Saltar para o conteúdo

"Doida não!" Antes vítima/Ao Ex.mo Snr. Dr. Alfredo da Cunha

Wikisource, a biblioteca livre
Ao Ex.mo Snr. Dr. Alfredo da Cunha
 

 

E por expontaneo dever de consciência que venho tomar parte no pleito em que se envolve o nome de V. Ex.a.

Debate-se uma causa de caracter particular. Mas não ha direitos pessoais exclusivos, perante os interesses de ordem social. Este caso pertence ao domínio dos problemas sociais. E é debaixo do seu aspecto simbolista que o discuto e me interessa.

A discussão é contrária a V. Ex.a, não sob o ponto de vista meramente pessoal, mas considerando-o um interprete de preconceitos de que afinal saem vitimas os dois sexos. Não desejo, porém, cultivar antagonismos entre sexos, condenando os erros dos homens, para proclamar a leviandade das mulheres.

 
 

Agita-se a opinião pública em correntes desencontradas. Apos a publicação do livro da Esposa de V. Ex.a, intitulado «Doida Não!», produziu-se uma extraordinária reacção de curiosidade. E a tragédia conjugal, que forma já um colossal processo juridico, entrou em ampla e agitada discussão.

Tem V. Ex.a favoráveis probabilidades de triunfo.

Tem as garantias da superioridade que é exclusivo dos homens nas sociedades mal organisadas.

Está de posse de uma fortuna colossal que é arma de seguras conquistas num paiz onde o Dio del'Oro é o soberano a que se rendem todas as consciências, todas as vontades e resistências, na disfarçada ganancia de inconfessaveis interesses.

É portanto mais que facil o aniquilamento de uma mulher indefeza. Estão do seu lado agravantes de derrota, emquanto ao lado de V. Ex.a ha atenuantes convencionais que são a garantia de exitos solidos e positivos. Mas ha derrotas transitórias que são prelúdio de vitórias.

A derrota que tem como causa o predominio das forças materialistas, pode ser amanhã o triunfo dos derrotados convertidos em vencedores pela justiça de uma sociedade mais culta, menos tradicionalista e mais esclarecida.

Acima de todas as soberanias do ouro, de todos os decretos dos homens, de todas as conclusões e conspirações da sciência, ou dos processos juridicos, reunidos neste caso, ha uma força invisivel, mas predominante, que acaba sempre por triunfar das armadilhas engendradas polas mentiras sociais, tecendo, tarde ou cedo, a teia luminosa e indestrutível da verdade.

E a verdade não está afinal do lado de V. Ex.a.

O que é a Verdade segundo as leis do Universo? Amor, Justiça, Bondade. É dessa triologia de virtudes que se forma a virtude do altruismo. O altruismo é o contraste do egoismo, este o terrivel impulsor de guerras e desordens mundiais, que é formado de vaidade, ambição, crueldade e soberbia.

Ora, no caso presente, estamos em face de duas espécies de julgamento que separa a natureza da culpa, da natureza da culpada. Segundo as léis a que se submete — a responsabilidade das culpas atribuidas á Esposa de V. Ex.a, fica essa culpa no limbo da condenação pública. Mas se libertarmos esta condenada das cláusulas tão falsas como arbitrárias da moral convencional, a natureza da culpada impõe-se à defeza daqueles que alcançam a rútila esfera de uma nova moral concebida em léis de justiça, de bondade e de tolerancia humanitária, que dá a luz do altruismo e a fé na perfectibilidade social.

Temos, pois, em face dos códigos tradicionalistas, um queixoso e uma culpada. É V. Ex.a o queixoso a quem a maioria dos opiniões é favorável? É sua Esposa a culpada que essa maioria condena?

Mas ha de chegar o dia em que brilhe mais clara luz no juizo que formará as novas consciências. O que hoje é u a inversão da razão, será amanhã um direito de justiça. Reconhecer-se-ha então que fatal conivência de egoismos perverte a moral de mulheres virtuosas, levando-as a crestar as azas da pureza na chama de paixões, que nunca teriam abrazado os seus corações ardentes, se os houvera penetrado um sôpro constante de carinho, de ternura conjugal que enobrece e aperfeiçoa.

Mas eu creio que ja ha nos espiritos una compreensão de expontânea e instintiva justiça. E é certo no caso presente, que se repudiam os processos de arbitránia expiação, impostos dogmaticamente a uma mulher que sentia uma necessidade de amar, e não encontrava na familia o amor e a justiça que seriam a sua fortaleza moral. Porque, o certo é tambem que uma onda de simpatias envolve a heroina dêste singular episodio de amor.

É para julgar a fundo as causas e os efeitos dêste episodio, que me dispuz a discuti-lo no campo da psicologia e das conclusões renovadoras e humanistas, tomando para quesito os pontos seguintes:

— De que lado esta a maior culpa?

— Quais as causas do adultério?

— De que lado estão as provas de maior egoismo, ou as de maior altruismo?

— Quantos prejuizos representa na sociedade e na familia a opressão do egoismo, e quantas vantagens assegura a virtude do altruismo?

— Que vale a natureza e o efeito de una culpa de prejuízos meramente pessoais, em face da natureza de uma culpada que, caindo em pecado, se liberta de si para atrair em torno da culpa a discussão de que nasce a Luz, e a Luz que corresponde ás virtudes do altruismo que são origem da sua afectividade, do seu dom de simpatia, da sua culpa que foi da Bondade ao Amor?

Mas, tomando parte no sensacional debate, é meu desejo manter uma linha de consideração e respeito pela personificação individual de V. Ex.a, pelo seu prestigio de intelectual e pela sua preponderante situação de homem público.

Distinguirei na pessoa de V. Ex.a a personificação e o simbolo, como sucederá com os ilustres clinicos que classificaram a doença de sua Esposa.

É V. Ex.a um espirito culto. Portanto sabe decerto que, acima da vontade humana, ha uma vontade suprema que dirige os nossos actos e as nossas ideias, com o mesmo poder invisível com que faz girar o mundo e dispõe as universais atracções.

Na ordem da evolução constante e planetária, desagregam-se as forças da matéria e cristalisam-se as energias do éter, convertendo os átmos em irradiantes. Nessa mesma ordem de desmaterialisação se vai precipitando a luz das novas ideias que sobe em espirais de fluido espiritualismo para um espaço mais claro, onde os principios se renovam e os sentimentos se purificam, até que, entre oscilações transitórias, chegue um dia a hora da aleluia emancipadora.

Decerto V. Ex.a não ignora que as fases históricas de maior florescimento de todos os povos antigos ou modernos, teem correspondido á situação e aprêço em que se mantem a influência da mulher.

Deixarei para o final desta publicação as demonstrações dêsse facto que complica com o ressurgir ou o decair das sociedades. E afirmarei por agora que a falta de aprêço, a escassez de culto que os homens de génio rispido e árido, com caracter orgulhso e frio, manteem perante a mulher inteligente, terna, valorosa, que o destino pôz ao seu lado, vem por fim a produzir a dispersão da família e a inutilizar a vida e a felicidade dos esposos, rebaixando o nível moral.

Teve V. Ex.a como companheira uma mulher de valia. Muitas das ideias e obras de V. Ex.a germinaram e desabrocharam sob o influxo da sua vivaz inteligência.

Quanto lhe deve a prosperidade económica da sua casa?

Desde todos os tempos que a glória dos homens célebres está ligada à influência das mulheres que os inspiraram. A Grécia foi grande, porque teve grandes mulheres. E teve grandes mulheres porque o culto dos homens lhes prestou justiça e idolatria.

Nunca Péricles teria sido uma gloria grega, se o não houvera inspirado Aspasia, que a falsidade da história fez passar por helaira, e que foi apenas mulher de graciosas galanterias, desejando converter e iluminar, seduzindo e atraindo pelas suas graças espirituais e corporais. Esquilo e Sofocles lhe deveram muitos dos seus triunfos teatrais.

E Sócrates escutou, atento, reverente, os seus conselhos sábios, intuitivos e filosóficos, á sombra das palmeiras orientais que bordavam as margens dos mares Jonios.

Como esta celebre grega que desceu do Olimpo da arte para inspirar génios e glorificar poetas, tambem á mulher que é hoje a vítima de uma tremenda punição, se póde chamar a musa da inspiração colaboradora no prestígio que trouxe a V. Ex.a horas e regalias de triunfo.

Soube V. Ex.a compreendê-la?

Esmerou-se em conquistá-la, em atraí-la e fixá-la perfeitamente e amoravelmente em si?

Talvez não. E como a causa principal do desvario de que a acusam reside nesse facto, esse desvario deixa de ser consequência exclusiva da sua conduta, para ser delito de responsabilidade reciproca. E sobre êsse ponto que vou entrar na discussão das razões arquivadas no livro «Doida Não!», rubricadas por muitas outras provas que circulam entre a corrente das opiniões públicas, comprometendo a acusação e favorecendo a defeza, por forma a fazer entrar no trilho da justiça os deveres dos homens para com os legítimos e sagrados direitos das mulheres, as eternas sacrificadas, que passam do sacrificio á revolta e da revolta ás extremas deliberações.

Mas eu desejo, repito, ser justa e recta nas minhas definições. Condeno o egoismo sem tréguas. Considero-o um dos maiores agentes da infelicidade, um martirisante prurido de crueldade psíquica, acentuadamente masculino, um doentio erotismo ligado às fobias sensuais, uma relatividade entre causas e efeitos de furores patológicos e de luxuria mórbida.

Semeia dores sem fim o egoismo. E como causar o mal é uma coisa que contraria as leis da natureza humana, o egoismo, tão próximo da crueldade e do ódio, é um sentimento negativo, é um cancro de ruim espécie no seio da família e da sociedade. Sendo um dos piores rebentos da árvore do mal, converte o homem em Prometeu eterno, requeimado num fogo devorante de mal-estar, sempre insaciado, descontente, envenenando de mau humor, de iras e tormentos, o ambiente familiar. E sendo já sabido que cada ser tem em si uma reserva de energias magnéticas que acionam e reacionam numa receptividade simultânea de correntes magnéticas, as quais estabelecem outras tantas correntes de atracção ou de repulsão, prova-se que o homem, sobretudo o marido egoista e colérico, està constantemente atraindo a si influências negativas que revertem em prejuizo proprio.

O egoismo é a bilis do organismo humano e social. Dispersa energias que enfraquecem os nervos, altera a circulação do sangue, perturba a função natural dos orgãos, emfim envenena o caracter com perturbaçies que prejudicam o funcionamento geral, e provocam lesões cardíacas, congestionamentos cerebrais, ou atrofias vicerais.

Essa doença é sinónimo de desdita, de desharmonia e decadência geral.

Muito contribuiu tão nefasto mal para o desenlace trágico que estou comentando! Mas afinal creio bem que sendo V. Ex. vítima dessa nevrose causadora principal da desorganisação do seu lar, não se conclui que não possua dotes de bondade no intimo recato do seu coração. Todos os poetas teem reservas de ternuras cristalisadas em beleza de sentimento. É certo que ha poetas que criam obras primas de metrificação, sendo notáveis de brilho e elegancia poética, sem contudo exalarem aquele perfume de expontânea e intensa emoção que é a verdadeira alma da poesia sentida.

Com singular acerto, me disse um sapateiro de Cintra, que bem pudera ter sido um grande filósofa:

«Ha versos sem poetas, e ha poetas sem versos.»

Mas eu creio que os versos magistrais de V. Ex.a são pensados e são sentidos.

E creio-o porque reconheço que cada ser tem em si uma dualidade. E cada dualidade se manifesta por formas variadas, num extranho choque de contrastes e de revelações que são outros tantos contrastes e surprezas fazendo de certos caracteres verdadeiros labirintos de psicologia.

Creio bem que V. Ex.a será um desses casos, talvez caracterisado pelo mesmo espírito contrariante de que sofreu e se acuson Alfredo de Musset, quando atormentava George Sand, amando-o profundamente.

O proprio Goethe, sofreu do mesmo mal. E Paulo de Mantegazza se acusa de uma tara hereditária que o impelia a provocar despeitos, sendo generoso e bom.

Por isso eu creio que em todas as injúrias morais que os gestos exteriores de V. Ex.a foram acumulando na alma de sua Esposa, havia a influência de taras que teem a sua origem na ferocidade do homem prehistórico.

Mas tambem creio que V. Ex.a seja uma alma de emotivo, porque é neto de uma santa e resignada avó que

perdoou e sofreu heroicamente[1].

As queixas que da parte de V. Ex. formam a base dêste pleito, são afinal, no fundo, uma fermentação de orgulhos. E pela mesma razão que esses orgulhos medram e alastram nos dominios da vida domestica é que a maioria dos homens está ao lado de V. Ex.a.

Ha um delito? Mas esse delito é de responsabilidade comum, como se vai provar.

As causas são culpas de que em parte é responsável a parte queixosa.

Disse um celebre filósofo que nos delitos de uma mulher, ha sempre os crimes de um homem. O adultério é da parte femenina quasi sempre a consequência da poligamia ancestral agravada pelos erros da educação e pela falsa adulação dos homens, que incutem vaidade, coqueterie e futilidade no animo fraco das mulheres. Mas neste caso ha outras razões que saem dos casos banais.

Em todas elas realça um choque de contrastes que põe em fóco a transição do egoismo para o altruismo.

E é evidente que sob a influência de egoismos, manifestados por formas diversas, se praticou uma deshumanidade internando numa horrível reclusão de alienados uma mulher em estado de provada lucidez, e pelo menos tão lucida como muitos clínicos que exercem a sua profissão, com competencia, sendo atacados de sintomas nevroticos que proveem da neurose geral.

Não se tratava de uma Doida sem juizo, mas de um juizo que era conveniente converter em loucura verdadeira. Temia-se a revelação das injustiças que pouco a pouco foram amassando o fermento das revoltas, e preparando a labareda da incendiaria paixão que foi fixar-se numa existência humilde, talvez pela força do destino que elege certos sêres para uma predestinação traçada pela mão de Deus na orbe dos destinos universais.

Ha neste caso três vítimas e três culpados. Culpas e sofrimentos merecem o respeito de quem as julga. Por isso julgarei os actos de V. Ex. confessando-lhe o máximo e condoído respeito pela sua personalidade e pelas intimas máguas que o atribulam.

 

  1. Páginas 15 do livro Doida Não!