Página:A Esperanca vol. 1 (1865).pdf/249

Wikisource, a biblioteca livre
A esperança
249

 

Maria Isabel


Romance original por Maria Peregrina de Sousa

Dedicado á memoria de minha irmã

(De pag. 246)

XXXI

Descanso interrompido

Sahiu o marinheiro da sua incommoda posição. Tinha os membros inteiriçados.

― Se eu fizesse lume para me aquecer, pensava elle, lenha não falta.

Aquelles demonios comeram até lhe chegar com o dêdo... Não deixaram senão espinhas. Era a quem mais comia. Eu tambem ainda trago algum mantimento na minha barca.

Chegou ás apalpadellas ao lar. Assentou-se e tirou do bolso um pão e um bocado de queijo.

― Bom conselho, proseguiu elle, é o do nosso capitão, de trazer sempre mantimentos de sóbra.

Trincou e comeu o pão, o queijo guardou-o. Este faria sêde, e não queria Francisco fazer bulha a procurar agua, e vinho não o tinha. Depois que engoliu o pão, estirou-se no preguiçeiro do lar, especie de sofá sem almofadas nem mólas. Queria descançar os membros e pensar no que havia de fazer.

A senhora D. Mariquinhas, dizia elle consigo, está por ora sem perigo. O meliante não está cá. O mastareu grande, que governa este barco de piratas, irá chamal-o de madrugada. Se eu fosse chamar o senhor Maximino, estariamos aqui antes d'elles virem. Mas as portas fazem um barulho ao correr os ferrôlhos... e ainda que podesse sahir sem fazer bulha, ficariam as portas abertas. Se todos tivessem mêdo do diabo, poderia elle ficar com as culpas; mas ha aqui dous demonios em carne que não temem os seus companheiros em espirito. Que hei-de pois fazer?

O somno o colheu no meio das suas cogitações. Dormia a somno solto; e sonhava com um vendaval no mar, quando accordou sobresaltado. Pareceu-lhe que lhe puchavam pela jaqueta e sem consciencia ainda da situação em que estava, disse com voz alta e rouca pelo frio:

― Chega já o meu quarto? Que cerração da breca! Temos temporal?

Mas deitando a mão á jaqueta do lado que sentia bolirem-lhe, deu com um rato que o cheiro do queijo que tinha no bolso attraira e que fugiu com o movimento do marujo.

― Ah! pensou elle já disperto de todo, não estou na Carolina, mas sim na casa dos ratos e do diabo.

Espreguiçou-se e levantou meio corpo, para se pôr em pé. A este tempo abriu-se a porta que dava para as salas e appareceu Damião em camisa com uma luz na mão. Francisco tornou a estender-se no preguiceiro, pôs o chapeu sobre o rosto e metteu as mãos no bolso, deixando um dos olhos meio descoberto para vêr o que ia. Damião desceu os degraus, trazia na mão direita uma pistola.

― Estou aqui, pensou o filho de Carolina, e estou nas praias da eternidade. Pois hei-de morrer deitado. A pé acertaria a balla mais em cheio. E se o mastareu grande desfecha, atiro-me a elle. Ainda não me viu.

Damião olhava para todos os lados, e punha a luz alta para ver melhor. Caminhava em direitura ao lar, e parando na cosinha no meio murmnrou a meia voz:

― Havia de jurar que ouvi aqui fallar um homem. Andará na verdade por aqui o diabo?

― Anda, que eu bem o vejo; pensou o marinheiro, e em fralda por causa do calôr.

Damião foi á porta que dava para a quinta, abriu-a, e chamou em altas vozes por Gabriel.

Este respondeu ao segundo chamo.

― Anda para a cosinha, tornou Damião, e faze lume. Está um frio dos diabos! Vem depressa. Quero partir logo.

E arremeçando a porta, murmurou:

― Gabriel está no quente e eu ando por aqui a pilhar um catarral.

Estou fresco, disse lá comsigo Francisco, vão fazer lume, dão comigo e assam-me. Pois

Primeiro anno ― 1865
32