Guerra dos Mascates/I/II

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Já batia a sombra no peitoril, quando se entreabrira a adufa da janela, mostrando a ponta retorcida do gentil narizinho.

Dir-se-ia que ele farejava como uma lebre arisca, tal era sua volubilidade, se não fosse mais natural presumir um olhar, que ainda se não distinguia, coando pela fresta, a espreitar os arredores. Como nada aparecia de suspeito, as duas abas correram, escancarando-se de par em par com arrebatamento igual da timidez anterior.

Assim abrem-se também as asas do passarinho, que há pouco titilava dentro do ninho, e já talha os ares com o vôo rápido.

No vão da janela mostrou-se o busto de uma menina; mas o que primeiro se viu, senão somente, pois arrebatava os olhos todos e a alma, foi a cabecinha cheia de papelotes, que se enroscavam entre os anéis do cabelo negro. Nunca flores, nem pérolas, ornaram uma fronte fidalga como aqueles crespos de papel.

Trazia a menina os bolsos do avental cheios de gomos de cana, cortados à feição de chupar; e naquele momento, seus dentes brancos e polidos como o jaspe mordiam uma talhada, que lhe arregaçava graciosamente os lábios purpurinos. No prazer com que ela trincava a fibra da cana, sugando-lhe o mel, adivinhava-se o segredo dessa boquinha faceira.

Não era boca para embeber-se na delícia de um beijo ardente, com a ânsia da paixão que imbui uma alma na outra, fundindo-as em delíquios de amor. Não o era decerto; mas para trincar um coração, como se fosse um gomo de cana, ou para esgarçar a vida de um mísero amante, como o bagaço que segurava entre os dedos, isto sim: podia-se jurar.

Quem admirou a fina polpa desse lábio e não viu logo as semelhanças da pétala de rosa cobrindo o espinho, ou do bago da pitanga onde acaso insinua-se o farpão da abelha? Desses lábios, quando ele, alguma vez se abrocham em botão, não há fiar; são beijos de morder, os que eles sabem, caricias que pungem n'alma e a deixam em piques. Por isso estão sempre a rir, não tanto de alegria, como pelo gosto de mostrar o dentezinho branco, sutil e afilado como o dardo da áspide que se escondesse em um aljôfar.

Mas naquele rosto gracioso, o primor não eram nem a boca brejeira e os cabelos cacheados, nem os olhos pretos que faziam cócegas no coração, nem mesmo a covinha da barba, que um poeta chamaria o ninho das graças. Era... Adivinhem!... Era o narizinho retorcido, que no meio daquelas gentis feições, parecia um anjo traquinas dentro de um berço de boninas.

Quando encontro um desses narizes arrebitados, já se entende, em rosto de moça, cuido estar vendo um passarinho, que arrufa-se de cólera e empina a cabeça, pronto a lançar a bicada. Reparem bem; depois digam-me se nesse retorcido gracioso de uma ventinha rósea e transparente, não está aí esculpido na sua mais bela forma o capricho. E se não sabem o que seja capricho, posso confiar-lhes este segredo de minha invenção: é um colibri que tem o ninho no coração de certas moças, e chupa-lhes o mel de todas as flores d'alma.

Chupando os gomos de cana, ia-os a menina dos papelotes arranjando um perto do outro, em fileiras, sobre o batente da janela; no cuidado com que o fazia, e certo arzinho lesto, se estava denunciando o pensamento de uma travessura, de que ela já saboreava o gostinho.

De vez em quando relanceava um olhar pela praia fronteira do bairro do Recife, desde o Forte do Matos até à ponte, que unia as duas margens, e da qual os tetos das casas e arvoredos dos quintais não lhe deixavam avistar senão a extremidade oposta. Entretanto, se acontecia farfalharem as folhas com alguma rajada mais fresca da brisa do mar ou com o arranco de alguma rola assustada, estremecia a fingida e punha-se alerta.

Reparando nas plantas dos vasos, que formavam seu jardim, o narizinho arrebitado achou-as lânguidas e tristes com o calor do dia, e lembrou-se de regá-las.

Foi dentro buscar um moringue d'água, dos bojudos e pesados como os costumam fazer ainda hoje; e a custo, erguendo-o com ambas as mãos para vencer-lhe o peso, conseguiu deitá-lo no peitoril da janela. Daí inclinando-o, tomava ela os bochechos d'água, que deitava sobre as plantas, de bruços ao parapeito para alcançar o vaso.

Uma carriça, que tinha construído o ninho no vão de uma telha, desde instantes folgava defronte da janela, traçando no ar os adejos, como costuma, a voar e revoar no mesmo lugar.

Convidada pela frescura d'água, foi esconder-se entre as folhas rociadas do bogarim, e bebeu uma gota que tremulava dentro da nívea corola da flor. Invejou a menina dos papelotes aquela travessura, e sentiu não ser passarinho para fazê-la.

Que é isso? Temos novidade?

Ergueu-se rápida a cabeça dos papelotes; os olhos vivos lhe cintilaram de prazer, fitando um objeto, lá da outra banda.

Seria acaso um rapazola que desembocava apressado da Rua do Azeite na da Madre de Deus, e depois de quebrar a esquina, voltando a cabeça para assegurar-se que o não seguiam, deitara a correr na direção da ponte?

Bem pode ser, porque os olhos buliçosos, agora atados, vieram seguindo passo a passo pela praia o sujeitinho, até passar o arco e entrar na ponte onde o esconderam as casas. Todavia continuaram os olhinhos caminheiros a andarem pelo ar uma certa vereda que lá eles conheciam de a terem batido muita vez, e que, era eu capaz de apostar, vinha cair aí perto, entre os cajueiros e mangues do areal da Penha, mesmo naquele claro para onde está olhando agora a curiosa.

Debruçada sobre o peitoril, com as mãos seguras ao batente onde apoiava o seio, o pescoço estendido e o ouvido alerta, tinha a menina o jeito de uma lebre agachada à boca da toca sobre as patas dianteiras, com as orelhas crespas, de espreita ao perigo. Este não andava longe.

Atravessando a ponte e seguindo pela Rua da Maré, o garoto ganhara o arvoredo além da coroa de areia onde se elevava o convento de Nossa Senhora da Penha de França. Ai parou um instante, com a ligeira hesitação da esperança que receia um malogro.

Era ele um belo rapaz de dezessete anos; não obstante a pouca idade, mostrava no gentil parecer tal ardimento, e no talhe bem composto um donaire firme e resoluto, que imprimiam em sua graça adolescente uma encantadora bizama.

Com um movimento que parecia habitual alisava um bigode ausente, o qual apenas se anunciava pela macia pubescência do lábio superior. Em falta dos longos pêlos que repuxasse em momentos de enfado, à moda dos veteranos, pagavam os cantos da boca fresca e rosada.

Outro sestro que se lhe notava era dar à ilharga, em andando, certa descaída como o soldado que traz espada à cinta e furta levemente o quadril para não embaraçar a marcha. Bem diverso era o instrumento de que vinha ele armado: sobraçava um bastão chanfrado de jacarandá com a medida portuguesa de vara e côvado, e trazia às costas uma burjaca de couro de Moscóvia cheia de fazendas e miudezas, objetos estes de que não se pudera antes desvencilhar com receio de perdê-los; mas naquele momento vingou-se com usura.

— Arre! Não está longe o dia em que te hei de meter no fogo! exclamou atirando a vara ao chão e dando-lhe por cima um pontapé; e o saco foi pelo mesmo caminho e teor.

Vestia o rapaz, ao uso do tempo e de sua condição, jaleco, véstia e calçiles de belbute da mesma cor parda, com meias cruas apertadas abaixo do joelho e sapatos grossos de couro acamurçado, com fivela de estanho. Pelo trajo via-se que era filho da gente do meio, como se designava então a classe que nem era a nobre, nem a mecânica; mas. ficava entre ambas, e se compunha daqueles a quem o ofício ou arte liberal privilegiava com certa isenção. Deste número eram os mercadores de tenda aberta.

Quem, pois, visse passar pelas ruas do Recife naquele tempo o esperto garoto com a vara embaixo do braço e a burjaca ao ombro, reconhecia-o logo pelo moço de um mascate, ou seu caixeiro de rua e balcão.

E não se enganaria, pois tal era o mister que tinha o Nuno na loja de seu pai, o mercador Miguel Viana.

Curta foi a hesitação do rapaz. Meteu-se entre as árvores e aproximou-se sorrateiramente, afastando os ramos para aprochar a casa. Se do lado da casa-a lebre espiava, de cá era o campeiro que passava sutil través da folhagem, aspirando as baforadas do ar e pressentindo um hálito suspeito de envolta com as emanações da brisa e os eflúvios das flores.

Afinal, de espreita em espreita, lá chofraram-se os olhares de ambos, a modo de pélas que se encontrassem no ar e retrocedessem. Como figurinhas de artifício tocadas por mola oculta, tomaram de súbito vária postura. O rapaz, voltando costas à janela, apanhava no chão um ramo seco e partia-o em pedaços, que lhe serviam para atirar à copa das árvores, com o disfarce de abater algum fruto. Quanto à menina, de um ápice escondera-se atrás da ombreira da janela, debulhando nos lábios um riso malicioso, que ralhava com o rubor derramado pelas faces, da mesma forma que os dedos traquinas estavam às voltas com os alamares do justilho.

Passado um momento, como o Nuno parecia em verdade ocupado com as árvores, o narizinho retorcido que se animara a espiar com o canto do olho pela quina da ombreira, foi a pouco e pouco, de susto em susto, já ousado, e já trêmulo, mostrando-se pela face interior, até que afinal surdiu fora de novo, embora um tanto arisco e desconfiado.

Aí a esperava o fingido moço, que tendo visto de esguelha toda a mímica, voltou-se de supetão; mas, se ouviu um gritozinho semelhante ao da carriça, não enxergou mais que uma sombra a desvanecer-se na obscuridade da recamara.

Tão viva e ligeira como ele, a menina frustrou-lhe a travessura, escondendo-se de novo.

Duas ou três vezes repetiu-se a pantomima, e o rapaz sempre logrado; até que amuou-se, e trepando em um galho d'árvore, sentou-se de costas para a janela, a balançar as pernas e a repetir a cantiga de um folguedo muito em voga então:

Uma, duas, argolinha,
Finca o pé na pepolinha;
O rapaz que jogo faz,

Faz o jogo do capão,
O capão sobre o capão,
Conta bem, Manuel João;
Conta bem que vinte são;
E recolhe este pezinho
Na conchinha duma mão.