo que se acharam fóra do palacio embarcaram no batel e foram navegando; e então avistaram um navio de ratos que assim que os viram içaram bandeiras de guerra; mas elles que iam de paz, não fizeram mal aos ratos e contaram-lhe o motivo que ali os levava; então os ratos disseram; — «Se formos precisos ao seu serviço, aqui estamos.» — «Obrigados» responderam o cão e o gato.

Quando já estavam quasi no termo da viagem tiveram grande questão por causa de decidirem qual havia ir levar a caixa ao dono, e n’este dize tu, direi eu, deixaram cair a caixa ao mar. Então o cão todo afflicto disse: — «Valha-me aqui o rei dos peixes.» E logo appareceu um grande peixe que lhe disse: — «Aqui estou; dize o que queres.» — «Eu vinha em viagem mais o gato e traziamos uma caixa que nos caiu ao mar e só vossa magestade nos póde valer.» — «Eu não sei d’isso mas vou chamar os meus vassalos, pois talvez elles saibam.» Então vieram muitos peixes e uma lagosta que trazia uma perna quebrada disse: — «Eu vi essa caixa, por signal que me cahiu sobro uma perna o m’a partiu.» O rei dos peixes ordenou-lhe que fosse buscar a caixa e deu-a ao cão e tanto este como o gato depois de mil agradecimentos partiram para a prisão do seu dono, resolvendo levarem ambos a caixa ás costas.

O dono ficou muito contente e abriu a caixa e disse ao pretinho: — «Quero desfeita esta prisão; quero um palacio em frente do de meu irmão e quero casar com a filha do rei.»

Tudo assim foi e elle então foi ter com o irmão e disse-lhe: — «Podia fazer-te muito mal, mas não quero; antes hei-de repartir comtigo a minha riqueza e seremos d'hoje em deante muito amigos.»

Esquecia-me dizer que o cão e o gato tiveram colleiras d'ouro fino e pedras preciosas e morreram muito velhos.

(Coimbra.)




Notas do autor[editar]

  1. De longe faz o povo um adjectivo.