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"Doida não!" Antes vítima/A psicologia de uma paixão

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A psicologia de uma paixão
 

 

Os peritos chamados a classificar a suposta demencia passional de D. Maria Adelaide da Cunha, manifestaram por esta forma a sua opinião: «Degenerescencia hereditaria com manifestações dominantes no campo da afectividade e do instinto».

Esta definição relativa á paixão dominante no campo do instinto, tem pouco mais ou menos um sentido que se traduz nesta grosseira conclusão: uma mulher que desce á condição de amar um serviçal, sem escrupulos de posição nem de moral, simplesmente porque o seu instinto sexual se deixou levar pelo capricho de ter um amante no homem que lhe impressionara o instinto material, isto é as exigencias lubricas.

Ora a Snr.a D. Maria Adelaide da Cunha é uma organisação superior.

Não está demente, positivamente, e em demasia se vem demonstrando, quer pela forma clara e coordenada como se exprime no seu livro, quer pelas contraprovas que se acumulam na deteza da sua suposta loucura. É uma «loucura lucida», dizem os magnos peritos. Pois seja. Mas não sofrerão êsses peritos de certos sintomas equivalentes a essa doença ao consumarem essa definição?

A quantas pessoas, em meio de discussões politicas, ou de hostilidades de que sempre se cercam todos os homens publicos em evidencia, dotados de talento — que teem sempre o seu bocadinho de desequilibrio — eu tenho ouvido dizer de qualquer psiquiatra: «Está doido, porque quem lida com tantos doidos, acaba por endoidecer. Não crendo que assim seja, não duvido no entanto de que dominados por paixões de momento, entrassem nas esferas da nevrose patologica, ao darem o seu parecer para abismar num carcere de tenebrosa e verdadeira loucura, uma mulher gentil, piedosa e boa, que podia dar à sociedade o contingente valioso dos seus privilegiados meritos. Certamente pensaram que êsse castigo produzia na Doida com juizo, o efeito de uns açoites que se dão cruelmente a uma creança rebelde para a curar dos seus caprichos. E acima de tudo, que se salvasse por forma tão deshumana a honra e a posição faustuosa do marido.

Era afinal mais uma conspiração de homens, que sempre se julgam Reis da Creação e dão largas ao amor proprio pessoal e profissional, do que um exame imparcial, completo e exacto do estado da doente que ninguem tratou.

Bem sei que falsos informes contribuem para falsas conclusões, mas ainda ai sossubrava a intangivel pericia da sciencia, como tantas vezes sucede. E eu que isto digo, cá tenho as minhas razões que exporei mais adiante. Devo altas considerações a alguns dêsses peritos e ilustres psiquiatras. Mas tambem se acumulam na minha alma certos ressentimentos por causas diversas. Não é porém em virtude dêsse ressentimento que falo. O meu eu só entra em scena quando se trata de interesses geraes. E como aqui defendo êsses interesses, direi todas as verdades embora molestem a vaidade dos sabios.

Ora notemos as principais manifestações moraes, intelectuaes, afectivas no conjunto fisiologico e psicologico da acusada.

Organisação delicada. Senso estetico, inclinações superiores, temperamento afectivo e activo revelado em vivacidade espiritual e ligeireza de movimentos completando a revelação da energia mental luzindo em brilhos de inteligencia e de labor domestico.

Sofrendo porventura, como todos nós, qualquer daquelas manifestações a que vulgarmente se chama falha ou telha, não sofria mais demência do que qualquer deputado que quebra carteiras no parlamento, ou qualquer medico que salva uns tantos doentes e manda outros tantos para o cemiterio sem the serem passados diplomas de loucos.

Ora a atacada da fraqueza de coração que ataca tanta gente normal, e não da loucura da razão no sentido da demência que justifica a permanencia num hospital de doidas, entre loucas furiosas, diz isto a paginas 234 do seu livro «Doida Não!»

«Muitas que talvez me abrissem os braços se eu amasse um fidalgo, embora fosse um vilão, sem se importarem, todavia, que eu faltasse do mesmo modo ao respeito a meu marido, censuram-me e viram-me as costas porque preferi amar um chauffeur, muito embora seja um homem de bem. Não me orgulho do meu feito; mas orgulho-me de ter encontrado um coração que tão bem compreende o meu, e que tanto merece que eu lhe queira como lhe quem. Que esse coração bata dentro do peito de um chauffeur não me envergonho, porque bate num peito honrado que se expoz ás balas dos meus perseguidores para me defender a vida e a razão.»

Analisaremos estas declarações para dispor deduções concludentes. Mas convem reproduzir ainda estas afirmativas da acusada quando o snr. Dr. Sobral Cid lhe dirigira insinuações ácêrca da condição e interesseiros instintos do Manuel:

«O seu desinteresse está sobejamente provado e a sua dedicação é indiscutivel, pois que não só me sacrificou as suas economias de alguns anos de trabalho, que, parecendo suave, é violentissimo, como a sua carreira e a sua propria liberdade. Não foi êle que esqueceu a sua posição, fui eu que a esqueci. Ele foi sempre muito respeitador, e a afeição especial que por mim tinha, nascia apenas da gratidão pelo modo carinhoso como eu o tratava e a que êle não estava habituado. Porque meu pai educou-nos na doutrina de que devemos especialmente ser atenciosos para com os humildes, porque os que o não são, tem o seu dinheiro ou a sua posição social que lhes proporciona considerações. Por isso sempre tratei o melhor possivel os que, pela sua condição, julgava inferiores a mim.»

Não conheço o Manuel, o chauffeur, que só pela sua profissão causa repulsa a um distinto clinico que se sente receoso de ser atacado de fobia contra os chauffeurs. Mas diz o sur. Dr. Bernardo Lucas no seu prefacio do «Doida Não!» «É um rapaz de presença insinuante e simpatica que se exprimia por forma que me agradou.»

E a uma pessoa idosa, de posição modesta e de opinião insuspeita que o viu uma vez, ouvi esta declaração:

«É um rapaz muito agradavel de aspéto e de maneiras delicadas. Não sei que tem, que a gente à primeira vista fica logo a gostar de seu porte e da sua conversa.»

É decerto este não sei que tem, e que impressionou uma pessoa delicada no seu sentir, embora modesta de posição, que é a pedra de toque da paixão em questão. Esse não sei que tem, deve corresponder ao dom das creaturas que teem en si dons atraentes, que tanto podem ser o condão da eloquencia magnetisadora de um Emilio Castelar, a fluidica fascinação de um Musset, emfim o predominio daqueles a quem o destino deu ensejo de expandir-se, ou cultivar-se, ou certos inexplicaveis mas graciosos atrativos de gente que nunca saiu da condição humilde.

Quanta graça vaporosa e aerea se encontra por vezes numa camponeza que tem mais distinção no seu todo do que a mais nobre e bem ataviada dama de alta gerarquia? É que ha nessa creatura uma superior organisação inrevelada.

O ritmo enleante da sua graça interior, não brilhou por falta de cultura. Mas nem por isso deixou de atrair, de rescender e insinuar-se como em aroma de flôr silvestre e expontaneamente bela.

Ora um chauffeur pode ter em si o embrião de um homem de valor.

Porque não ha-de existir um organismo de privilegio mal revelado, na personalidade que por força de circunstancias exerce a função de guiar automoveis? Com o nascimento e cultura de um D'Anunzio, poderia ser o que êle é com a sua legião de heroismos e as suas ardentissimas paixões de poeta.

Que sabemos nós do que existe no fundo de cada ser?

Que pudemos dizer do rubro incendio de amor que crepitou numa atmosfera de gelo?

A verdade é que uma paixão nasceu, germinou e arrebatou.

E pode acreditar-se que uma natureza de invulgar quilate se avitasse descendo até às supremas resoluções sem um motivo mais nobre do que un impulso material, sem uma correspondencia de sentimento ou de espiritualidade que a seduzisse?

É demencia, concluem. É loucura lucida, argumentam.

Mas eu conheço algumas dessas loucuras em outras pessoas de representação social e que os distintos clinicos se recusariam a classificar por escrupulos varios.

Não ha demencia nem aviltamento degenerativo nestal paixão. Ha uma fusão de almas que se chama atracção, uma singular atracção que se chama amor. Quais são as verdadeiras raizes? Quais serão os frutos? Porque é que uma mulher de espirito e fascinação rodeada de tantos homens de agrado, se agradou especialmente de um menos brilhante? Porque é que não tendo feito escandalos de adulterio se reservou para os consumar em tais condições? Porque estava destinada para isto. Ha quanto tempo duraria a incubação deste amor? Decerto vivia muito antes de encontrar o magnete onde fixar-se. Chegou a fase da transformação. A crisalida fez-se borboleta. E a borboleta voou num adejar de ardente fantasia.

Qual é a conclusão final?

Uma paixão envolvendo um misterio. Merece a classificação de crime? Sim e não. Sim, porque vai de encontro á moral, aos deveres da mulher casada, e ás normas da virtude e do pudor que são o mais belo cruamento da mulher. E não, porque a origem dessa paixão tem a sua causa em sentimentos reciprocamente elevados. A mulher foi amada por ser compadecida e tambem porque dela se compadeceram. É afinal um holocausto, uma pira de idolatria em que arde a chama de um amor invulgar. É uma flôr de bondade crestada nas labaredas de um incendio. Que valem afinal comentarios perante a fatalidade das coisas que teem o seu destino traçado?

Mas o que é verdade em meio de uma teia de mentira, é que a alma da mulher que assim ama, não é uma alma vulgar, mediocre. Não é uma alma incolôr como a de Julieta na tragedia de Romeu. É afinal uma alma definitiva e audaz que se dispoz a amar e a padecer contra todas as conveniencias pessoais e familiares.

O amor sufoca nela todos os interesses. Vai de encontro ao ódio e á perseguição da familia, afronta o desprêzo e a maledicencia do mundo.

Não impera porém nesse gesto uma mesquinha lascivia. Antes irrompe em fulgor humanitario que vai refletir-se espiritualmente noutro coração, penetrando e revelando o misterio de uma psicologia ignorada, como os raios ultra-violeta do radium penetrando os corpos atraves da densidade da materia.

Ha da parte do homem preferido a sua parte de cálculo, de ambição, de vaidade e ufania de preferido? Ha uma mulher que desceu para elevar até si alguem sequioso de subir? É possivel. Mas se ao descer essa mulher elevou e estimulou meritos embrionarios que poderão desenvolver-se, tambem subiu, descendo. E se meritos existem naquele que teve ambições de subir, é justa a sua aspiração de elevar-se para elevar esses meritos. Não ha ninguem que não deseje de ir do pouco ao muito, do muito ao maximo.

Mas se esse homem, vilipendiado por ter sonhado ser alguem ao lado de uma mulher que já o era, amou por egoismo, por calculo, por capricho e ambição, não foge á regra quasi geral dos homens amando as mulheres.

E' quasi corrente sermos amadas com egoismo, por capricho, dos sentidos. E pelas mesmas razões sermos substituidas, porque o saciamento e os licenciosos costumes deixam que a alcova impura da cortezã que foi a deusa do paganismo, seja o novo forum das orgias do homem e a sepultura da felicidade dos lares. Ainda aí tem direito á defeza, a maior vitima de uma paixão que embora seja um delirio, é tambem um amor desabrochado numa relatividade de almas.

Que lhe reserva o futuro?

Dores e tormentos? Quem o sabe? Mas se assim fôr, nem assim deixará de ser amor, que se transforma em dôr para cristalisar na luz que esclarece os espiritos e adelgaça nuvens da ignorancia.

Ha de permeio dêste drama as conveniencias de um marido? Pobre tambem dêle que não soube entender a mulher nem se esforçou por entende-ia. Agora já é tarde para reconquistá-la, e pouco humano que insista em persegui-la.

Talvez fôsse mais nobre que lhe dissesse como aquele nobre Roberto das «Cartas de Amor», de Teixeira de Queiroz: «Diz ao homem que para te conquistar destruiu o meu lar e desfez a minha enganadora ventura, que afinal lhe perdôo a ele se fôr necessario para que sejas feliz.

Reconheço-o como meu supremo inimigo porque me esmagou fibra a fibra o coração.

Mas perdôo-lhe porque antes dele fôra eu culpado de não saber cultivar o teu amor.»

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Fiz aqui a apologia do adultério? Ensinei às mulheres casadas o tortuoso caminho da perdição e da deshonra?

Bem longe disso. Desejo tanto e tão ardentemente a virtude de todas as mulheres, como a ambiciono e quero cultivar na alma inocente e idolatrada das minhas netinhas.

O que eu aqui defendo é uma mulher que me deu a impressão de uma pobre e amorosa andorinha esfacelada nama jaula de feras. Estudo no campo da psicologia a origem desta paixão que incorre em classificação de pecado, mas que não é sómente da responsabilidade da mulher como se verá pelas afirmações que se seguirão.

Quem teve por mãe, como eu, a mais austera e honesta das mães, ama sempre a virtude e a perfeição, embora certas circunstancias a não deixem ser tão perfeita como quizera.

Eça de Queiroz, escrevendo um romance realista no «Primo Bazilio» não glorificou o adulterio, antes o apontou como fonte de tormento e oprobrio que preveniu muitas fraquezas. A alguem, casada aos quinze anos sem amor, êle preveniu contra muitos Primos Bazilios.

Demais, este caso está fóra da regra geral, E' um fenomeno simbolistico. E interessando-me, mais me interessa aconselhar todas as mulheres que fortaleçam a sua alma contra diabolicas tentações, educando-se em bons exemplos, em salutares impressões e boas leituras.

E a todas recomendo na sua biblioteca livros que são estimulo da virtude.