No inferno

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Mergulhando a imaginação nos vermelhos Reinos feéricos e cabalísticos de Satã, lá onde Voltaire faz sem dúvida acender a sua ironia rubra como tropical e sangüíneo cáctus aberto, encontrei um dia Baudelaire, profundo e lívido, de clara e deslumbradora beleza, deixando flutuar sobre os ombros nobres a onda pomposa da cabeleira ardentemente negra, onde dir-se-ia viver e chamejar uma paixão.

A cabeça triunfante, majestosa, vertiginada por caprichos d'onipotência, circulada de unia auréola de espiritualização e erguida numa atitude de vôo para as incoercíveis regiões do Desconhecido, apresentava, no entanto, imenso desolamento, aparências pungentes de angústia psíquica, fazendo evocar os vagos infinitos místicos, as supremas tristezas decadentes dos opulentos e contemplativos ocasos...

Como que a celeste imaculabilidade, a candidez elísea de um Santo e a extravagante, absurda e inquisidora intuição de um Demônio dormiam longa e promiscuamente sonos magos naquela idea e assinalada cabeça.

A face, branca e lânguida, escanhoada como a de um grego, destacava calma, num vivo relevo, dentre a voluptuosa noite de azeviche molhado, poderosa e tépida, da ampla cabeleira.

Nos olhos dominadores e interrogativos, cheios de tenebroso esplendor magnético, pairava a ansiedade, uma expressão miraculosa, um sentimento inquietador e eterno do Nomadismo...

A boca, lasciva e violenta, rebelde, entreaberta num espasmo sonhador e alucinado, tinha brusca e revoltada expressão dantesca e simbolizava aspirar, sofregamente, anelantemente, intensos desejos dispersos e insaciáveis.

Parecia-me surpreender nele grandes garras avassaladoras e grandes asas geniais arcangélicas que o envolviam todo, condoreiramente, num vasto manto soberano.

Era no esdrúxulo, luxuoso e luxurioso parque de Sombras do Inferno.

Em todo o ar, d'envolta com um cheiro resinoso e acre de enxofre, evaporizava-se urna azulada tenuidade brumosa, fazendo fugitivamente pensar no primitivo Caos donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as formas...

Como que diluente, fina harmonia de violinos vagos abstrusamente errava em ritmos diabólicos...

Árvores esguias e compridíssimas, em alamedas intermináveis e sombrias, lembrando necrópoles, apresentavam troncos estranhos que tinham aspectos curiosos, conformações inimagináveis de enormes tóraces humanos, fazendo pender fantásticas ramagens de cabelos revoltos, desgrenhados, como por estertorosa agonia e convulsão.

Pelas longas alamedas exóticas do fabuloso parque, deuses hirsutos, de patas caprinas e peluda testa cornóide, riam com um riso áspero de gonzo, numa dança macabra de gnomos, cabriolando bizarros.

De vez em quando, as suas asas fulgurantes, furta-cores e fortes, ruflavam e relampejavam...

Baudelaire, no entanto, suntuoso e constelado firmamento de alma refletindo em lagos esverdeados e mornos, donde fecundas e esquisitas vegetações como que sonâmbula e nebulosamente emergem, estava mudo, imóvel, com o seu perfil suavemente cinzelado e fino, fazendo lembrar a figura austera e altiva, a alada graça perfeita de um deus de cristal e bronze, — tranqüilamente de pé, como num sólio real, na posição altanada de quem vai prosseguir nos excelsos caminhos dos inauditos Desígnios...

Por conhecer-lhe os ímpetos, as alucinações da audácia, as indomabilidades estesíacas, os alvoroços idiossincráticos da Fantasia, eu imaginava encontrá-lo, vê-lo revoltamente arrebatado para os convulsos Infinitos da Arte por potentes, negros e rebelados corcéis de guerra.

Mas, a sua atitude serena, concentrada, isolada de tudo, traía a meditação absorvente, fundamental, que o encerrava transcendentemente no Mistério.

E eu, então, murmurei-lhe, quase em segredo:

— Charles, meu belo Charles voluptuoso e melancólico, meu Charles nonchalant, nevoento aquário de spleen, profeta muçulmano do Tédio, ó Baudelaire desolado, nostálgico e delicado! Onde está aquela rara, escrupulosa psicose de som, de cor, de aroma, de sensibilidade; a febre selvagem daqueles bravios e demoníacos cataclismos mentais; aquela infinita e arrebatadora Nevrose, aquela espiritual doença que te enervava e dilacerava? Onde está ela? Os tesouros d'ouro e diamante, as pedrarias e marchetarias do Ganges, as púrpuras e estrelas dos firmamentos indianos, que tu nababescamente possuíste, onde estão agora?

Ah! se tu soubesses com que encanto ao mesmo tempo delicioso e terrível, inefável, eu gozo todas as tuas complexas, indefiníveis músicas; os teus asiáticos e letíficos aromas de ópios e de nardos; toda a mirra arábica, todo o incenso litúrgico e estonteante, todo o ouro régio tesourial dos teus Sonhos Magos, magnificentes e insatisfeitos; toda a tua frouxa morbidez, as doces preguiças aristocráticas e edênicas de decaído Arcanjo enrugado pelas Antiguidades da Dor, mas inacessível e poderoso, mergulhado no caos fundo das Cismas e de cuja Onisciência e Onipotência divinas partem ainda, excelsamente, todos os Dogmas, todos os Castigos e Perdões!

Oh! que demorados e travorosos sabores experimento com o quebranto feminil das tuas volubilidades Mentais de bandoleiro...

Essa alma de funestos Signos, como que gerada dentro de atordoante e feiticeiro sol africano, com todas as evaporações flamívomas, com todas as barbarias das florestas, com todo o vácuo inquietante, desolador, inenarrável, dos desertos, flexibiliza-se, vibratiliza-se, adquire suavidades paradisíacas de açucenais sidéreos, do céu espiritualizado pelos mortuários círios roxos dos ocasos...

Açula-me a desvairadora sede, espicaça-me a ansiedade indomável de beber, de devorar, sorvo a sorvo, sofregamente, o extravagante Vinho turvo, de lágrimas e sangue, que orvalha, como um suor de agonias, todas essas olímpicas e monstruosas florações do teu Orgulho.

Ah! se tu soubesses como eu intensamente sinto e intensamente percebo todos os teus alanceados, lacerados anseios, todas as suas absolutas tristezas dormentes e majestosas, o grande e longo chorar, o desmantelamento vertiginoso das tuas noites soturnas, as fascinadoras ondas febris e ambrosíacas da tua insana volúpia, as bizarrarias e milagrosos aspectos da tua Rebelião sagrada; a fulminativa ironia dolorida e gemente, que evoca melancolias de dobres pungentes de Requiem aeternam rolando através de um dia de sol e azul, vibrados numa torre branca junto ao Mar!... Como eu ouço religiosamente, com unção profunda, as tuas Preces soluçantes, as tuas convulsas orações do Amor! Como são fascinativos, tentadores e embriagantes os perfumosos falemos da tua sensação, os esquecidos Reinados enevoados e exóticos onde a tua clamante e evocativa Saudade implorativa e contemplativa canta, ondula e freme com lascívia e nonchalance! A tua inviolável e milenária Saudade, velha e antiga Rainha destronada, aventurosa e famosa, que erra nos brumosos e vagos infinitos do Passado, como através das luas amarguradas e taciturnas do tempo. A tua lancinante Saudade de beduíno, perdida, peregrinante por países já adormecidos nas eras, remotos, longe, nos neblinamentos da Quimera, onde os teus desejos agitados e melancólicos tumultuam numa febre de mundos multiformes de germens, em estremecimentos sempiternos; onde as tuas carícias nervosas e felinas sibaritamente dormem ao sol e espojam-se com sensualidade, num excitamento vital frenético de se perpetuarem com os aromas cálidos, com os cheiros fortes que impressionativos e afrodisíacos provocam, atacam, cocegam e ferem de extrema sensibilidade as tuas aflantes e capras narinas!

Ah! como eu supremamente vejo e sinto todo esse esplendor funambulesco e todas essas magnificências sinistras do teu Pandemonium e do teu Te Deum!


Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Ó Baudelaire! Augusto e tenebroso Vencido! Inolvidável Fidalgo de sonhos de imperecíveis elixires! Soberano Exilado do Oriente e do Letes! Três vezes com dolência clamado pelas fanfarras plangentes e saudosas da minha Evocação! Agora que estás livre, purificado pela Morte, das argilas pecadoras, eu vejo sempre o teu Espírito errar, como veemente sensação luminosa, na Aleluia fúlgida dos Astros, nas pompas e chamas do Setentrião, talvez ainda sonhando, nos êxtases apaixonados do Sonho...

E a singular figura de Baudelaire, alta, branca, fecundada nas virgens florescências da Originalidade, continuava em silêncio, impassível, dolorosamente perdida e eternizada nas Abstrações supremas...

E, enquanto ele assim imergia no Intangível azul, velhos deuses capros, teratológicos Diabos lúbricos e tábidos, desaparecidos desse egrégio vulto satânico, cismativo e sombrio, dançavam, saltavam, infernalmente gralhando e formando no ar quente, em vertigens de diabolismos, os mais curiosos e simbólicos hieróglifos com a flexibilidade e deslocamento acrobático e mágico dos hirsutos corpos peludos e elásticos...

Mas, em meio do misterioso parque, elevava-se uma árvore estranha, mais alta e prodigiosa que as outras, cujos frutos eram astros e cujas grandes e solitárias flores de sangue, grandes flores acerbas e temerosas, flores do Mal, ébrias de aromas mornos e amargos, de dolências tristes e búdicas, de inebriamentos, de segredos perigosos, de emanações fatais e fugitivas, de fluidos de venenosas mancenilhas, deixavam languidamente escorrer das pétalas um óleo flamejante.

E esse óleo luminoso e secreto, escorrendo com abundância pelo maravilhoso parque do Inferno, formava então os rios fosforescentes da Imaginação, onde as almas dos Meditativos e Sonhadores, tantalizadas de tédio, ondulavam e vagavam insaciavelmente...