Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/233

Wikisource, a biblioteca livre
A esperança
233

 

Maria Isabel


Romance original por Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

(De pag. 217)

XXX

O quarto escuro

Francisco retrocedeu para voltar á taverna que deixára. Foi de vagar e pensativo. Fazia planos sobre planos e nenhum lhe agradava. Do sitio em que estava a filha de Ricardo d'Oliveira não tinha já duvida, mas de modo que havia de libertal-a, é que não tinha certeza.

O taverneiro disse-lhe com ar desconfiado:

― Tardou tanto! Teve tempo d'esfollar o rapaz.

― Não pude pilhal-o, respondeu o marujo assentando-se a uma mesa; e ao voltar para cá perdi-me n'aquelles estreitos de má morte. Entendo-me mais com a derrota sobre o mar. Lá não ha bêcos nem encruzilhadas. O caminho é largo e desaffrontado. Dê-me alguma coisa que se mastigue e que se bêba patrão. Tenho fóme e sêde.

Este discurso pôz o taverneiro de bôa avença. Perdeu toda a má disposição em que estava com aquelle marujo desconhecido. Este comeu e bebeu e conversou muito. Não fez perguntas que o podessem tornar suspeito, e algumas que disfarçadamente arriscou sobre a visinhança de nada lhe serviram. Quando se levantou para se retirar era já perto da noite. O taverneiro observou que tinha onde se dormisse, que fazia melhor em não se metter ao caminho só, que se ficasse alli, dormiria como um rei. Francisco respondeu que não tinha mêdo, e que ia ficar a casa do senhor José. E pagou e sahiu fazendo ziguezagues.

― E' um frangote, disse um freguez da taverna; pouco vinho lhe faz dar volta á cachóla.

― Elle já vinha enfarinhado quando cá chegou, disse outro.

― E o meu vinho, atalhou o taverneiro, não tem agua.

Mentia desaforadamente.

Foram os dois freguezes á porta; viram o marujo para o a fumar no seu cachimbo; mas, ao vêl-os assomar á porta, pôz-se a andar de travez e a cantar:

― Quando descançado estamos
no rancho a socegar
então é que oiço gritar:
Olé, leva a riba: dom, dom.

Os freguezes da taverna recolheram-se para dentro rindo. Francisco continuou o seu caminho cantando. Quando o filho de Caroliua se viu distante da taverna cessou de cantar e caminhou com passo firme. Encontrou passado algum tempo oo caminho largo que avistára de cima do pinheiro. Metteu-se por elle. Caminhou um longo pedaço. Já desconfiava que se teria enganado quando avistou o portão da quinta. Era já busque-fusque. Abriu a porta, depois de ter visto pelaas fendas, que não estava ninguem no pateo. Não tinha plano. Tinha assentado de se entregar a Deus e á ventura. Entrou resolutamente, e atravessou o pateo, dirigindo-se á casa.

― Se eu tivesse aqui dois moços da minha companha... pensava elle, mas vamos com Deus e Santa Maria.

Achou a porta principal fechada. Bateria?

― Não façamos por ora motim, pensou, tendo scismado um pouco. Não sei a gente que ha na casa.

Viu no fim da casa outra porta. Dirigiu-se lá. Aproximou-se estava cerrada. Abriu e entrou. Viu-se n'uma grande e desmantellada cosinha muito escura e defumada: térria como costumam sel-o ordinariamente as cosinhas na aldêa. No lar ardia uma bôa fogueira, mas ninguem estava alli. Em frente da porta por onde entrou o marinheiro havia outra que dava para a quinta e estava aberta. Servia de janella, porque a cosinha não tinha outra. Pouco distante havia uma pequena porta d'um quarto escuro em que havia lenha e rama sêcca de pinheiro, a que chamam, n'uns sitios moinha, n'outros agulhar, e por alli, moliço. No tôpo da cosinha defronte do lar haviam alguns degraus, e em cima outra porta. Por alli devia de ir-se para o resto da casa.


Primeiro anno — 1865
30