Contos Populares Portuguezes/Os dois irmãos

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XVIII


OS DOIS IRMÃOS

Eram d’uma vez dois irmãos que eram soldados d’um regimento francez, mas que eram tão maltratados que até fome passavam. Um dia disse o mais novo para o mais velho: — «Irmão, isto não se pode soffrer; é melhor nós fugirmos e irmos correr esse mundo de Christo.» Respondeu o mais velho: — «Não, que nos podem apanhar e matar-nos.» O mais novo, porém, não o quiz attender e um bello dia fugiu. Caminhou, caminhou sem encontrar que comer até que foi ter á porta d’uma grande quinta onde avistou um formoso pomar em que as laranjeiras vergavam ao peso das laranjas. Bateu á porta e tornou a bater e como lh’a não viessem abrir, resolveu-se a escalar o muro para ir comer laranjas. Como não lhe apparecesse ninguem, elle comeu a fartar e escondeu entre o fato as laranjas que poude, para continuar a sua jornada; mas ao chegar ao muro por onde tinha entrado por mais esforços que fez não lhe foi possivel subir e ouviu uma voz que lhe dizia: — «Para fóra não, para dentro sim.» Elle respondeu: — «Se é pelas laranjas, ellas ahi ficam.» E dito isto, deitou no chão as laranjas que levava comsigo.

Passaram-se muitas horas e elle vendo que não conseguia sair foi passear pela quinta e então depararam-se-lhe vistosos jardins, lindos pomares e verdes hortas.

Estava já cansado de tanto andar, até que chegou a um lindo palacio e entrou e foi dizendo: — «Com licença, com licença.» Ninguem lhe respondia. Afinal foi ter a uma sala onde encontrou uma linda menina que estava bordando. Elle desfez-se em desculpas e contou-lhe o que lhe tinha succedido; ella então respondeu-lhe que não tinha nada a desculpar, antes estimava muito vel-o e que se elle quizesse podia ficar n'aquelle palacio. Como se decidisse a ficar, ella levou-o a uma varanda e mostrou-lhe os jardins, hortas e pomares, e, como elle se mostrasse maravilhado de tudo quanto via, perguntou-lhe ella o que de tudo quanto tinha visto desde que entrava no palacio lhe tinha mais agradado. O rapaz, como a fome apertasse, respondeu que o que mais lhe agradava eram as couves que elle via na horta. Á ceia mandou a menina que lhe apresentassem na mesa um prato de couves e combinou com a criada que quando estivessem á mesa apagasse ella a luz. Estavam pois a menina e o rapaz para cear e a criada, fingindo que ia espivitar a luz apagou-a; então a menina levantou-se e disse: — «Cada qual se agarre á coisa de que mais gostar.» E o soldado agarrou-se ao prato das couves. A menina despeitada disse-lhe: — «Visto que gostaes tanto de couves é bem que eu vos mostre as que ainda não vistes.» E n'isto conduziu-o a uma varanda que deitava para um curral de porcos e deitou-o para lá.

Por mais que o pobre soldado pedisse á menina que o tirasse d'alli, ella não o quiz attender e lá o deixou até ao dia seguinte.

O irmão mais velho do rapaz, quando deu pela falta d'elle, fugiu tambem; seguiu os mesmos caminhos que o irmão seguira e succederam-lhe as mesmas aventuras; quando, porém, a menina do palacio lhe disse que se agarrasse áquilo de que mais gostasse, elle agarrou-se a ella e disse-lhe que de tudo que vira no palacio e na quinta era ella que mais lhe agradára. Então a menina respondeu-lhe que estava encantada n'aquelle palacio até que lá fosse ter um homem que gostasse mais d'ella do que das riquezas que a cercavam; que era filha de um rei o qual determinára que houvesse umas justas para ella escolher entre os cavalleiros o que devia ser seu esposo e portando que se apresentasse elle muito bem vestido, que entre todos só o havia d'escolher a elle.

Á noite mandou a princeza preparar uma rica cama em um quarto fronteiro ao d'ella; mas elle quando ia para se deitar em vez de ir para o quarto que lhe destinaram foi para o da princeza. Esta quando lá o viu disse-lhe: — «Enganaste-te que não era este o quarto que te estava destinado, mas fica, pois vaes em breve ser meu esposo.» Depois contou-lhe o que succedera com o outro soldado e elle logo de madrugada pediu para o ir vêr e ao reconhecer o seu irmão pediu á princeza que lhe désse a liberdade o que ella fez, dando-lhe muitas riquezas e mandando-o que seguisse o seu caminho.

No dia seguinte disse ao seu escolhido que era preciso que elle saisse do palacio e que fosse para tal hospedaria, que em sendo o dia das justas o iria avisar, pois convinha que o rei seu pae não soubesse o que se tinha passado. Depois de se abraçarem, separaram-se.

O soldado foi ter á tal hospedaria e como a dona da casa tivesse uma filha muito linda e como ella percebesse que o soldado tinha muito dinheiro, taes artes empregaram para prender o rapaz na hospedaria que até lhe deram a beber agua com dormideiras a ponto que elle não podia acordar e dormia de noite e de dia.

Como se approximasse o dia das justas, a princeza foi procurar o soldado e responderam-lhe que estava a dormir. A princeza para não o acordar voltou no dia seguinte e deram-lhe a mesma resposta. Ella então foi ter ao quarto onde elle estava e escreveu-lhe no punho da camisa: — «Tal dia são as justas.» Elle quando acordou reparou no que estava escripto no punho da camisa, recordou-se do ajuste e levantou-se da meza sem attender ás donas da casa que lhe pediam que antes de partir bebesse uma gota d'agua.

Chegado o dia das justas, o soldado vestiu um fato mais rico ainda do que os dos fidalgos que iam ás justas; montou um rico cavallo e foi passear debaixo da janella da princeza, mas ella não o conheceu. Então o rei perguntou á princeza qual era o seu escolhido, ao que ella respondeu que o seu escolhido não apparecera.

Findas as justas, convidou o rei todos os cavalleiros para jantar. O soldado foi sentar-se perto da princeza, e mostrou-lhe a manga da camisa e então ella levantando-se disse, indicando o soldado: — «Eis aqui o escolhido do meu coração; é este o unico homem que me preferiu ás riquezas que me cercam.» Casaram e viveram no meio das maiores felicidades.

(Coimbra.)