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A esperança

 

vestia larga e chapeu d'encerado nas mãos; e com modos de franca cordealidade, e voz um tanto rude, gritou:

― Deus lhes dê muitos bons dias. Dão licença?

― A snr.a Carolina, disse a donzella, não está cá e não vem senão á noite.

― Já m'o disse o visinho lá debaixo do porão; mas tambem me disse, que ella tinha mettido gente no seu chavéco, o que muito estima cá a pessoa. A snr.a mãe está velha, e não estava bem a viver só como um eremitão. Eu quiz vêr as snr.as, mas já vejo que não são cá da nossa egualha, e que se hão-de dar mal aqui; e tenho pena, pois como lhes ia dizendo, gostava que a snr.a mãe tivesse quem lhe deitasse um cabo alguma noite de borrasca, em que se visse a dar á costa.

― Então é o snr. Francisco?...

― Para a servir.

― Acha a sua casa occupada, disse D. Maria Carlota, mas nós desoccuparemos o seu quarto...

― O meu quarto é na barca Carolina. Deixem-se as snr.as estar a seu commodo. Se dão licença assento-me... Corri da Ribeira até cá riba para abraçar a snr.a mãe: não posso faltar muito tempo. Vim com um recado do capitão, e aproveitei a maré.

― A snr.a Carolina, tornou Maria Isabel, ficará bem zangada de não estar em casa.

― Ella tamem escusava d'andar sempre a rabiar lá por fóra, agora que tem boa companhoa cá em casa. Está ainda muito rabuja e ralhadora?

Ouviram-se vozes na escada, e entre ellas, a de Carolina, que subia, respondendo aos visinhos que lhe sahiam ao encontro; uns para lhe noticiarem a vinda de seu filho, a que ella respondia:

― Já sei!.. já sei!

Outros para perguntarem o que era, e ella lhes gritava:

― Chegou o meu Francisco.

O marinheiro foi á porta que dava para as escadas, e bradou:

― Olá, snr.a mãe! Olhe lá como sóbe a enxarcia da gavia d'esta velha náo. Se desapruma dá com o costado no fundo.

VII

Novas tristesas

Os abraços da mãe e do filho, suas perguntas e respostas, levaram algum tempo. Por fim assentaram-se.

― Foi a minha comadre Josepha, disse a mãe, que me avisou da tua vinda.

― A'manhã vá vêr-me á Carolina. Ha lá muito que fazer: não poderei vir a terra, e quero dar-lhe umas coisitas.

― Irei, olá se irei! Não ha barca mais bonita.

― Cá para a pessoa, decerto que não. Ainda que ella esteve para nos pregar uma dos diabos! Já se fallava em alijar a carga ao mar.

― Santo breve da marca!.. Como escapasteis?

― Como haviamos d'escapar? Com muito trabalho, muita manobra; olho á mira, ouvido á escuta; e com a promessa que fizemos ao Senhor de Bouças de lhe levarmos a véla grande. Dar muitas graças a Deus de ter ajudado o nosso trabalho; mas estavamos mortos de fadiga. Tinhamos perdido o rumo e custou-nos a abicar na Angra. Andavam recolhendo os despojos d'uma barca que se perdera com a tormenta. Estavam na praia muitas coisas com guardas, e levavam, para ser tratado, um afogado, mas estava bem morto. No dia seguinte foi enterrado.

― Santo breve da marca!.. Olha do que escapaste Francisco!

― Não que cá a pessoa talvez escapasse, como escaparam outros do mesmo naufragio, porque me poria como minha mãe me...

Reparou nas snr.as, e accrescentou:

― Pôr-me-ia como quem quer nadar bem, livre e escorreito. Vão-se os anneis e fiquem os dedos. Mas o homem parece que estimava mais