"Doida não!" Antes vítima/O Manuel
Depois de escritas as páginas anteriores, deliberei conhecer o terrivel chauffeur pasto a ferros de cárcere, emquanto lá ao longe, na sua aldeia natal de Roção, uns olhos lacrimosos de mãe choram noite e dia o filho bemquerido que era o seu solicito amparo.
Dirigi-me à cadeia da Relação. Só uma vez lá entrara para visitar uma senhora de Matozinhos que, numa exaltação de ofendida, dera uns tiros num empregado.
No rés-de-chão uns homens vestidos pobremente de ganga azul, quási negra de suja, remexiam em grandes e defumados caldeirões o rancho dos encarcerados.
Informei-me do número de reclusos pela soma de rações fabricadas. Devia orçar por setecentos, me respondeu o empregado. Puz-me logo a cogitar: Quantos criminosos estarão nesse número? Quantos inocentes? Quantos irresponsáveis de actos e vícios incutidos pela educação e pela hereditariedade?
Mas eram horas de visita. Subi a denegrida escadaria, quasi sem luz, tateando nessa escuridão lugubre de treva. No primeiro patamar, um empregado toma conta do meu guarda-chuva, dando-me uma senha metálica. Depois, ao cimo de outro lance de escadas, outro fêrreo e negro portão gradeado aprime' o coração de quem lá entra confrangido na ideia de que não são os cárceres que modificarão as sociedades, mas a luz clara e purificadora de escolas amoraveis e atraentes.
O carcereiro que guarda este portão, hesita em abrir antes de saber o que desejo.
Parece que o meu aspecto lhe não inspira desconfiança.
As chaves que abrem os portões sinistros, com penas para os que entram e desafôgo para os que saem sedentos de liberdade, desceram os pesados gonzos. E lá entrei, emfim.
Constára-me que não era fácil obter essa entrevista. Mas parece que algum poder invisível patrocinava o meu empenho, porque minutos depois obtia consentimento da direcção para entrevistar o humilde herói dêste drama.
Um empregado da secção onde se acha a oficina de sapataria em que o Manuel trabalha, encarregado de escrituração, indicou-me o corredor por onde devia seguir. Mas chegada a outro corredor, hesitei para me orientar da direcção que devia tomar.
Nesse momento, distingui um perfil masculino e claro, de linhas retocadas de uma certa expressão, que destacava entre a penumbra do escuro corredor, assomando por entre as grades do portão. E uma voz de timbre agradável e melancólico perguntou brandamente:
— Que deseja, minha senhora?
— Procuro um preso que se chama Manuel Claro, detido por crime de rapto e cárcere privado.
Uma nuvem de tristeza repentina que me impressionou, contraiu as feições pálidas do encarcerado. E com um sorriso calmo e resignado respondeu:
— Sou eu mesmo.
Imensamente curiosa por anotar todos os fenómenos de telepatia, interroguei logo;
— Porque estava o senhor aqui neste momento?
— Não sei, minha senhora — qualquer coisa de estranho me chamou a este portal.
— Mas costuma aqui andar?
Raras vezes; ocupo-me a trabalhar na oficina para distrair o espírito de amarguras, e porque detesto o ócio e tenho inclinação para o trabalho.
— Venho entrevistá-lo, declarei-the. Interessa-me muito esta tragédia.
E, fitando-o de frente, perguntei-lhe:
— Está disposto a informar-me? Tem confiança em mim? Não trago recomendações.
— Queira V. Ex. dizer o que deseja.
— Mas como confia em mim sem me conhecer? Posso ser espia da parte contraria...
Com um ar de gravidade, que eu curiosamente ia observando, o Manuel respondeu com firmeza e convicção:
— Sim, minha senhora, tenho confiança, porque mais ou menos logo á primeira vista avalio as pessoas com quem trato.
Emquanto o prêso me falava atravez das grades, a minha curiosidade de psicóloga ia analisando traço por traço o conjunto das suas feições, a expressão fisionómica, os gestos, as palavras, as ideias traduzidas no diálogo que ia revelando detalhes interessantes para a definição deste caso.
Em termos correctos e cortezes, o entrevistado propoz que eu me dirigisse á secretaria para que mais comodamente pudesse ali falar-lhe com autorisação do director.
Ele mesmo escreveria um cartão solicitando essa concessão. E dirigiu-se à oficina para escrever o mencionado bilhete.
O andar é um dos detalhes que os fisiognomonistas analisam com a maior atenção para aquilatar o conjunto do caracter.
Observei o recluso emquanto transpunha o corredor. O exame não foi desfavoravel.
Os passos firmes e bem lançados não eram destituidos de elegância que caracterisa maneiras de nata distinção.
A estatura airosa, delgada e ágil, não indicava uma natureza vulgar. E agora eu ia pensando com algum fundamento:
Porque não há-de existir o embrião de um homem de valor na modesta individualidade de um chauffeur?...
Dentro em pouco, o Manuel trazia-me uma tira de papel enlaçada e dobrada, escrita regularmente numa letra de traços característicos.
Dirigi-me á secretaria.
Já passava da hora das visitas. Era forçoso guardar para a tarde. Voltei, e ás 3 horas, o Manuel baixava á secretaria e contava-me uma parte do seu romance, exprimindo-se em termos bastante correctos e revelando-me uma psicologia muito digna de ser estudada e observada com interesse e aprêço.
Na sala da secretaria pude aprofundar mais o exame fisionómico do recluso e fixar bem reveladoramente a sua expressão.
Entrei em pormenores minuciosos. E o Manuel ia dizendo com ar grave e reflectido, resignado e impressionante:
— Olhe, minha senhora, eu bem sei que a maioria da opinião pública me é desfavoravel. Pensam que eu sou um explorador que quiz apoderar-me da fortuna desta senhora que pretendem fazer passar por dolda, e que está em seu perfeito Juizo. « E censuram-me porque acreditam que foi êsse o motivo porque faltei ao respeito que devia à sua posição e ao seu nome. Enganam-se, porque não sabem o que se passa no meu coração. É muito dificil de entender...
« Mas se mais ninguem me entender senão a pobre senhora que é uma verdadeira mártir e a tranquilidade da minha própria consciencia, nunca me há-de faltar a resignação para sofrer. »
Fez-se uma pausa que tinha qualquer coisa de soléne. Cada vez mais interessada, eu olhava com penetração aquela fisionomia que reflectia certa superioridade. O entrevistado ficara um tanto absorto e concentrado, os olhos baixos, vagueando pelo soalho negro e carcomido, as mãos delgadas, pálidas, nervosas, comprimindo-se inquietamente sobre os joelhos como que querendo reter qualquer coisa de fugidio e longinquo. O fato de ganga azul de recluso, contrastava com um certo cunho de elegância das botinas amarelas gaspeadas de verniz preto que calçavam um pé regular e delgado.
De repente interroguei-o:
— Diga-me, como principiou este drama entre si e a snr.a D. Maria Adelaide ?
O Manuel olhou-me com um olhar em que havia sinceridade e tristeza, e contou-me:
— A causa desta afeição, foi a bondade extraordinária desta senhora. Eu nunca vira senhora mais benévola com os seus serviçais, mais cuidadosa e desvelada no seu bem estar. Ela não era uma patrôa, era uma mãe de todos. Nada lhe esquecia para que tudo estivesse nos seus lugares a tempo e a horas.
« Andei por outras casas onde lidei sempre com bons patrões, porque tambem procurei ser para todos o melhor que eu pude. Mas, uma alma e uma inteligência como a desta senhora, nunca o destino me deparára.
« A snr. D. Maria Adelaide, em breve percebeu que eu era grato aos seus desvelos e que tinha um feitio de me sensibilisar com a bondade que me era dispensada. Mas eu nunca olhei para ela senão com um respeito e uma ternura que um filho póde ter para uma mãe. E ela, estou certo que me olhava como um filho.
« Mas não há dúvida que esta afeição começou a apoderar-se de mim com uma força que me inquietava.
« Quando a via cheia de cuidados pelo bem-estar de toda a gente da casa, e especialmente dos empregados, parecia-me que andava uma santa em volta de nós. Esta impressão causava-me um grande contentamento. E eu percebia intimamente que tambem lhe fazia bem sentir que tinha por ela uma grande adoração. Depois causava-me muita pena ver que esta senhora não era tratada como merecia. »
Mas o Manuel acudia logo significativamente:
— Que eu, juro, não digo isto por vingança ou rancor para com o snr. Dr. Alfredo da Cunha. Ele julga-se ofendido e procede conforme o seu entendimento. Mas a verdade, que ninguem pode contestat, é que era rispido com a senhora e fazia-a sofrer muito ser ela o merecer.
E concluiu com certa ironia pungente:
— Mas tanta gente que sabe e que viu esse procedimento, nega-se hoje a confirmar tal verdade, porque acima de tudo só ha interesses, conveniências e ambições.
— De forma que então, existe na sua alma um culto reverente por esta senhora?
— Hoje mais do que nunca, minha senhora, porque á adoração que sentia pela sua bondade, á gratidão por me ter salvado a vida e porque se dispôs a partilhar a minha existência pobre e humilde, junta-se agora a dôr pelo martirio que por minha causa ela está sofrendo.
— Mas quem sabe o que o destino reserva — repliquei tentando penetrar com a força magnética de um olhar perscrutador o mistério de aquela alma singular.
— Não sei, retorquiu o encarcerado, com um gesto de desalento e de dúvida. Não tenho grandes esperanças de que o processo nos seja favorável. Teem muita força as partes contrárias. Mas o que posso garantir a V. Ex.a é que, se a causa me fosse favorável, não me decediria a partilhar da fortuna do snr. Dr. Alfredo da Cunha. Por minha vontade, a snr.a D. Maria Adelaide, oferecia-a a uma instituição de caridade, e eu lançar-me-ia no trabalho, aqui ou na América, pata the proporcionar todo o bem-estar e confôrto.
Fiquei-me a olhá-lo a remirar o seu perfil, a sondar-lhe a fronte, a radiografá-lo com uma sede de verdade e de luz, como que querendo fixar na minha retina a projecção intima dos seus pensamentos, para me certificar se estava ali um sêr imaginário, uma alma de eleição, ou algum hipócrita que ludibriava a minha ingenuidade de idealista, para que ela iludisse o público.
O minucioso exame dava provas favoráveis.
Parecia-me que havia reverberos de espiritualidade elevada na fronte alta e esférica cuja palidez contrastava com os cabelos negros e ondeados. O nariz de traço direito, revelava-me as particularidades de talento atribuidas pela sciencia fisiognomónica.
Os olhos brilhavam em lampejos de inteligência viva, que uma vaga tristeza amortecia quando dissera: « Que tristeza, que saúdade eu senti quando recebi ordens de me retirar da casa desta senhora!... »
E falando da mãe declarava:
Por mim só não me custava sofrer, se por minha não sofresse a minha pobre mãe, coitadinha, e as minhas irmãs que viviam do meu braço!... E aqui está tambem o meu primo que deixou sem amparo a mulher e três filhinhos...
« Mas as torturas que tem sofrido a snr.a D. Maria Adelaide, essas são o meu constante tormento. Porque se assim não fôsse, afinal, a gente aprende muito quando sofre. »
E como que falando a alguem distante rematava numa expressiva filosofia:
— Tambem há gôso no sofrimento!...
Eu interrogava-me: — será verdade tudo isto, ou não passará de ilusão? Confirma-se a existência de uma alma boa?
Há em verdade, neste drama, a essência de um amôr cristão que teve origem num choque de alma para alma, pela alma?
Quási o acredito, tão palpáveis são as revelações.
É uma psicologia do amor que para penetrar nas regiões de uma nobre finalidade, tem de passar antes pela esfera do materialisino e pelo limbo do pecado original?!
Que inspiração é a da minha pena escrevendo isto, que vai fazer pensar tanta gente, e modificar as suas concepções de justiça, senão a colaboração de continuidade pessa obra de amor humanitário encetada por estas duas almas?
Não, não há aqui um caso banal, repito, cada vez mais convicta e interessada.
Este amôr de uma mulher que tem tantos méritos na sua delicada organisação, é relocado de transcendente idealidade.
Captivou-lhe a alma agitando-lhe o corpo porque tinha de passar pela transição das leis naturais que transformam a matéria em espirito. O Manuel é apenas um intermediário dêsse sentimento que vai alêm dos sentidos cristalisar na divinisação do ideal para abranger o culto da humanidade.
Vive nesse amor a dôr simbólica de Julieta e Rumeu, de Dante e Beatriz da Hero e Leandro da Mitologia? Existe o amôr que é o ritmo da vida, a melodia do coração, o ardor vivaz de paixões que absorvem e alentam, que enebriam e endoidecem? E' uma transição, é um laço intermediário que enleia almas, corpos; espiritos e corações para se fundirem em Luz de resgate?
Homem e mulher somem-se na bruma da vida material deixando em fóco só os símbolos. Para que julgá-la, para que condená-la, esta paixão, se ela é engendrada de sentimento, pela ideia que se liberta dos pantanos terrestres para inscrever no céu luminoso do ideal estas divinas e salvadoras palavras:
Bondade e Justiça
Já passara a hora da visita. Tinha que retirar-me.
― É muito visitado? ― perguntei ao Manuel.
― Por ninguem, minha senhora. Não tenho nesta terra pessoas conhecidas...
― Em que passa o tempo?
― Trabalhando. O trabalho é para mim lenitivo e recreio.
― Gosta de lêr?
― Muito, sobretudo história, Quanto estimaria poder têr aqui alguns livros bons!...
Levantei-me para me retirar.
Ao transpôr a grade negra do cárcere, voltei-me para o Manuel com piedade humanista.
De pé, triste, em atitude de respeito e de sofrimento, havia no seu porte uma linha de correcção que impressionava.
« Tambem há gôso no sofrimento », dissera-me o humilde chauffeur, num cogitar de pensador e com laivos de resignação que o doce Nazareno ensinou ás turbas.
Que se passaria áquela mesma hora noutro coração arrebatado pela cólera e peio desejo de uma vingança a comturbar a alma espiritual de um poeta?
E lembravam-me os versos do imortal João de Deus:
« Deus fez as alinas aos pares,
Cada um dos seus olhares,
Foi um casal que voou... »
Ao descer a escadaria, notei na grade de uma janela fronteira um perfil pálido e macerado, mergulhado em profunda reflexão. Era o Snr. Conde de Mangualde, expiando o crime do seu ideal monárquico.
Baixai à terra ó Deuses Olímpicos da justiça e da bondade!...