Galeria dos Brasileiros Ilustres/Bernardo Pereira de Vasconcelos

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Bernardo Pereira de Vasconcelos, um dos maiores vultos da história contemporânea brasileira, nasceu na antiga Vila Rica, hoje cidade de Ouro Preto, em 27 de agosto de 1795. Foram seus pais o Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, e D. Maria do Carmo Barradas; seus avós maternos o Dr. João de Sousa Barradas e D. Jacinta Maria da Fonseca Tavoreda e Silva; seus avós paternos o coronel Jerônimo Pereira de Vasconcelos e D. Ana Jacinta da Natividade.

Dotado de viva compreensão, foi por seus pais destinado desde logo à carreira dos estudos, e mandado para Portugal aos 12 anos de idade, para, sob direção de pessoas de alta posição da sua família portuguesa, aproveitar as lições mais apuradas decerto nas aulas da metrópole do que o podiam ser nas da colônia.

Corria infelizmente o ano de 1807: os acontecimentos políticos embaraçaram a realização da intenções paternas. O navio que levava o menino brasileiro foi aprisionado e dirigido para a Inglaterra; Portugal estava então ocupado pelas armas da França, e a França estava nas suas grandes guerras com a pátria de Pitt, ou antes com a Europa inteira.

Da Inglaterra teve de regressar para o Brasil, e de aqui concluir os estudos preparatórios. Seguindo outra vez para Portugal em 1813, matriculou-se nas aulas de direito da Universidade de Coimbra, freqüentando-as com a maior distinção, e saindo enfim em 1818 com o grau de bacharel formado.

Na companhia de seus tios, o conselheiro do Estado Fernando Luís de Sousa Cardoso e Silva e Dr. Bernardo de Sousa Barradas, conservou-se um ano em Lisboa, para completar os seus estudos jurídicos: só em 1820 regressou à pátria.

Consagrou-se à profissão de advogado: mas tão abundantes naquela época não eram os homens de estudo, que fosse possível ao jovem legista seguir a sua vocação para essa profissão; foi logo despachado juiz de fora de Guaratinguetá, na província de S. Paulo. Daí, de volta para Ouro Preto, obteve a nomeação de desembargador da Relação do Maranhão.

A este tempo agitava-se o país: a revolução da Independência, a convocação da Constituinte, seus debates, suas lutas, sua dissolução, tinham-se sucedido, sem que ao distinto jovem coubesse nesses primeiros ensaios da vida política do país grande papel. Proclamada porém a constituição, convocada a primeira assembléia legislativa, Bernardo Pereira de Vasconcelos, eleito entre os representantes da província de Minas, veio sentar-se nesse recinto de que não devia mais arredar-se, sem embargo de todas as vicissitudes dos tempos, até que fosse ocupar a cadeira vitalícia de senador.

Então começou a vida pública desse homem, cuja falta ainda hoje todos lamentam.

Bom senso nesse grau tão apurado que é quase gênio, amor ao estudo, facilidade de concentrar-se na mais profunda atenção, força de iniciativa para descobrir a solução das complicações, vastidão de conhecimentos, sempre aumentada por indefesso estudo de todas as horas, tornaram esse homem o que os contemporâneos presenciaram, o que a posteridade, consultando os monumentos das nossas leis, os anais do nosso parlamento, os registros do nosso conselho de estado, há de por certo admirar.

Para isso tudo concorreu: até a sua saúde deteriorando-se, pregando-o à cadeira e ao leito por fatal paralisia, como que o obrigava a concentrar a vida nas faculdades intelectuais, e lhe não deixava por única distração as dores constantes, por única ocupação, senão o estudo, a leitura refletida dos melhores livros, a conversa familiar e instrutiva. Sempre afável, Vasconcelos abria todas as noites a sua sala a quem quer que o procurasse; com a mais prazenteira amabilidade, sem que nunca esmagasse os outros com a sua superioridade intelectual, punha a conversação na altura da inteligência dos que com ele estavam, e sabia destarte aproveitar todos os conhecimentos que cada qual podia ter, em qualquer especialidade.

Com esses dotes entrando na vida pública, Vasconcelos alis-tou-se necessariamente entre esses deputados brasileiros e liberais que, em oposição ao governo, procuravam dar ao país a verdade do regime constitucional, e as instituições prometidas pela constituição. No meio das patrióticas aspirações que então se multiplicavam, poucos eram os homens práticos, poucos os que aos princípios e às teorias podiam acrescentar conhecimentos positivos de administração e de governo. Entre esses poucos, Vasconcelos era um dos mais notáveis e nos trabalhos dessas câmaras que nos deram a organização superior do Tesouro, da Caixa da Amortização, do Supremo Tribunal de Justiça, das câmaras municipais, que enfim organizaram o país tão recentemente constituído em nação, ampla participação teve ele.

D. Pedro o chamou logo em 1828 para o Ministério; mas então o regime parlamentar não era compreendido no país; entendia-se que o deputado liberal devia condenar-se eternamente à posição de adversário do governo, nunca aceitar o poder. Por deferência aos seus amigos políticos, Vasconcelos teve de curvar-se a essa doutrina, e de repelir o convite da coroa. A luta assim travada, a questão política assim entendida, não podia ter desfecho senão em uma revolução; ela apareceu.

Nem se julgue que se aceitasse o poder, quando a ele chamado, Vasconcelos teria salvado o país; primeiro, era mais do que certo que a corte o não receberia nas condições legítimas de ministro parlamentar; em segundo lugar, com todo o seu prestígio e todo o seu talento, é mais do que provável que Vasconcelos, ministro nessa época, sem dominar a torrente, teria sido abandonado pelos amigos, considerado trânsfuga da causa popular. Cumpria pois deixar que o tempo trouxesse as suas grandes lições, e provasse aos liberais que a oposição não é senão o combate para triunfo de uma idéia, triunfo que se efetua no dia em que é ela chamada ao poder.

Pela revolução de 7 de abril de 1831, os liberais vencedores aceitaram enfim a posição que desde 1828, D. Pedro lhes havia oferecido. Mas então estavam soltas as paixões revolucionárias, a agitação armada, o motim da soldadesca, as pretensões exageradas do entusiasmo punham o país em quotidiano perigo.

Vasconcelos foi ministro da Fazenda do primeiro ministério liberal. As finanças então achavam-se no grau maior de descrédito e de ruína, agravado ainda pelo efeito natural da revolução, pela intimidação permanente do motim. Mal compreendemos hoje os serviços prestados por esse ministério de 1831, que teve de lutar, no meio da dissolução de todos os elementos do governo, com todos os germes de dissolução social. Reprimir o motim nas ruas, dissolver a soldadesca, manter a ordem pública, restaurar a força moral do governo, até então universalmente considerado como o inimigo da sociedade, conservar unidas as províncias que os sonhos federalistas arrastavam, fazer frente às despesas do serviço público, manter ileso o crédito nacional, lutar contra a invasão da moeda falsa de cobre, a par da moeda depreciada de um banco mais do que roubado e falido... Honra e glória aos homens de então! honra e glória ao patriotismo e à devolução dos brasileiros! tudo isso se conseguiu, e a posteridade reservará belo quinhão nos seus agradecimentos a esses que lhe salvaram a pátria.

Em 1832 foi dissolvido esse Ministério.

Em 1833 estava Vasconcelos em Ouro Preto, quando aí rebentou uma revolta contra a autoridade do presidente da província que era então o desembargador Manuel Inácio de Melo e Sousa, hoje barão do Pontal. No meio dos gravíssimos indícios que a haviam anunciado, achando-se o presidente ausente da capital, assumiu Vasconcelos, na qualidade de 1º vice-presidente, as rédeas da governança; era uma posição de perigo e de sacrifício; Vasconcelos não tinha a prudência egoistística que nessas horas abandona o país, e tergiversa com o dever: cumpria sufocar o motim. Infelizmente a dedicação do homem não bastava, eram necessários recursos e não houve tempo de reuni-los: os insurgentes haviam combinado o seu plano com tanta sagacidade, que a autoridade só no último momento prevenida, não pôde contê-los. Vasconcelos foi por eles preso.

Conseguindo porém evadir-se aos sediciosos, apresentou-se na cidade de S. João del-Rei, aí organizou o governo e a tarefa, chamou às armas os mineiros, e dentro de poucos dias forças consideráveis marchavam contra o dominadores da capital. A revolta não se pôde manter, e o presidente chamado, instado por Vasconcelos, para vir tomar conta do seu lugar, pôde fazê-lo livre de todo o perigo, sendo aliás coadjuvado, nas medidas que posteriormente teve de tomar, pela influência e conselho do grande estadista.

Em 1834 tinha a câmara sido reunida com os poderes necessários para reformar a Constituição, e realizar essa promessa, que fora como o ponto de transação entre todas as frações liberais, senhoras do país depois de 1831. A dificuldade porém dessa obra constituía uma das maiores complicações do momento: Vasconcelos foi dela encarregado: infelizmente ao seu trabalho fizeram-se emendas, contra as quais muitas vezes reclamou perante os seus amigos e aliados políticos, emendas que tornaram defeituosa essa reforma, hoje ato adicional, e que exigiram alguns anos depois a sua interpretação.

Em 1835 membro da primeira assembléia provincial mineira, compreendeu ele que cumpria mostrar praticamente a bondade dessa instituição, e o muito que com ela podia ganhar a administração das províncias; meditando pois sobre as necessidades de melhoramentos apresentou acerca das estradas e do ensino público projetos cuja adoção marcou uma verdadeira época de progresso, e a que se prende tudo quanto de melhor tem-se posteriormente feito nesse sentido.

As circunstâncias políticas entretanto se modificavam; o falecimento do Sr. D. Pedro I, que fazia perder todas as esperanças, e portanto todos os receios de uma restauração, a votação do Ato Adicional tinham trazido a distensão dos espíritos, tanto tempo empenhados nas lutas políticas, e com ela novas necessidades para a governança: cumpria organizar, todos o sentiam, e proclamavam; mas como, em que sentido? e quem poria peito a essa reorganização?

Separado dos seus antigos aliados políticos, Vasconcelos tomou a frente da oposição que então se apresentava ao governo do regente Feijó. As sessões de 1836 e de 1837 o viram constantemente na tribuna, instando com esse governo para que apresentasse os remédios que julgava necessários aos males, que ele próprio denunciava, e que todavia ele próprio agravava. Por fim, ao invés de modificar o seu governo, o regente preferiu renunciar ao alto cargo que ocupava entregando-o ao senador Pedro de Araújo Lima, hoje marquês de Olinda. Vasconcelos tomou então a pasta da Justiça e interinamente a do Império. Foi o Ministério de 19 de setembro.

Não é aqui lugar oportuno para apreciar a ação e influência desse tão falado Ministério: o que ninguém contestará, é que se lhe deve triunfo do regime parlamentar, o reconhecimento da condição de solidariedade no gabinete, do apoio das maiorias, da disciplina das discussões. Não é menos certo que as idéias monárquicas, tanto tempo obliteradas, começaram a ressurgir nos espíritos, e em públicas e oficiais demonstrações.

Foi nesse tempo, e no meio desses cuidados que Vasconcelos, que queria dar impulso aos estudos no Brasil, fundou o colégio Pedro II e decretou a existência de outros estabelecimentos de instrução, que não chegaram infelizmente a realizar-se, talvez por falta de cooperadores.

Dissolvido o Ministério de 19 de setembro, outros lhe sucederam, durante os quais o prestígio do poder regencial foi-se aluindo.

Em 1840, quando já a revolução da maioridade estava senhora do triunfo, Vasconcelos, que estava retirado dos conselhos e da influência no governo, foi chamado para junto do regente. O movimento já ia muito adiantado; Vasconcelos não o pôde conter. Algumas horas depois da sua entrada para o gabinete, havia ele triunfado. Aí corre impresso um manifesto em que o distinto estadista expõe circunstanciadamente o que então ocorreu, quais as vistas e intenções do governo, qual o sentido de seus atos, e porque foram malogrados.

No seu ministério, Vasconcelos havia preparado o imenso trabalho da reforma do código do processo. Interrompida a discussão desse projeto, que ele como senador havia oferecido em 1839, continuou depois em 1841 sob os auspícios do ministro da Justiça, Paulino José Soares de Sousa, hoje visconde de Uruguai. Esse foi de todos quantos debates têm ocupado o nosso parlamento o mais aturado, e o mais completo; para a glória de Vasconcelos bastaria a parte que nele tomou. Adotado enfim pelas câmaras é a Lei de 3 de dezembro de 1841.

Coube-lhe igualmente a glória de sustentar, e de fazer passar o projeto, também por ele elaborado, da criação do Conselho de Estado.

Não menos se lhe devem os estudos que prepararam o pro-jeto de lei das terras; embora por outrem oferecido à atenção das câmaras, ninguém há que ignore a parte que na sua elaboração, como na sua sustentação, coube ao distinto estadista.

Depois da criação do Conselho de Estado, Vasconcelos, nomeado conselheiro ordinário, prestou sempre o mais acurado apoio à administração do país, ainda com ministérios que lhe eram infensos; o conselheiro de estado punha de lado a política, para esclarecer com a sua vasta inteligência as questões administrativas, e conseguir o bem do país, ainda quando feito por mãos de adversários seus. Pode-se quase que sem hipérbole afirmar que enquanto foi vivo, Vasconcelos foi o Conselho do Estado.

Se não faltaram calúnias à sua vida, não lhe faltaram também aplausos e galardões.

Ministro duas vezes, deputado em todas as legislaturas até que em 1838 entrasse para o Senado, conselheiro de Estado desde a fundação, condecorado em 1849 com a grã-cruz do Cruzeiro, havia anteriormente recebido de S. M., o rei dos franceses, a grã-cruz da Legião de Honra, por ter sido o plenipotenciário brasileiro no tratado matrimonial da Sra. princesa D. Francisca com o Sr. príncipe de Joinville.

Nos últimos anos da sua existência, a paralisia que o atormentava foi tomando um caráter mais greve, sem todavia conseguir quebrar a serenidade de seu espírito, a atividade do seu amor ao estudo, e do seu zelo pelo país.

Ouvindo-o, iludido pelo vigor desse espírito, ninguém podia fazer idéia da fraqueza, do sofrimento desse corpo. Só os seus íntimos conheciam, vendo o progresso dos estragos da horrível enfermidade, que essa imensa luz do gênio estava para apagar-se com a ruína desse corpo.

Entretanto não foi a paralisia. Em 1850 a febre amarela que dizimava o Brasil, e que parecia escolher as suas vítimas nas eminências sociais, acometeu-o... e em 1º de maio a cidade do Rio de Janeiro, coberta de luto, as câmaras que já tinham sofrido tantos golpes dolorosos, ouviram a notícia fatal: "Bernardo Pereira de Vasconcelos já não existe".

Seu corpo jaz no cemitério de S. Francisco de Paula; seu nome na História, e na recordação dos brasileiros. Homem político, Vasconcelos ainda não tem herdeiros.

Às vezes nós que o conhecemos, e fomos honrados com a sua intimidade, nos perguntamos, o que teria sido dos acontecimentos do país, se ao invés de morrer aos 55 anos, Vasconcelos tivesse vivido mais algum tempo, a sua existência tivesse sido prolongada até os nossos dias, e... tomamo-nos de reiterados pesares!