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A esperança

 

Maria Isabel


Romance original por Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

(De pag. 233)

XXX

O quarto escuro

Com rapidez incrivel fez o moço analyse de tudo. Punha já o pé no primeiro degrau que levava ao interior da casa: ouviu fallar gente da parte da quinta e as vozes aproximavam-se; e ouviu passos do lado da casa. Recuou e metteu-se no quarto da lenha. Era prudente examinar as forças inimigas. Cerrou a porta porque entrou e metteu-se entre as agulhas de pinheiro; nome muito proprio n'esta occasião em que Francisco soffria picadellas de fazer gritar alguem mais melindroso.

O crepitar do lume, o miar d'um gato, e as vozes dos que entravam na cosinha, occultaram o rugido que o marujo fazia para se metter entre a rama de pinheiro, a que não chamaria moliço, ao sentil-a tão aspera. Depois que se ageitou no seu esconderijo, ficou soffrivelmente.

― Miquelina, disse a voz d'um homem, para que tens esta porta fechada? As ratazanas acoitam-se aqui. Olha como o rabujo mia. Melhor tu tivesses fechada a porta de fóra.

― Não tem duvida, respondeu a irmã de Joaquina. Ainda agora venho lá de cima, e deixei as portas dos quartos fechadas. A senhorita tinha de arrombar duas portas para sahir para o corredôr, e ainda não se punha ao fresco.

― Falla com mais respeito da fidalga nova. Já t'o tenho dito. Dentro em pouco será ella que dará aqui as cartas.

― Mas então talvez eu não queira jogar. Ella tornou-se muito nariz torcido.

― Chitão!

Tinham fechado as portas de fóra, e abriram a do quarto da lenha, e José atirou lá para dentro com o gato, que fugiu miando. Os gatos não caçam ratos á força; demais o rato, que por sua vontade se mettêra n'aquella ratoeira, não era para rabujo caçar.

Francisco via agora por entre a sua cortina d'espinhos tudo o que ia na cosinha. Estavam assentados ao lar dois camponios, um novo com cara de parvo, outro mais idoso com semblante de poucos amigos. José que compunha e soprava a fogueira, e um criado aceiado, alto e robusto. Este esperava em pé que fervesse a agua, para fazer chá. Miquelina estava assentada. Continuou a conversa que interromperam ao entrar na cosinha.

― Tu és um medrica, José, disse o criado alto. Se era preciso fazer tanta bulha porque encontrastes um marinheiro bêbado!

― Eu queria vêr o senhor Damião no meu lugar! Se lhe não fujo pelo meio das agras, elle furtava-me a cesta; era um ladrão.

― Boa novidade! observou Miquelina. Os marinheiros são todos bêbados e ladrões.

― Ah! bruxa, disse mentalmente o escondido, se te torno a pilhar a geito, ficas sem um dente n'essa boca mentirosa.

― Corri, proseguiu o rapaz, até deitar os bófes pela bôcca fóra. Mas cheguei cá a salvamento.

― O que não chegou a salvamento foi o que trouxestes. Vinha tudo untado e misturado; e a manteiga vistel-a? nem eu! A'manhã mandarei uma mulher á cidade.

― José deve tornar lá por seu castigo, atalhou Miquelina.

― Não quero. Em quanto eu cá não estiver, ninguem arreda pé de casa.

Damião tinha aberto o chá e levou o bule para dentro. Miquelina foi tambem, mas voltou logo. Namorava o aldeão mais novo, que se derretia a seu modo por ella.

― O' senhora Marculininha, disse elle, a fedalguinha já está mais acommodada?... Hontem barregava!... Se eu não soubesse o que era, cuidava que as coisas ruins andavam lá por dentro. E antão esta casa que não tem bôa toada....

― Não sejas tôlo, Antonio, as coisas ruins não andam por entre a gente. A fidalguinha (Damião quer que a respeitemos, e é uma gran-