Milagre

Wikisource, a biblioteca livre

É nestas noites sossegadas,
Em que o luar aponta, e a fina,
Móbil e trêmula cortina
Rompe das nuvens espalhadas;

Em que no azul espaço, vago,
Cindindo o céu, o alado bando,
Vai das estrelas caminhando
Aves de prata à flor de um lago;

E nestas noites - que, perdida,
Louca de amor, minh'alma voa
Para teu lado, e te abençoa,
Ó minha aurora! ó minha vida!

No horrendo pântano profundo
Em que vivemos, és o cisne
Que o cruza, sem que a alvura tisne
Da asa no limo infecto e imundo.

Anjo exilado das risonhas
Regiões sagradas das alturas,
Que passas puro, entre as impuras
Humanas cóleras medonhas!

Estrela de ouro calma e bela,
Que, abrindo a lúcida pupila,
Brilhas assim clara e tranqüila
Nas torvas nuvens da procela!

Raio de sol dourando a esfera
Entre as neblinas deste inverno,
E nas regiões do gelo eterno
Fazendo rir a primavera!

Lírio de pétalas formosas,
Erguendo à luz o níveo seio,
Entre estes cardos, e no meio
Destas eufórbias venenosas!

Oásis verde no deserto!
Pássaro voando descuidado
Por sobre um solo ensangüentado
E de cadáveres coberto!

Eu que homem sou, eu que a miséria
Dos homens tenho, - eu, verme obscuro,
Amei-te, flor! e, lodo impuro,
Tentei roubar-te a luz sidérea...

Vaidade insana! Amar ao dia
A treva horrenda que negreja!
Pedir a serpe, que rasteja,
Amor à nuvem fugidia!

Insano amor! vaidade insana!
Unir num beijo o aroma à peste!
Vazar, num jorro, a luz celeste
Na escuridão da noite humana!

Mas, ah! quiseste a ponta da asa,
Da pluma trêmula de neve
Descer a mim, roçar de leve
A superfície desta vasa...

E tanto pôde essa piedade,
E tanto pôde o amor, que o lodo
Agora é céu, é flores todo,
E a noite escura é claridade!