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A esperança
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de tôla) vai-se accommodando. Que remedio tem ella?

― Mas porque não ha-de a fidalga velha deixal-a casar com o rapaz a quem quer bem? O casamento deve ser á vontade da gente; senão negregados casamentos.

― E's tôlo, Antonio, atalhou o trabalhador de má cara, havia d'uma fidalga deixar casar sua sobrinha com um rapaz que não professa vintem?

― Se fosse só isso, tornou Miquelina, mas é um marujo bulhento, e mal procedido, um valdurinos e ladrão, e filho d'uma viuva de má vida, que anda de casa em casa a fingir que trabalha, para surripiar alguma coisa e desencaminhar meninas honestas; como quiz desencaminhar a sobrinha da fidalga.

Ouviu-se rugir no quarto da lenha.

― Que é aquilo? Disse Antonio estendendo o pescoço com ar assustado.

― Ha-de ser o gato que caça alguma ratazana entre a lenha, replicou Damião, que voltava. Pareces-me medroso!

― Eu lhe digo, sinhor Dimion, de gente viva, e de coisa que se apalpe com um varapau não tenho mêdo nenhum; mas lá com almas do outro mundo, ou com o maravelho não quero brincadeiraas... E esta casa, como já lhe disse, tem má toada.

Pois quero para me substituir quem não tenha mêdo de vivos, nem de mortos. De madrugada vou avisa o tutôr da fidalguinha da sua vinda para casa, e saber as ordens que elle me dá. Se na minha ausencia vocês a deixavam fugir, em vez de paga d'oiro, recebiam-n'a de chicote.

O aldeão carregou as sobrancelhas e olhou Damião altaneiro, mas a ambição lhe fez reprimir a cólera e replicou:

― Eu cá não tenho arreceio de nada. Nem o diabo com a sua armação e garras me faria medo.

― Pois então Gabriel ficas tu no meu lugar. Antonio e José ficam teus ajudantes d'ordens. De dia poderás descançar n'elles, de noite vigia tu. E todos lume no olho...

O filho de Carolina quando ouvira Miquelina fallar no pertendido namoro de Maria Isabel com elle, e alcunhal-o a elle e a sua mãe de ladrões e mal procedido, esteve a ponto de sahir do seu esconderijo e lançar-se sobre a calumniadora. A reflexão e prudencia o fez deter.

― E o caso que é, pensava elle, que se os tratantes me apanhavam aqui escondido, podiam prender-me por ladrão! Essa era uma de todos os diabos! Em tanto que me levavam preso fugiriam d'aqui com a senhora D. Mariquinhas.

Estas ideias aterradôras lhe foram passando. A sua posição tinha tanto de perigosa e incommodativa, como tinha de divertida e de ilucidadôra. Via o namoro de Antonio e Miquelina, e ao mesmo tempo as maneiras d'esta requebradas e provocadôras para Damião que a tractava com desdem. Foi colhendo informações pela noite adiante do quarto da prisioneira e d'outras coisas precisas. Damião que tinha de se levantar de madrugada, retirou-se cedo. Miquelina ficou então só com um namorado e por isso mais á vontade. Foi buscar lenha ao quarto escuro, e parou á porta.

― O mafarrico da mulher, pensou Francisco, vê-me. Preparou-se para se lançar sobre ella e fugir. O movimento que fez não foi presentido, porque ella mechia já na lenha, e disse alto:

― Antonio, vem cá. Esta lenha está tão apertada...

O camponio aproximou-se. Ella lhe disse em voz baixa:

― Vai ámanhã assim que me vires a pé ao laranjal; irei lá fallar comtigo. Gabriel e José não tiram os olhos de nós. Receio que vão dizer alguma coisa a Damião. Elle morre por mim e eu não posso encaral-o.

Antonio queria prolongar o coloquio, mas ella adiou-o para a manhã seguinte.

Depois cearam, e separaram-se. Os homens sahiram para o lado da quinta para se recolherem no quarto dos criados da lavoira, Miquelina fechou a porta por dentro, e subiu para a casa. Francisco ficou só e ás escuras.