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A esperança
225

 

Maria Isabel


Romance original por Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

(De pag. 217)

XXIX

O brigue á caça da canôa

― O mestre logo se estriba,
dizendo d'esta maneira:
Moços, ferra a cabadeira
e joanêtes. ― Dom, dom.

O rapaz tornou-se a rir olhando por um pedaço, mas, vendo aproximar o marujo, apressou o passo, para se arreda d'elle.

― Ah! temos pressa! pensou Francisco e caminhou com largos passos, mas sem ligeireza. Não quizera perder de vista o rapaz, nem assustal-o. Este não ouvindo cantar o embriagado, cuidou tel-o já longe. Pousou a cesta, para descançar e voltou-se.

Francisco não teve tempo de se esconder, e tinha-se assentado junto a uma parêde. Não foi visto primeiro. José procurava-o ao longe. Assentou-se tambem, e tirou da cesta alguma coisa que se pôz a comer.

― Ah! tratante! pensou o marujo, estás comendo da ração que não era para ti!

E divertiu-se ao vel-o mecher na cesta, e escolher as coisas em que podia metter o dente. Olhava elle a todos os momentos para um e outro lado, para que não fosse surprehendido, e n'um d'estes golpes de vista deu fé do marujo. D'um pulo pôz-se em pé. Francisco fingia estar com os olhos fechados; mas isto não socegou José. A' pressa metteu tudo na cesta, dizendo a meia voz:

― O demonio do bêbado tem maravelho!

Poz á cabeça a cesta e partiu; porém d'alli a pouco tornou a olhar para a retaguarda. Vinha o marujo fazendo ziguezagues e entôando a cópla:

― Melhor me fôra ser visto
ás portas d'um botequim,
Do que vêr agora o fim
da minha vida. ― Dom, dom.

O rapaz pôz-se a correr quando lh'o permittia o peso da cesta. Estavam na aldeia, e poucas pessôas encontravam. Francisco deixou de cantar e regulou o seu largo passo pela corrida do rapaz: quando o via olhar para o seu lado, fingia-se embriagado, e, para lhe fazer perder o mêdo, deixou-o affastar-se: o que queria era não perdel-o de vista.

― Sou o gato, dizia comsigo, deixar correr o rato.

Viu-o parar ao pé d'uma casa, e tornar-se a affirmar se era seguido.

― Cá vou! murmurou Francisco, fingindo que cahia; pódes caminhar marióla.

José porém não continuou a carreira; entrou na casa.

― Ora por fim de contas chegamos!

E Francisco se deteve a considerar no que havia de fazer.

― Antes de tudo, continuou elle no seu monologo, devo reconhecer a costa bem.

Adiantou-se. A casa em que José entrára era uma taverna. Francisco entrou tambem. Pediu vinho, e, em quanto o serviram, olhou por todos os cantos. Não avistou o fugitivo.

― O demonio é negro! pensou elle. Evadiu-se o marióla.

E com placidez disse ao taverneiro:

― Que é feito de um marióla que trazia uma cesta, e que me fez uma diabrura? Vi-o entrar para cá.

― Deixe ir o coitado, respondeu o taverneiro, vinha tranzido de mêdo e safou-se por aquella porta que dá para os campos. Cuidava que o freguez vinha entre as dez e as onze, e que o queria esfolar vivo.

― Quero só puchar-lhe as orelhas. Vou a isso, e virei depois petiscar alguma coisa.

― Pois vá; mas puche-lhe as orelhas com tento. O rapaz parece criado de gente rica.

― Não tenha medo. Sei manobrar a minha barca.

E Francisco sahiu pela porta que dava para um caminho estreito entre campos.

Primeiro anno ― 1865
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